A Pedagogia Libertária
Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo
A educação ocupa um lugar estratégico no pensamento e prática anarquistas enquanto fundamento inerente ao processo de transformação da ordem capitalista e a fundação de uma nova ordem social. A preocupação em formar homens livres e conscientes, capazes de revolucionar a sociedade, é constante na obra dos maiores pensadores anarquistas.[1] Há, na tradição libertária, uma vinculação explícita entre educação e luta política. A educação é um objetivo em si para combater a ignorância e a miséria, e, simultaneamente, instrumento de atuação política e social contra os privilégios, as injustiças e todas as formas de opressão e exploração.[2]
A educação é concebida como parte do processo revolucionário, isto é, os anarquistas não imaginam que apenas através do ato educativo a Revolução tornar-se-á realidade, mas vêem a educação como fundamental. Trata-se, na concepção libertária, de romper o círculo vicioso entre a miséria, a ignorância e o preconceito, e, de formar seres humanos autônomos, críticos, solidários e amantes da liberdade. Os libertários questionam todas as relações de opressão, expressão das relações de dominação que envolvem todas as esferas sociais: família, escola, trabalho, religião etc.
O pensamento pedagógico libertário é crítico às relações de poder presentes no processo educativo e às estruturas que proporcionam as condições para que estas relações se reproduzam. Um dos seus princípios centrais é a rejeição de toda e qualquer forma de autoritarismo. Neste aspecto, a pedagogia libertária oscila entre a não-diretividade e a aceitação de processos educacionais diretivos, isto é, em que se manifeste formas de autoridade não-autoritárias.[3]
De qualquer maneira, o questionamento do autoritarismo constitui o âmago da Pedagogia Libertária. Isto significa recusar quaisquer procedimentos que induzam à obediência cega às autoridades e expresse relações opressivas. Na perspectiva bakuninista, trata-se de ensinar a liberdade, o que pressupõe, em determinadas fases do processo educativo, a presença da autoridade. É ela que educa para a liberdade.
O antiautoritarismo não é patrimônio exclusivo da pedagogia inspirada na práxis anarquista. Neste sentido, é preciso considerar outras correntes pedagógicas que centram-se no interesse e experiência do educando.[4] Destacamos, por suas similitudes, a pedagogia libertadora de Paulo Freire[5] e outros educadores críticos que advogam uma pedagogia engajada, radical e crítica em relação aos processos educacionais fundados em bases opressoras e autoritárias.
A Pedagogia Libertária é legatária de um projeto de sociedade fundada na autogestão presente na Associação Internacional dos Trabalhadores (a I Internacional fundada em 1864). A autogestão tanto pode ser assimilada numa perspectiva não-diretiva quando diretiva. Segundo GALLO (1996):
“O que diferencia as duas perspectivas de aplicação da autogestão pedagógica no contexto libertário é que enquanto a primeira toma a autogestão como um meio, a segunda a toma por um fim; em outras palavras, na “tendência não-diretiva” a autogestão é tomada como metodologia de ensino, enquanto que na “tendência mainstream’ [diretiva] ela é assumida como o objetivo da ação pedagógica. Ou, ainda: educa-se pela liberdade ou para a liberdade”. [6]
Os princípios de autogestão e educação integral[7] nortearam várias experiências pedagógicas libertárias: Paul Robin e a organização e direção do orfanato de Cempuis[8]; Sébastien Faure e La ruche (A colméia)[9]; a Escola Moderna Racionalista de Francisco Ferrer, que influenciou os anarquistas brasileiros nas primeiras décadas do século XX[10]; a escola de Yasnaia Poliana, dirigida pelo russo Leon Tolstoi[11]; as práticas libertárias na Espanha, dirigidas pela Confederação Nacional do Trabalho (CNT), etc.
Os primeiros representantes desta pedagogia no Brasil foram os trabalhadores imigrantes — italianos, espanhóis, portugueses, etc. — que, em fins do século XIX, chegavam para trabalhar nas lavouras de café, em substituição à mão-de-obra escrava. Posteriormente, estes imigrantes constituíram uma parcela importante do nascente proletariado urbano brasileiro.[12]
Nas primeiras décadas do século XX, os sindicatos operários tomaram para si a tarefa de criar os espaços necessários para o desenvolvimento desta pedagogia crítica às instituições formais, à educação oficial, laica ou religiosa. Estes espaços alternativos são os centros de estudos sociais, as escolas modernas, as escolas operárias, a universidade popular, etc., onde se desenvolvem experiências fundadas na Pedagogia Libertária, no sentido de formar um novo homem e forjar a nova sociedade.
