NEPAL É REAL - por Paulo Ferraz*
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Nos últimos três anos, a dramaturgia mato-grossense tem sido representada nacionalmente por uma peça que destoa do coro dos contentes e conformados que infestam o teatro nacional, ainda dominado pela comédia de costumes e dramas sociológicos de baixo mimetismo. O Teatro Fúria foge a essa tônica ao encenar uma peça que dialoga estruturalmente com a história dramatúrgica, possui conteúdo e põe em prática elementos experimentais que conferem ao texto a inventabilidade e a comunicabilidade necessárias a uma obra de arte, ou seja, os membros do grupo criam, refletem e permitem ao público o acesso a sua enorme gama de técnicas e referências, sem caírem no nonsense do vanguardismo panfletário ou ingênuo.
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Tornou-se comum dizer que Nepal se vincula ao teatro do absurdo, o que é uma inverdade, refletindo a incapacidade de nossa crítica de lidar com uma obra inventiva. Longe disso, Nepal está mais próximo de um realismo fantástico, uma vez que estruturalmente se constitui de elementos bastante tradicionais: a peça tem início, meio e fim, suas personagens podem ser identificadas psicologicamente, seu enredo é passível de ser comunicado em um simples resumo e o conflito é comum ao espectador. Por que realismo fantástico? Porque a realidade ali é imaginada, é encontrada pela analogia e simbologia que constitui o drama. Afinal, o fim do mundo é um assunto recorrente em nossa literatura, desde os tempos bíblicos aos Best Sellers levados ao cinema hollywoodiano. O pulo do gato, ou o salto quântico, está em utilizar-se dessa estrutura tradicional, mas digerindo-a por dentro, transformando o tradicional em experimental.
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O que difere o texto de Péricles Anarcos é a leveza dos diálogos. Em vez de um desespero pré-amargedom (ou pré-Potrassa), o que temos são duas personagens que, em meio a relações de poder, se divertem um com o outro e com hipóteses de fins e renascimentos. Talvez o ponto alto do texto seja justamente esse, o uso de uma quase comédia irônica (o que aproxima Nepal de uma farsa) para discutir um assunto reservado a formas sérias, não o fim do mundo, mas das relações de poder, pois os últimos representantes da raça humana (reunidos numa, para nós distante e inexpressiva terra que fora um dia o Nepal) preferem competir entre si que unirem-se para encontrar uma saída. Talvez não seja saída, e aparentemente não há mesmo, e já que não há, esses dois últimos homens, que até então foram nada, podem provar do inebriante gosto do poder, mesmo que o poder seja de um para o outro. Esta é a chave para compreender a peça: não importa serem os últimos, importa serem homens. Bathanagar tem um poder porque tem a propriedade de um rio (note-se que nada há de absurdo nisso, uma vez que as principais sociedades surgiram às margens de rios: Nilo, Tigre, Eufrates, Jordão, Amarelo, Ganges e Tibre, ou os recentes Tamisa, Tietê e Cuiabá) rio este que, ainda que inútil funcionalmente, pois com o fim da humanidade não passa de um curso d’água que alimenta o Ganges, dá a ele a ilusão do controle, do domínio e do patrimônio (lembremos domínio e patrimônio vem de domus e pater, senhor e pai respectivamente). Por sua vez, Traço, a priori o oposto de Bathanagar, é um despossuído, um membro do MST do fim do mundo, não tem nem mesmo um nome (sutil recurso alegórico de Périces Anarcos), o que reforça ainda mais a sua ausência de posse, não passa de um andarilho que implora um pouco de água. Este implorar deixa-o em uma posição inferior a Bathanagar, que pode enfim exercer seu poder, que reflete em raciocinar, negar o acesso e mesmo comercializar a água. Mas Traço pode se opor a Bathanagar pelo discurso – são notáveis a capacidade reflexiva de Traço, fruto de quem muito viveu e muito conheceu, e as dúvidas e inseguranças de Bathanagar, que impossibilitado de ter o conhecimento de Traço acaba por dar a este a força necessária para barganhar seu trago.
