A CECÍLIA (HISTÓRIA DE UMA COMUNIDADE ANARQUISTA) Itália / França, 1975 – 105 minutos Direção : Jean-Louis Comolli Intérpretes : Vittorio Mezzogiorno, Massimo Foschi, Maria Carta. Sinopse : História da colônia Cecília, uma experiência anarquista liderada pelo veterinário italiano Giovanni Rossi, no estado do Paraná , em fins do século XIX.
Filme relacionado: O PÃO NEGRO. UM EPISÓDIO DA COLÔNIA CECÍLIA - Direção de Valêncio Xavier (Brasil, 1993, 37 minutos). Entrevistas com descendentes de alguns membros da "Colônia Cecília".
Para conhecer a verdadeira história da Colônia Cecília, experiência que, a partir de 1890, buscou pôr em prática (no Paraná) os princípios anarquistas, leia o estudo de Isabelle Felici, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas: "A verdadeira história da Colônia Cecília de Giovanni Rossi" em:
http://www.ifch.unicamp.br/ael/website-ael_publicacoes/cad-8/Artigo-1-p09.pdf
Colônia Cecília: uma experiência anarquista no Brasil-(A história lendária e não exata. A verdadeira, documentada e comprovada está no livro de Isabelle Felici que lhe conduzirá o link acima)
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Em finais do século XIX Milão despontava, no panorama artístico europeu, pela grandiosidade de seu teatro, por sua vivência cultural e pelo requintado gosto de seu povo. Neste contexto, Giovani Rossi expunha idéias arrojadas a ouvintes atentos. Em conferências e artigos semanais no jornal Lo Sperimentale, de Bréscia, notabilizava-se por seu humanismo e alta compreensão dos problemas sociais dos artesãos, professores e lavradores da região onde vivia. Filósofo anarquista, pronunciava palestras a ouvidos atentos.
D. Pedro II, graças à sua doença, é aconselhado pelos médicos a se tratar na Europa, e depois de várias escalas chega a Milão, em 29 de abril de 1888. Por intermédio do conde de Mota Maia, o Imperador tem conhecimento da obra Il Commune in Riva al Mare, de Rossi, e mostra-se interessado pelo conteúdo humano de seus escritos - que descreviam uma hipotética experiência anarquista em país americano, onde individualismo livre só cederia ao coletivismo se estivesse totalmente impregnado de egoísmo, onde o ideal de liberdade suporia amor livre, inexistência da propriedade privada, ausência de qualquer dogmatismo. Já em agosto, após o regresso ao Brasil, D. Pedro II escreve ao jovem professor, oferecendo-lhe oportunidade de efetivar, na região Sul brasileira, na Província do Paraná, a objetivação de seu ideal.
Quais seriam as causas de medida tão inesperada?
Diversos documentos e referências de época comprovam o descontentamento de D. Pedro II com os resultados efetivos da política imigracionista brasileira em geral, e particularmente na província do Paraná. Visconde de Taunay, a respeito da tentativa frustrada de colonização russo-alemã afirma: A primeira entrada foi de mil trezentas e sessenta e seis pessoas, em 31 de dezembro de 1878, começando desde aí os abusos. Uma fazenda ajustada por três réis a braça quadrada, foi posteriormente paga a seis réi s. Amontoados na vila da Palmeira, sem possibilidade de se mexerem dali, pois lhes eram negados os meios de locomoção, levantaram-se afinal e exigiram repatriação, porquanto as terras que lhes impunham eram imprestáveis e más, conforme haviam verificado com instrumento de sondagem e reagentes químicos. (...) Houve necessidade de sustentar à custa do tesouro público milhares de bocas inutilmente por dois meses inteiros e fretaram-se afinal vapores para levar toda essa gente para Hamburgo.
O desgaste internacional provocado por tal episódio pode ter sido a causa principal para que o Imperador, preocupado em demonstrar que o Brasil oferecia condições vantajosas aos imigrantes, em relação à Argentina e aos Estados Unidos, tenha concedido terras a elementos considerados "nocivos" à ordem política dominante na Itália. Seria correto afirmar que tal medida constituiria considerável ganho diplomático e poderia, ao mesmo tempo, provar que nosso país era realmente capaz de efetuar política imigratória idônea. No entanto, tais interpretações carecem de um estudo mais aprofundado.