A Pedagogia Libertária está, portanto, associada ao movimento operário, às primeiras organizações dos trabalhadores, à luta dos trabalhadores, à ação anarquista e anarco-sindicalista contra o Estado, a Igreja e o capitalismo. Sua difusão se dá através da imprensa operária e da ação direta dos libertários. A partir dos anos 20, o ideário comunista, fortalecido pela vitória da Revolução Russa, passa a disputar a hegemonia com os libertários e, pouco a pouco, se imporá enquanto interlocutor dos trabalhadores frente às classes dirigentes. A fundação do Partido Comunista, em 1922, conta com o apoio de anarquistas convertidos ao bolchevismo, como é o caso de Astrogildo Pereira.
A ascensão do movimento comunista, aliado à criação de uma legislação sindical e legalização dos sindicatos durante o governo Vargas, reduz drasticamente a influência do pensamento libertário no movimento operário brasileiro. Evidentemente, a Pedagogia Libertária sofrerá os efeitos desta nova realidade. Neste caso, devemos considerar ainda que, do ponto de vista estritamente pedagógico, esta corrente teve que enfrentar, de um lado, a Pedagogia Tradicional (associada às aspirações dos intelectuais ligadas às oligarquias dirigentes e à Igreja); e, por outro lado, a Pedagogia Nova (expressão das mudanças econômicas, políticas e sociais, isto é, a urbanização, industrialização e fortalecimento das classes médias e da burguesia, que buscavam modernizar o Estado e a sociedade brasileira).
A Pedagogia Libertária sobrevive enquanto projeto social vinculado à tradição anarquista. Ela está presente nas iniciativas de autodidatas e militantes vinculados às lutas sociais; nos centros de cultura que sobrevivem aos períodos de repressão política; no campo acadêmico através da atuação docente e produção de intelectuais engajados, que se identificam ou simpatizam com o pensamento acrático; em experiências isoladas, nas salas de aula de escolas de periferia ou em universidades.[13]
As experiências pedagógicas fundadas no pensamento libertário, internacionais ou no Brasil, apresentam características comuns, o fio condutor que possibilita identificar os fatores que orientam a sua práxis. Vejamos, em resumo:
LIBERDADE: Entendida como meio e fim, a liberdade é intrínseca à prática libertária. Não se trata da liberdade em abstrato ou no sentido liberal, mas da Liberdade construída socialmente e conquistada nas lutas sociais.
ANTIAUTORITARISMO: Essencial à prática pedagógica libertária. A idéia chave subjacente a este conceito é que não é possível combater o autoritarismo e a opressão presentes no Estado, família, escola, etc., sem que, concomitantemente, se formem homens livres; e, não se formam homens livres através de métodos autoritários e de controle.
EDUCAÇÃO INTEGRAL: Os educadores libertários não recusam a ciência e o saber especializado, mas advogam que, antes, o processo educativo se concentre na formação plena (dimensões física, intelectual e moral), que não separe o saber do saber fazer, isto é, que não se fundamente na divisão entre ação e pensamento (trabalho braçal e intelectual).
AUTOGESTÃO: A Pedagogia Libertária enfatiza que os recursos no processo educacional devem ser controlados e administrados pelos diretamente envolvidos e pela comunidade. Isto significa superar a dicotomia Estado/Sociedade e colocar a educação sob controle da sociedade/comunidade.
AUTONOMIA DO INDIVÍDUO: O processo educativo pedagógico centra-se no educando, com pleno respeito aos estágios do seu desenvolvimento e o estímulo para que ele tome o próprio destino em suas mãos. O educando não é tratado como objeto (meio), mas enquanto sujeito e fim em si mesmo.
EXEMPLO: A educação libertária pressupõe a busca da coerência entre o falar e o fazer (discurso e ação): os exemplos educam e falam mais do que as palavras; portanto, o educador deve estar sempre aberto a aprender, a se educar, a reconhecer os erros e dar o bom exemplo, a ser coerente em relação aos meios e fins, a teoria e prática; trata-se de, para além de assumir o pensamento anarquista, ter atitude, uma ética e um modo de ser anarquistas.
