sábado, 9 de maio de 2009

ANOS DE CHUMBO - Boal e Loreta: As lembranças do exílio e da esperança.


ANOS DE CHUMBO - Boal e Loreta: As lembranças do exílio e da esperança.
por Augusto Buonicore*


O comovente livro de memórias da comunista Loreta Valadares ''Estilhaços'', conta-nos um pouco do papel destacado desempenhado pelo teatrólogo Augusto Boal no movimento internacional de solidariedade à luta do povo brasileiro durante a ditadura militar.


Loreta e seu marido Carlos acabavam de ingressar no Partido Comunista do Brasil, vindos da Ação Popular, quando tiveram que abandonar o Brasil. Estávamos no segundo semestre de 1973. O casal viajou primeiro para a Argentina e de lá pretendiam seguir para o Chile, onde governava o presidente socialista Salvador Allende. Ali se encontrariam com Diógenes de Arruda Câmara, dirigente histórico do PCdoB.


No aeroporto de Ezeiza, prestes a embarcar, receberam a notícia do sangrento golpe militar que acabara de acontecer. Nenhum vôo partiria aquele dia para capital chilena, convertida num campo de caça aos militantes de esquerda. Centenas de pessoas foram obrigadas a se refugiar na embaixada da Argentina, entre elas estava o velho Arruda.


Aos dois jovens exilados brasileiros só restava ficar onde estavam e se integrarem ao Comité de Solidariedad com los Pueblos de Latino América (Cosolpla), composto por argentinos, brasileiros, uruguaios e agora chilenos. Foi ali que encontraram pela primeira vez Augusto Boal. Ele já era um dos maiores diretores e autores de teatro brasileiro e havia passado um período difícil nos cárceres brasileiros.


A primeira luta desenvolvida pelo Cosolpla foi pela concessão de asilo político para todos os que se encontravam refugiados na embaixada argentina de Santiago. A luta foi bem sucedida, mas ao chegar ao país os exilados ficaram confinados em um hotel sem liberdade de locomoção. Nova campanha foi travada para que eles pudessem gozar da condição de asilados ou pudessem se dirigir para outros países. Isso foi conseguido ainda no governo Perón.


Então, foi organizado um grande ato internacionalista de solidariedade ao povo chileno. Sobre esse fato conta Loreta no seu livro: “Começaram as discussões sobre quem vai falar. Os brasileiros se reúnem para decidir quem fala em nome do Brasil. Discutimos com o Careca (apelido do dirigente do PCdoB Dyneas Aguiar) e nós, de nosso partido, vamos apresentar uma proposta de nome que amplie, que represente a todos nós e que tenha boas posições políticas. Escolhemos o nome de Boal. Após muitas disputas com outras forças políticas no grupo brasileiro, o nome é aprovado. Será Boal o nosso orador.”


Uma multidão marchou até a Praça de Maio – na frente da Casa Rosada – onde se realizaria o comício. Depois de falarem inúmeros representantes de entidades argentinas e de exilados latino-americanos, foi a vez de Boal usar da palavra. Ele estava nervoso e confessou aos camaradas mais próximos que nunca tinha falado para um público tão grande. Mais tarde, Loreta descreveria a cena emocionante: “Ele começa, a princípio meio tímido, depois se empolga, empolgando todo o público com suas palavra (...) Mas o delírio é maior quando ele fala da resistência e da solidariedade dos povos, principalmente da resistência armada no Brasil – a Guerrilha do Araguaia. É ovacionado no comício, desce do palanque contente, tinha ultrapassado a barreira de falar para grandes massas”.


Na casa de Augusto e Cecília, sua companheira argentina, se reuniam exilados como Darcy Ribeiro, Thiago de Melo e o compositor Manduca. Ali se discutia a situação do Brasil e também as idéias avançadas de Boal sobre o Teatro do Oprimido. No seu exílio argentino ele começara escrever Milagre no Brasil. O outro livro, Jane Spitfire, seria dedicado aos seus jovens amigos comunistas Carlos e Loreta – usando seus nomes da guerra: Ana e Jorge.


Os brasileiros no exílio divulgavam a Guerrilha do Araguaia, especialmente através do Noticiero Brasilero e depois pela Revista Araguaia. Passavam em salas de aulas para divulgar a luta do povo brasileiro contra a ditadura e a campanha pela anistia. Empolgados com a recepção, resolveram organizar um novo ato de solidariedade. Este foi realizado num Estádio de Box com a presença de cerca de 4 mil pessoas de várias nacionalidades. Boal, novamente, foi escolhido para falar. Dessa vez discursaria sobre a resistência armada do Araguaia. O público emocionado aplaudiu de pé. O que eles não sabiam é que a guerrilha já estava ferida de morte, com a destruição de sua comissão militar e o assassinato do comandante Maurício Grabóis, ocorrido em 25 de dezembro de 1973.