Servindo-se do semanário Lo Sperimentale, de Bréscia, Rossi incitou intelectuais, obreiros e lavradores, à viagem experimental. Não descansava, propagando o anarquismo. Freqüentando sedes de corporações operárias, aconselhando lavradores pressionados pelos desajustes econômicos da Itália, animando os temerosos, foi engrossando o número de interessados. Pequenos artesãos e intelectuais aderiram facilmente à idéia, alguns e outros desiludidos com as lutas cansativas pela unidade política italiana. Foram sensíveis, desta forma, aos acenos de uma terra nova, com múltiplas possibilidades de uma vida nova. Trezentos alqueires de terras - mais do que poderiam obter em qualquer região da Itália - pareciam mais do que suficientes para que aquelas famílias pudessem buscar a aplicação prática de seus ideais.
Em 20 de fevereiro de 1890 zarparam em Gênova cerca de 150 anarquistas italianos. Chegando ao planalto dos campos gerais, instalaram-se no que seria o núcleo Cecília em abril de 1890.
O obstáculo com que se defrontou, inicialmente, o núcleo anarquista foi o da organização para o trabalho. Os componentes da imigração vinham precedidos de vocações profissionais, afirmadas em tradições seculares. Giovanni Rossi pressentia naquele instante que até mesmo lavradores sentiriam dificuldades, acostumados a outro tipo de solo. O caso dos artesãos se tornava ainda mais complicado, sendo que a solução encontrada foi justamente dar-lhes tarefas aproximadamente similares às suas profissões. Concluídas as habitações individuais e coletivas, dividido racionalmente o trabalho, entre o contingente de mais de 150 pessoas, os anarquistas se depararam com um fato real: o milho, produto ideal para o cultivo naquelas circunstâncias, não nasce da noite para o dia. No começo, tiveram condições de subsistirem e laborarem a terra graças ao dinheiro que trouxeram, aos instrumentos de trabalho que adquiriram e à compra de sementes e mantimentos. No entanto, viram-se obrigados, mais tarde, a procurar tarefas que lhes proporcionassem o sustento até que pudessem viver tão somente das atividades do núcleo. Os anarquistas concentrados, uns na lavoura, outros em empreitadas contratadas junto ao governo para a construção da estrada de rodagem Serrinha-Santa Bárbara, recebiam salários semanais que auxiliavam os companheiros da Colônia. No suor de cada dia, os anarquistas plantaram mais de oitenta alqueires de chão, na área em que lhe foi cedida, mais dez quilômetros de estrada construíram, em época onde inexistiam possantes máq uinas, nem tratores, muito menos guindastes de transporte de terras para ajudar. Um barracão coletivo, vinte barracões individuais, celeiros, casa da escola, moinho de fubá, tanque de peixes, pavilhão coletivo, que também servia de consultório médico, viveiro de mudas, poços, valos, pomar de pêr as, estábulos, grande lavoura de milho, tudo denunciava dinamismo. Proporcionalmente ao suor do trabalho cresceu o respeito recíproco e puderam as famílias, na colônia e fora dela, assentar profundas raízes de solidariedade humana.
De princípio, em 1890, a estratificação social não chegou a ser perceptível no interior da Colônia, porque tudo precisava ser feito e todos queriam fazer, dentro das possibilidades pessoais e grupais. Chefias e subordinações eram substituídos por estímulos constantes e recíprocos que entre si faziam seus membros. No entanto, os colonos não puderam manter-se afastados das condições existenciais das comunidades, próximas e distantes. Com elas interaram-se os anarquistas, através de ligações comerciais e espirituais. A imprescindível compra de trigo, fubá, feijão, carne, implicou em revisões de conceitos teorizantes de anarquismos, e a estratificação social se fez. Diferente, sem dúvida, daquela maior, avassaladora, fundamento das comunidades rurais brasileiras, a estratificação que se observava nos campos gerais, feita de rígida hierarquia social, a qual se sentia e ainda se sente - prepoderância de elos de dependência da grande massa de trabalhadores a limitado número de proprietários rurais. Quando a assembléia precisou delegar responsabilidades a alguém para gerir todo o dinheiro do núcleo, criou um estrato que seria, mais tarde, responsável em grande parte pelo fracasso da experiência. Contudo, é importante destacar que tal estratificação complementou-se com convenção objetiva, determinada pela aceitação e consenso geral.