CRÍTICA: O educador libertário é um educador crítico: dos conteúdos, dos programas e instituições oficiais, da sociedade e todas as esferas de reprodução de formas de opressão e, inclusive, de si mesmo.
COMPROMISSO E RESPONSABILIDADE SOCIAL: A Pedagogia Libertária é profundamente engajada, no sentido da crítica às estruturas de dominação e da formação de homens e mulheres capazes de atuarem como críticos e sujeitos ativos pela transformação das suas vidas e do meio social. Nesta perspectiva, não há lugar para a neutralidade da educação e do educador. Uma conseqüência lógica dessa maneira de conceber o processo educativo é o compromisso com os oprimidos, os deserdados.
SOLIDARIEDADE: Uma educação fundada em critérios solidários, de ajuda mútua, que recusa tanto os prêmios quanto os castigos e, portanto, os processos classificatórios (exames, notas, etc.) e as relações de ensino-aprendizagem fundadas em critérios competitivos.[14]
[1] William GODWIN (1756-1836) é considerado pioneiro. Ele advogou que o aprendizado é determinado pela “vontade”, pelo interesse do aluno. “A melhor motivação para aprender é a percepção do valor da coisa aprendida. A pior, mesmo que não seja necessário decidir se devemos ou não recorrer a ela, será a coerção e o medo”, escreveu. (In: WOODCOCK, 1986: 251)
[2] A frase de KROPOTKIN, inscrita nos periódicos anarquistas no período da Primeira República, sintetiza como os libertários vinculam educação e política: “Nossa missão é semear o bem, difundir a luz por meio da instrução livre de todos os preconceitos da rotina, criar corações que odeiem a tirania e que desde a infância maldigam os exploradores”. (Citado in GHIRALDELLI JR., 1987: 104)
[3] MORIYÓN (1989: 18-19) nota este aspecto: “Alguns, possivelmente a maioria, querem ser radicais até o final e não admitem desviar um mínimo que seja do respeito inicial concedido à criança; por isso mesmo insistirão no fato de que à criança não se deve impor absolutamente nada, que se tem que deixar que cresçam nelas os seus próprios interesses e opções sociais, inclusive correndo o risco de que essas opções sejam contrárias ao processo ideário libertário. Outros não pretendem chegar a tanto e concebem a educação antiautoritária como um processo no qual se fomenta o espírito de rebelião nas crianças e se lhes ensina a enfrentar o sistema social injusto em que nasceram, correndo inclusive o risco de serem acusados de doutrinar mais do que educar as crianças”. GADOTTI (2001) resgata esta discussão e relata a experiência autogestionária que viveu, entre 1974-1977, na Universidade de Genebra.
[4] São tendências pedagógicas liberais, progressistas e não-diretivas fundadas em teorias desenvolvidas por autores como: John Dewey. Michel Lobrot, Celestin Freinet, C. Rogers, A. Neill e Piaget.
[5] “Paulo Freire foi um educador que se aproximou muito da concepção de Godwin sobre educação. Ele não acreditava em revoluções radicais e sangrentas como Bakunin. Concordava, ao seu modo, com a afirmação de Proudhon que a propriedade é um roubo. Deixava-se perpassar pelas inquietações de um adolescente como La Boétie mesmo aos setenta e alguns anos. Foi, em suma, um educador desejoso por conversas que prezassem a liberdade como valor mais precioso”, afirma PASSETTI. (1998: 11-12) Mais adiante, ele reafirma: “Paulo não foi um anarquista no sentido amplo das ações, mas criou com sua obra um legado libertário que deve ser lido e experimentado por um anarquista livre de preconceitos e sabedor dos impactos históricos de cada época sobre os indivíduos”. (Id.). E mais: “No período compreendido entre o final dos anos 60 até sua morte, Paulo Freire construiu uma obra antiautoritária, em muitos pontos libertária, aproximando-se, por diversas vezes, do anarquismo cristão dos escritores Ernesto Sabato e Leon Tolstoi”. (Id.: 22)
[6] Embora a autogestão seja um dos elementos centrais da Pedagogia Libertária, esta não é a única a levá-la em conta. Como esclarece GALLO (1996): “Ao ser anti-autoritária por definição, a educação anarquista sempre teve na autogestão pedagógica seu foco central, implícita ou explicitamente. Não foi apenas o anarquismo, porém, que assumiu a tendência autogestionária na educação; a autogestão cabe a múltiplas interpretações políticas, do anarquismo mais radical até o liberalismo laissez-faire mais reacionário. Assim, muitas tendências pedagógicas acabaram por assumir práticas total ou parcialmente ligadas ao princípio da autogestão, seja de forma consciente, seja na sutil inocência - ou ignorância - que tudo permite. A autogestão está presente, pois, de Cempuis a Summerhill, do racionalismo pedagógico de Ferrer i Guàrdia ao "escolanovismo" mais liberal, da pedagogia institucional às técnicas de Freinet”. Este texto também foi publicado in: http://www.hipernet.ufsc.br/foruns/autonomia/pedago/gallo/princ.htm; acessado em 28.09.2003.