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Se há em Nepal influência do teatro absurdo, este estaria restrito a uma única cena, justificável também, se quisermos, pelo realismo fantástico, na qual um mamute e um tiranossauro dialogam no cume da montanha, ali estariam o Ionesco dos Rinocerontes e o Beckett de Esperando Godot, mas esse absurdo se dilui no fato de que estaríamos mais uma vez frente a uma simbologia: dois gigantes extintos, assim como nós, gigantes que um dia também seremos meros restos de ossos fossilizados. A Péricles Anarcos não escapa essa relação, tanto o é que, quando o conflito pela água arrefece, ambos esperam Potrassa imaginando um futuro provável, para o qual eles deixariam a marca de suas grandezas, falsificando indícios, apostando na ignorância dos homens futuros que os veriam como os grandes homens que imaginam ser ali na solidão nepaleza. Mas uma vez o poder está na berlinda, o poder do nome, a imortalidade da fama, essa que nos faz lembrar Gilgamesh, o rei de Uruk (note-se: Uruk está na Mesopotâmia a terra entre rios) que impossibilitado de viver para sempre, mesmo sendo ele um semi-deus, parte pelo mundo para executar as façanhas que nenhum homem tenha feito e assim escrever seu nome nos tijolos e ser lembrado pelo resto dos tempos. Essa imortalidade do nome é a face do poder que os artistas buscam, vencer o mais implacável de nossos inimigos, a morte. Traço traz os elementos necessários para a vitória, é um aventureiro, espirituoso, audaz, tem conhecimento e agilidade de raciocínio, mas não os otimiza, não transforma o que viveu e sabe em obra, pois não passa de um traço, um nada que, embora saiba da onda de calor em Moscou e das baratas que aproveitam o bom tempo que lá faz, só consegue abalar as falsas verdades e a suposta autoridade de Bathanagar, envolvendo-se no ardil jogo “quem é que manda”, mas não pode vencê-lo, por sinal, o que temos são dois perdedores, duas presas de uma força maior, a das instituições de poder que criamos para dominarmos uns aos outros, religião, Estado, leis, cultura e história.
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Posse versus conhecimento. Não há como não ver aí um fundo utópico, uma ilusão de que o conhecimento pode se opor, e vencer ao poder do patrimônio, que em nosso mundo, ainda com seis bilhões de habitantes, vem acompanhado da força física, da coerção e da imposição de valores. De fato, se fôssemos apenas dois, um latifundiário, como muitos que temos, e um intelectual, como poucos que temos, seria fácil imaginar que a solução caminharia para o intelectual, pois é pela escassez que o poder da posse se impõe, aquilo que é comum a todos não tem porque ser protegido, numa clássica definição de Economia, esta é apresentada como a ciência de gerir a escassez, não é de se estranhar que essa gerência é privilégio do Estado, munido do poder que lhe confere o Direito. Já o intelecto, ao contrário, se impõe pelo excesso, pela grandeza, pela retórica, silogística ou poética. Por isso, ao menos no plano da utopia, o dono de um rio não pode oprimir o dono do conhecimento.
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Péricles Anarcos constrói, sem dúvida, um grande texto, cuja grandeza é impressionantemente realçada pela grandeza das interpretações, que transporta o branco deserto himalaico para a aridez cênica do palco vazio, direcionando a atenção do público ao mínimo necessário e essencial, as personagens: Bathanagar, dos gestos contidos, do andar que lembra os atores de Bali, da postura ereta do corpo quase nu e delgado como estátuas indianas, das falas quase que declamativas, do olhar de um semi-deus; Traço, da assimetria, do desleixo, dos braços balançando ao redor do corpo e das tralhas que carrega, um judeu errante que sem posses leva no corpo só o que pode carregar, da voz embargada pela sede e pelo cansaço, da fina ironia de suas frases, do tom desafiador. Esses são os elementos cênicos que fazem da peça um dos mais bem resolvidos exemplos de nossa dramaturgia contemporânea, pois cenicamente os atores Péricles Anarcos e Giovanni Araújo criam uma dicotomia imagética, fazem de seus corpos símbolos de suas personagens, não pela via barata do psicologismo stanislavskiano, mas pela criação de máscaras corporais, pela plasticidade revestida de caráter simbólico que permitem ao expectador a catártica experiência da fenomenologia cênica, ouvir o texto e ver a cena como um todo, como um só agente sensorial que nos faz viver esses dois últimos dias da humanidade em sua plenitude. Quem quiser que conte outra, mas estamos diante de uma realização difícil de ser igualada dentro do Estado, as apresentações em Dourados, Curitiba e Blumenau confirmam a hipótese de que a realização do Teatro Fúria só tem parâmetros de comparação nesses festivais, alguns dos celeiros do pouco que nos resta de criatividade no universo teatral.
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* Paulo Ferraz é autor do livro “Constatação do Óbvio” selo Sebastião Grifo, SP, 1999 e editor da revista literária Sebastião, bacharel em Direito e mestre em Teoria Literária, ambos pela USP.
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