Entregues à agricultura, à edificação de casas, às tarefas educacionais, os anarquistas não dispunham de maior oportunidade de relacionamento com o meio externo. O núcleo consumia-lhes toda a atenção, e mostravam euforia nas ocupações. Giovani Rossi inicialmente supunha que a área de trezentos alqueires reservada à Colônia possuísse uma superfície bem delimitada, vizinhos conhecedores de seus direitos e respeitadores das confrontações estabelecidas. Sem a posse dos documentos que comprovassem a propriedade foi, no entanto, surpreendido por um terreno inculto, não medido, de vizinhos inconscientes do que lhes pertencia e, ainda, com o regime imperial extinto em nome da República. Diante de tal conjuntura, desinteressou-se de fazer gestões para medir, transferir domínio ou qualquer relação jurídica com a propriedade. Nela simplesmente viveria com seus companheiros; trabalhariam os campos, fariam riquezas comuns, levantariam edificações comuneiras, oficinas, escolas, uma colméia de trabalho e de satisfações espirituais. Não contava desta forma com uma pol ítica de concessão de terras, com os favores oficiais e com um processo pol ítico interno que buscaria reorientar a administração.
Durante o Império, na constância da política imigratória, D. Pedro II, através de seus Ministros, estimulara por todas as formas a instalação de colônias e núcleos de imigrantes, auxiliando com recursos financeiros e materiais a formação de comunidades. Todavia, pela Lei 3396, de 24 de novembro de 1888, todas as dívidas dos colonos foram transferidas para o Estado do Paraná. Em razão disso, o Governador Américo Lôbo Leite Pereira baixou o Decreto 58, de 31 de março de 1890, que dizia, entre outras coisas: Artigo 1º - Todas as dívidas dos colonos estabelecidos no Estado do Paraná, e ainda não pagas, ficam reduzidas ao preço da aquisição dos lotes rústicos, inclusive as vivendas, perdoados todos e quaisquer outros adiantamentos, assim como os 20% adicionais e mais outros tantos 20%.
Em plena fase de formação de núcleos, muitos chefes de colônias, a maioria sem conhecer a língua nacional, foram incitados a pagar, por vezes com multas, ao arbítrio de autoridades, dívidas que não se justificavam, por vivendas feitas pelos colonos com esforço, suor, trabalho de toda a família. Se esta política imigratória não espantou colonos, sacrificou núcleos, tais como o da Colônia Cecília, Colônia Leopoldina, Colônia Nova Itália, etc.
Ao tomar conhecimento da lei, Rossi preferiu não se desgastar, de imediato, com a autoridade que lhe informava da situação. Preferiu deixar a delegacia de Palmeira e discutir a situação com seus companheiros, antes de tomar qualquer atitude contra tamanha injustiça. Exarcebados pela notícia, os colonos individual e coletivamente comportaram-se com paixão, independência e dignidade, cada um deles expondo seu modo de ver a questão, os exaltados a gritar contra a burguesia exploradora, a exigir reparos na arregimentação dos colonos não só de Cecília, mas de outros lugares, os corajosos menos dogmáticos a entender que não deveriam pagar, os mais prudentes, grupo predominante, a imaginar soluções conciliatórias. Todos, porém, a protestarem contra a excessiva tributação, anulatória de seu trabalho e confiscatória de seus bens, se não pagassem. Por fim, prevaleceu o entendimento de que pagariam a dívida, se obtivessem rendimento das colheitas. Caso contrário, abandonariam a terra.
Até então, o que acontecia fora do núcleo não os atraía, a não ser, evidentemente, o conhecimento das notícias internacionais, em particular, notícias italianas. Agora porém, estavam em face de perigo objetivo, de perder a terra arada e plantada, de abandonar seus pousos e o sustentáculo econômico construído com esforço, no suor de cada dia, de deixarem para outros que nada fizeram aquilo que legitimamente obtiveram. Então, pela primeira vez em conjunto, pensaram seriamente em propriedade, em medí-la e estabelecer divisas naturais, menos como interesse egoístico de possuí-la, do que para afirmá-la contra quem dela queria servir-se, em nome do novo regime político dominante. Ironicamente, apenas em 1897, quando já então os anarquistas haviam abandonado o núcleo, a burocracia vinha a apresentar pedido de medição de terras.