[7] “O ensino deve ser igual para todos em todos os graus, por conseguinte deve ser integral, quer dizer, deve preparar cada criança de ambos os sexos tanto para a vida do pensamento como para o do trabalho, a fim de que todos possam igualmente tornar-se homens completos”, afirma BAKUNIN. (Ver: “A educação integral”, in: MORIYÓN, 1989: 34-49; a citação é da página 43).
[8] “Podemos considerar o pedagogo Paul Robin (1837-1912) como o principal nome da pedagogia libertária no século dezenove, por ter sido o primeiro a conseguir trabalhar, na prática, as diversas questões educacionais e teóricas que vinham sendo discutidas nos meios socialistas”, enfatiza GALLO (1995b: 87) GALLO analisa esta “primeira experiência prática de educação integral”, que durou 14 anos. (Id.: 91). Ver também: “A educação integral”, de Paul Robin (In: MORIYÓN, 1989: 88-109).
[9] La ruche, “obra de solidariedade e educação”, se apóia na teoria de Piotr Kropotkin (1842-1921) e foi implementada na França, entre os anos 1904-1917. Kropotkin, em oposição ao darwinismo, parte do pressuposto de sobrevivência humana depende da cooperação, solidariedade e ajuda mútua.
[10] Ferrer, a rigor, não foi anarquista, mas sua pedagogia compartilha da tradição vinculada à ilustração – a razão, o espírito da ciência, contra o obscurantismo da ignorância que alimenta o preconceito e a miséria. Profundamente racionalista e antiautoritária, a pedagogia de Ferrer bebe em fontes do pensamento positivista, proporcionando uma simbiose interessante com o pensamento anarquista.
[11] MORIYÓN (1989: 19), observa que o escritor russo, a exemplo de Ferrer, “não pode ser considerado propriamente um anarquista”. Suas concepções religiosas o afastavam do anarquismo; mas, pedagogicamente, “seus conceitos coincidiam substancialmente com a tradição pedagógica anarquista”. MORIYÓN enfatiza: “A Escola de Yasnaia Poliana era tão radical e inovadora como a de Robin e Faure e, inclusive, superava-as na aceitação até as últimas conseqüências da liberdade das crianças, pois na sua escola nada era obrigatório, nem horários, nem programas e nem normas disciplinares”.
[12] Observe-se, no entanto, a tendência persistente presente na historiografia sobre o movimento operário brasileiro em omitir a questão racial, reproduzindo uma concepção branca e eurocêntrica, ao não pesquisar ou a atenuar a presença negra nos movimentos políticos do início do século XX.
[13] Algumas destas experiências são relatadas em LUENGO [et al] (2000). A obra de GALLO (1995a e 1995b), também se insere nas iniciativas de reintroduzir a pedagogia libertária no contexto das práticas e teorias educacionais atuais, como um paradigma a ser considerado e respeitado.