Com a morte de Perón em julho de 1974 e a posse de Isabelita, iniciou uma fase de instabilidade política que iria culminar com o golpe militar de março de 1976. Os exilados, agora ameaçados por milícias direitistas, começaram a abandonar o país. Arruda conseguiu asilo na França. Loreta e Carlos, ainda em 1975, seguiram para Suécia. Boal, correndo risco de vida, continuou mais algum tempo na Argentina.


Em janeiro de 1976, Loreta participou do Tribunal Russell, que julgou os crimes cometidos pelas ditaduras militares da América Latina. Ela falou sobre a censura e a repressão à imprensa no Brasil em nome dos jornalistas que não puderam estar presentes. O ex-presidente da UNE, então membro do PCdoB, José Luís Guedes falou em nome dos estudantes perseguidos, presos e desaparecidos. Na ocasião, os comunistas tentaram trazer Boal para depor, mas as autoridades argentinas não lhes deram o passaporte. Organizou-se uma campanha pela concessão do visto de saída e a autorização para que ele pudesse residir em Portugal. Felizmente, antes que o ano acabasse, ele já estaria salvo em Lisboa.


No Brasil governava o presidente Geisel e falava-se em abertura política. Isso era uma farsa, pois a caça aos comunistas continuava. Em dezembro de 1976, na cidade de São Paulo, os órgãos de repressão atacaram a casa onde se reunia o Comitê Central do PCdoB e assassinaram os dirigentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Na mesma operação João Batista Drummond morreu sob bárbaras torturas e vários outros militantes foram presos e torturados. Era a chamada Chacina da Lapa.


A Anistia Internacional organizou uma campanha específica contra a tortura e pela libertação dos prisioneiros. Atos se realizaram por toda a Europa. Mas seria em Portugal que se conseguiu uma maior mobilização. Um manifesto com 40 mil assinaturas foi levado à embaixada brasileira, mas não foi recebido. No dia 21 de janeiro de 1977 um comício reuniu milhares de pessoas no Palácio dos Desportos na cidade de Lisboa. Novamente Augusto Boal usou a palavra para denunciar a ditadura militar e pedir anistia aos presos político brasileiros.


Alguns anos depois, quando das comemorações dos 30 anos daquela chacina, Boal escreveu uma carta que dizia: “Não só hoje, mas todos os dias, devemos lembrar desses covardes assassinatos, cometidos pela subversiva ditadura cívico-militar que, durante tantos anos, torturou e assassinou tantos patriotas empenhados apenas em restaurar a democracia violada, ditadura que concentrou riquezas e distribuiu misérias. Temos que acreditar na Pedagogia da Memória, não como vingança, mas porque só através do estudo do passado poderemos entender o presente, e preparar o futuro”.


Carlos, Loreta e os Boal se encontrariam mais uma vez em Portugal e depois na França nos anos de exílio. A ditadura militar brasileira – acossada pelo povo – começava a perder força. Em 1979 foi obrigada a conceder a anistia aos presos políticos e autorizar a volta dos exilados. Carlos e Loreta voltariam em janeiro de 1980. Boal levaria ainda mais alguns anos para voltar definitivamente ao Brasil. No seu romance Milagre no Brasil ele buscou descrever as esperanças renascidas entre os prisioneiros políticos depois da chegada das primeiras notícias sobre a existência da Guerrilha do Araguaia. O seu personagem narra os últimos momentos na prisão: “Pedi ao magro que continuasse o seu relato, que não se interrompesse por causa de minha partida. Mas os meus companheiros quiseram se despedir de mim. Me lembro que chorei. Me lembro que depois agarrei a minha mala enquanto o magro retomava o relato e contava da guerrilha do Araguaia que vinha resistindo há dois anos e que estava cada vez mais forte. Não se tratava de um simples foco, mas sim um movimento que contava com o inteiro apoio da população e por isso havia resistido tanto tempo e por isso se fortalecia. Os olhos de Buda brilhavam. Depois de muitos dias, pude ouvir sua voz pedindo: - conta mais, conta mais ...”


“Quando desci, no pátio ainda se podia ouvir sua voz. Abriram um enorme portão de ferro e eu saí. Lá fora, já não se ouvia mais a sua voz. Lá fora tinham medo de falar, muitos tinham a cara de medo. Mas certamente estavam vivos; por dentro, inaudivelmente, estariam gritando que estavam vivos. Fui embora para casa. Se me lembro bem, eu estava contente. Muito contente.”


Hoje não temos mais Loreta e Boal ao nosso lado, mas continuamos seguindo seus passos e nos utilizando sabiamente da pedagogia da memória, não permitindo que nos façam esquecer do nosso passado e nem nos tirem a esperança do futuro. Continuaremos gritando: Estamos vivos!


*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp/Site O Vermelho.


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