A produção agrícola foi razoável, dentro das previsões dos colonos, em 1890 e 1891. Pequena, mas compensadora ao que se plantou. No entanto, todos os esforços do núcleo foram concentrados na safra de 1893. Cem alqueires de ch ão foram plantados. Os anarquistas selecionaram trabalhadores para o corte do capim - futuro feno -, para a derrubada das espigas, para seu transporte até o pátio do celeiro. Empilhadas em gigantesco pavilhão, construído ao lado do barracão coletivo dos solteiros, as espigas de milho estavam preparadas para a venda. Gariga, misto de argentino e italiano, seria o responsável pelas negociações de venda do milho na cidade.
Entregues ao trabalho de colheita, os anarquistas não pressentiram a desgra ça iminente. O crupe, de caráter epidêmico, deixou cicatrizes nos barracões anarquistas. Sete crianças do núcleo anarquista faleceram. Todo o otimismo da comunidade havia sido arrasado. Rossi perdera duas filhas, e a estrutura dos espíritos estavam abaladas.
Por sua facilidade em fazer amigos, Gariga era o homem do leva e traz, da Colônia à cidade e vice-versa. Responsável pelas compras e vendas de mercadorias, trazia da cidade as cartas, jornais, embrulhos e novidades. Toda a produção de milho foi por ele transportada. Todas as possibilidades não de lucro, mas de sobrevivência do núcleo repousavam no aproveitamento racional do cereal. No entanto, passaram-se dias e José Gariga havia sumido. Para Rossi e os outros idealizadores do projeto o furto representou a destruição de seus ideais postos em termos práticos. Quando Gariga apresentou-se pela primeira vez ao núcleo, apenas indagaram-no se gostaria de viver em colônia anarquista e, respondido que sim, deram-lhe encargos e posição de prestígio. O furto dera a certeza da precariedade moral dos homens, de seu despreparo para experiência do tipo que idealizavam. Na somatória de crises que vivia o núcleo, o furto representou a mais ponderável, porque violentou a ordem anárquica dominante. A semente da desconfiança nascera com o episódio, e poucos demonstraram interesse em tentar tudo de novo, partindo do zero. Oportunidades de trabalho em outras comunidades, vantagens materiais em cidades servidas de luz, água, diversões, fizeram com que o núcleo fosse, aos poucos, abandonado.
Consideramos que a Colônia Cecília não foi um fracasso. Se, materialmente, não atingiu tudo o que se exige de um aglomerado social, serviu, pela ação doutrinária e pelo trabalho de seus membros para consolidar valores. Afirma-se, antes, nas idéias germinadas, na tradição operária de lutas que criou e estimulou. Seus líderes não foram poucos, e cada anarquista deu sua contribuição efetiva ao movimento operário do Paraná, no fim do século.
Lázaro Curvêlo Chaves - Outono de 2001
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REPITO: ESTA É A HISTÓRIA LENDÁRIA ORIGINADA DE INFORMAÇÕES REPASSADAS LEVIANAMENTE. A VERDADEIRA HISTÓRIA, DOCUMENTADA E COMPROVADA ESTÁ NO LIVRO DE 63 PÁGINAS DE Isabelle Felici CUJO LINK DIRETO ESTÁ LÁ EM CIMA. NESTE LIVRO O LEITOR CONHECERÁ TRECHOS DE CORRESPONDÊNCIAS, DE JORNAIS, DE DOCUMENTOS, E DE CAUSOS PITORESCOS COMO O UMA HISTÓRIA CONSTRANGEDORA ENVOLVENDO OS AVÓS DA ZÉLIA GATTAI, AMORES LIBERTÁRIOS ETC.
ResponderExcluirConcordo com Anarcos Péricles. A história do roubo dos avós de Zelia Gattai foi triste, mas há o contexto a considerar. A literatura é linda, mas não é historiografia.
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