[14] O projeto libertário objetiva a construção de uma sociedade solidária: “A solidariedade é a chave de todo o projeto anarquista que, é lógico, também se transforma em eixo do seu projeto pedagógico. Trata-se de ir além dos ideais de fraternidade universal que haviam sido colocados em destaque pelos seus antecessores ilustrados, mas que rapidamente caíram em desuso pela dinâmica própria das sociedades burguesas e do modelo capitalista imposto por todo lado”. MORIYÓN (1989: 26)
Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP), do Conselho Editorial da Revista Margem Esquerda e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo
A educação ocupa um lugar estratégico no pensamento e prática anarquistas enquanto fundamento inerente ao processo de transformação da ordem capitalista e a fundação de uma nova ordem social. A preocupação em formar homens livres e conscientes, capazes de revolucionar a sociedade, é constante na obra dos maiores pensadores anarquistas.[1] Há, na tradição libertária, uma vinculação explícita entre educação e luta política. A educação é um objetivo em si para combater a ignorância e a miséria, e, simultaneamente, instrumento de atuação política e social contra os privilégios, as injustiças e todas as formas de opressão e exploração.[2]
A educação é concebida como parte do processo revolucionário, isto é, os anarquistas não imaginam que apenas através do ato educativo a Revolução tornar-se-á realidade, mas vêem a educação como fundamental. Trata-se, na concepção libertária, de romper o círculo vicioso entre a miséria, a ignorância e o preconceito, e, de formar seres humanos autônomos, críticos, solidários e amantes da liberdade. Os libertários questionam todas as relações de opressão, expressão das relações de dominação que envolvem todas as esferas sociais: família, escola, trabalho, religião etc.
O pensamento pedagógico libertário é crítico às relações de poder presentes no processo educativo e às estruturas que proporcionam as condições para que estas relações se reproduzam. Um dos seus princípios centrais é a rejeição de toda e qualquer forma de autoritarismo. Neste aspecto, a pedagogia libertária oscila entre a não-diretividade e a aceitação de processos educacionais diretivos, isto é, em que se manifeste formas de autoridade não-autoritárias.[3]
De qualquer maneira, o questionamento do autoritarismo constitui o âmago da Pedagogia Libertária. Isto significa recusar quaisquer procedimentos que induzam à obediência cega às autoridades e expresse relações opressivas. Na perspectiva bakuninista, trata-se de ensinar a liberdade, o que pressupõe, em determinadas fases do processo educativo, a presença da autoridade. É ela que educa para a liberdade.
O antiautoritarismo não é patrimônio exclusivo da pedagogia inspirada na práxis anarquista. Neste sentido, é preciso considerar outras correntes pedagógicas que centram-se no interesse e experiência do educando.[4] Destacamos, por suas similitudes, a pedagogia libertadora de Paulo Freire[5] e outros educadores críticos que advogam uma pedagogia engajada, radical e crítica em relação aos processos educacionais fundados em bases opressoras e autoritárias.
A Pedagogia Libertária é legatária de um projeto de sociedade fundada na autogestão presente na Associação Internacional dos Trabalhadores (a I Internacional fundada em 1864). A autogestão tanto pode ser assimilada numa perspectiva não-diretiva quando diretiva. Segundo GALLO (1996):
“O que diferencia as duas perspectivas de aplicação da autogestão pedagógica no contexto libertário é que enquanto a primeira toma a autogestão como um meio, a segunda a toma por um fim; em outras palavras, na “tendência não-diretiva” a autogestão é tomada como metodologia de ensino, enquanto que na “tendência mainstream’ [diretiva] ela é assumida como o objetivo da ação pedagógica. Ou, ainda: educa-se pela liberdade ou para a liberdade”. [6]
Os princípios de autogestão e educação integral[7] nortearam várias experiências pedagógicas libertárias: Paul Robin e a organização e direção do orfanato de Cempuis[8]; Sébastien Faure e La ruche (A colméia)[9]; a Escola Moderna Racionalista de Francisco Ferrer, que influenciou os anarquistas brasileiros nas primeiras décadas do século XX[10]; a escola de Yasnaia Poliana, dirigida pelo russo Leon Tolstoi[11]; as práticas libertárias na Espanha, dirigidas pela Confederação Nacional do Trabalho (CNT), etc.
Os primeiros representantes desta pedagogia no Brasil foram os trabalhadores imigrantes — italianos, espanhóis, portugueses, etc. — que, em fins do século XIX, chegavam para trabalhar nas lavouras de café, em substituição à mão-de-obra escrava. Posteriormente, estes imigrantes constituíram uma parcela importante do nascente proletariado urbano brasileiro.[12]
Nas primeiras décadas do século XX, os sindicatos operários tomaram para si a tarefa de criar os espaços necessários para o desenvolvimento desta pedagogia crítica às instituições formais, à educação oficial, laica ou religiosa. Estes espaços alternativos são os centros de estudos sociais, as escolas modernas, as escolas operárias, a universidade popular, etc., onde se desenvolvem experiências fundadas na Pedagogia Libertária, no sentido de formar um novo homem e forjar a nova sociedade.
A Pedagogia Libertária está, portanto, associada ao movimento operário, às primeiras organizações dos trabalhadores, à luta dos trabalhadores, à ação anarquista e anarco-sindicalista contra o Estado, a Igreja e o capitalismo. Sua difusão se dá através da imprensa operária e da ação direta dos libertários. A partir dos anos 20, o ideário comunista, fortalecido pela vitória da Revolução Russa, passa a disputar a hegemonia com os libertários e, pouco a pouco, se imporá enquanto interlocutor dos trabalhadores frente às classes dirigentes. A fundação do Partido Comunista, em 1922, conta com o apoio de anarquistas convertidos ao bolchevismo, como é o caso de Astrogildo Pereira.
A ascensão do movimento comunista, aliado à criação de uma legislação sindical e legalização dos sindicatos durante o governo Vargas, reduz drasticamente a influência do pensamento libertário no movimento operário brasileiro. Evidentemente, a Pedagogia Libertária sofrerá os efeitos desta nova realidade. Neste caso, devemos considerar ainda que, do ponto de vista estritamente pedagógico, esta corrente teve que enfrentar, de um lado, a Pedagogia Tradicional (associada às aspirações dos intelectuais ligadas às oligarquias dirigentes e à Igreja); e, por outro lado, a Pedagogia Nova (expressão das mudanças econômicas, políticas e sociais, isto é, a urbanização, industrialização e fortalecimento das classes médias e da burguesia, que buscavam modernizar o Estado e a sociedade brasileira).
A Pedagogia Libertária sobrevive enquanto projeto social vinculado à tradição anarquista. Ela está presente nas iniciativas de autodidatas e militantes vinculados às lutas sociais; nos centros de cultura que sobrevivem aos períodos de repressão política; no campo acadêmico através da atuação docente e produção de intelectuais engajados, que se identificam ou simpatizam com o pensamento acrático; em experiências isoladas, nas salas de aula de escolas de periferia ou em universidades.[13]
As experiências pedagógicas fundadas no pensamento libertário, internacionais ou no Brasil, apresentam características comuns, o fio condutor que possibilita identificar os fatores que orientam a sua práxis. Vejamos, em resumo:
LIBERDADE: Entendida como meio e fim, a liberdade é intrínseca à prática libertária. Não se trata da liberdade em abstrato ou no sentido liberal, mas da Liberdade construída socialmente e conquistada nas lutas sociais.
ANTIAUTORITARISMO: Essencial à prática pedagógica libertária. A idéia chave subjacente a este conceito é que não é possível combater o autoritarismo e a opressão presentes no Estado, família, escola, etc., sem que, concomitantemente, se formem homens livres; e, não se formam homens livres através de métodos autoritários e de controle.
EDUCAÇÃO INTEGRAL: Os educadores libertários não recusam a ciência e o saber especializado, mas advogam que, antes, o processo educativo se concentre na formação plena (dimensões física, intelectual e moral), que não separe o saber do saber fazer, isto é, que não se fundamente na divisão entre ação e pensamento (trabalho braçal e intelectual).
AUTOGESTÃO: A Pedagogia Libertária enfatiza que os recursos no processo educacional devem ser controlados e administrados pelos diretamente envolvidos e pela comunidade. Isto significa superar a dicotomia Estado/Sociedade e colocar a educação sob controle da sociedade/comunidade.
AUTONOMIA DO INDIVÍDUO: O processo educativo pedagógico centra-se no educando, com pleno respeito aos estágios do seu desenvolvimento e o estímulo para que ele tome o próprio destino em suas mãos. O educando não é tratado como objeto (meio), mas enquanto sujeito e fim em si mesmo.
EXEMPLO: A educação libertária pressupõe a busca da coerência entre o falar e o fazer (discurso e ação): os exemplos educam e falam mais do que as palavras; portanto, o educador deve estar sempre aberto a aprender, a se educar, a reconhecer os erros e dar o bom exemplo, a ser coerente em relação aos meios e fins, a teoria e prática; trata-se de, para além de assumir o pensamento anarquista, ter atitude, uma ética e um modo de ser anarquistas.
CRÍTICA: O educador libertário é um educador crítico: dos conteúdos, dos programas e instituições oficiais, da sociedade e todas as esferas de reprodução de formas de opressão e, inclusive, de si mesmo.
COMPROMISSO E RESPONSABILIDADE SOCIAL: A Pedagogia Libertária é profundamente engajada, no sentido da crítica às estruturas de dominação e da formação de homens e mulheres capazes de atuarem como críticos e sujeitos ativos pela transformação das suas vidas e do meio social. Nesta perspectiva, não há lugar para a neutralidade da educação e do educador. Uma conseqüência lógica dessa maneira de conceber o processo educativo é o compromisso com os oprimidos, os deserdados.
SOLIDARIEDADE: Uma educação fundada em critérios solidários, de ajuda mútua, que recusa tanto os prêmios quanto os castigos e, portanto, os processos classificatórios (exames, notas, etc.) e as relações de ensino-aprendizagem fundadas em critérios competitivos.[14]
[1] William GODWIN (1756-1836) é considerado pioneiro. Ele advogou que o aprendizado é determinado pela “vontade”, pelo interesse do aluno. “A melhor motivação para aprender é a percepção do valor da coisa aprendida. A pior, mesmo que não seja necessário decidir se devemos ou não recorrer a ela, será a coerção e o medo”, escreveu. (In: WOODCOCK, 1986: 251)
[2] A frase de KROPOTKIN, inscrita nos periódicos anarquistas no período da Primeira República, sintetiza como os libertários vinculam educação e política: “Nossa missão é semear o bem, difundir a luz por meio da instrução livre de todos os preconceitos da rotina, criar corações que odeiem a tirania e que desde a infância maldigam os exploradores”. (Citado in GHIRALDELLI JR., 1987: 104)
[3] MORIYÓN (1989: 18-19) nota este aspecto: “Alguns, possivelmente a maioria, querem ser radicais até o final e não admitem desviar um mínimo que seja do respeito inicial concedido à criança; por isso mesmo insistirão no fato de que à criança não se deve impor absolutamente nada, que se tem que deixar que cresçam nelas os seus próprios interesses e opções sociais, inclusive correndo o risco de que essas opções sejam contrárias ao processo ideário libertário. Outros não pretendem chegar a tanto e concebem a educação antiautoritária como um processo no qual se fomenta o espírito de rebelião nas crianças e se lhes ensina a enfrentar o sistema social injusto em que nasceram, correndo inclusive o risco de serem acusados de doutrinar mais do que educar as crianças”. GADOTTI (2001) resgata esta discussão e relata a experiência autogestionária que viveu, entre 1974-1977, na Universidade de Genebra.
[4] São tendências pedagógicas liberais, progressistas e não-diretivas fundadas em teorias desenvolvidas por autores como: John Dewey. Michel Lobrot, Celestin Freinet, C. Rogers, A. Neill e Piaget.
[5] “Paulo Freire foi um educador que se aproximou muito da concepção de Godwin sobre educação. Ele não acreditava em revoluções radicais e sangrentas como Bakunin. Concordava, ao seu modo, com a afirmação de Proudhon que a propriedade é um roubo. Deixava-se perpassar pelas inquietações de um adolescente como La Boétie mesmo aos setenta e alguns anos. Foi, em suma, um educador desejoso por conversas que prezassem a liberdade como valor mais precioso”, afirma PASSETTI. (1998: 11-12) Mais adiante, ele reafirma: “Paulo não foi um anarquista no sentido amplo das ações, mas criou com sua obra um legado libertário que deve ser lido e experimentado por um anarquista livre de preconceitos e sabedor dos impactos históricos de cada época sobre os indivíduos”. (Id.). E mais: “No período compreendido entre o final dos anos 60 até sua morte, Paulo Freire construiu uma obra antiautoritária, em muitos pontos libertária, aproximando-se, por diversas vezes, do anarquismo cristão dos escritores Ernesto Sabato e Leon Tolstoi”. (Id.: 22)
[6] Embora a autogestão seja um dos elementos centrais da Pedagogia Libertária, esta não é a única a levá-la em conta. Como esclarece GALLO (1996): “Ao ser anti-autoritária por definição, a educação anarquista sempre teve na autogestão pedagógica seu foco central, implícita ou explicitamente. Não foi apenas o anarquismo, porém, que assumiu a tendência autogestionária na educação; a autogestão cabe a múltiplas interpretações políticas, do anarquismo mais radical até o liberalismo laissez-faire mais reacionário. Assim, muitas tendências pedagógicas acabaram por assumir práticas total ou parcialmente ligadas ao princípio da autogestão, seja de forma consciente, seja na sutil inocência - ou ignorância - que tudo permite. A autogestão está presente, pois, de Cempuis a Summerhill, do racionalismo pedagógico de Ferrer i Guàrdia ao "escolanovismo" mais liberal, da pedagogia institucional às técnicas de Freinet”. Este texto também foi publicado in: http://www.hipernet.ufsc.br/foruns/autonomia/pedago/gallo/princ.htm; acessado em 28.09.2003.
[7] “O ensino deve ser igual para todos em todos os graus, por conseguinte deve ser integral, quer dizer, deve preparar cada criança de ambos os sexos tanto para a vida do pensamento como para o do trabalho, a fim de que todos possam igualmente tornar-se homens completos”, afirma BAKUNIN. (Ver: “A educação integral”, in: MORIYÓN, 1989: 34-49; a citação é da página 43).
[8] “Podemos considerar o pedagogo Paul Robin (1837-1912) como o principal nome da pedagogia libertária no século dezenove, por ter sido o primeiro a conseguir trabalhar, na prática, as diversas questões educacionais e teóricas que vinham sendo discutidas nos meios socialistas”, enfatiza GALLO (1995b: 87) GALLO analisa esta “primeira experiência prática de educação integral”, que durou 14 anos. (Id.: 91). Ver também: “A educação integral”, de Paul Robin (In: MORIYÓN, 1989: 88-109).
[9] La ruche, “obra de solidariedade e educação”, se apóia na teoria de Piotr Kropotkin (1842-1921) e foi implementada na França, entre os anos 1904-1917. Kropotkin, em oposição ao darwinismo, parte do pressuposto de sobrevivência humana depende da cooperação, solidariedade e ajuda mútua.
[10] Ferrer, a rigor, não foi anarquista, mas sua pedagogia compartilha da tradição vinculada à ilustração – a razão, o espírito da ciência, contra o obscurantismo da ignorância que alimenta o preconceito e a miséria. Profundamente racionalista e antiautoritária, a pedagogia de Ferrer bebe em fontes do pensamento positivista, proporcionando uma simbiose interessante com o pensamento anarquista.
[11] MORIYÓN (1989: 19), observa que o escritor russo, a exemplo de Ferrer, “não pode ser considerado propriamente um anarquista”. Suas concepções religiosas o afastavam do anarquismo; mas, pedagogicamente, “seus conceitos coincidiam substancialmente com a tradição pedagógica anarquista”. MORIYÓN enfatiza: “A Escola de Yasnaia Poliana era tão radical e inovadora como a de Robin e Faure e, inclusive, superava-as na aceitação até as últimas conseqüências da liberdade das crianças, pois na sua escola nada era obrigatório, nem horários, nem programas e nem normas disciplinares”.
[12] Observe-se, no entanto, a tendência persistente presente na historiografia sobre o movimento operário brasileiro em omitir a questão racial, reproduzindo uma concepção branca e eurocêntrica, ao não pesquisar ou a atenuar a presença negra nos movimentos políticos do início do século XX.
[13] Algumas destas experiências são relatadas em LUENGO [et al] (2000). A obra de GALLO (1995a e 1995b), também se insere nas iniciativas de reintroduzir a pedagogia libertária no contexto das práticas e teorias educacionais atuais, como um paradigma a ser considerado e respeitado.
[14] O projeto libertário objetiva a construção de uma sociedade solidária: “A solidariedade é a chave de todo o projeto anarquista que, é lógico, também se transforma em eixo do seu projeto pedagógico. Trata-se de ir além dos ideais de fraternidade universal que haviam sido colocados em destaque pelos seus antecessores ilustrados, mas que rapidamente caíram em desuso pela dinâmica própria das sociedades burguesas e do modelo capitalista imposto por todo lado”. MORIYÓN (1989: 26)
LEIAM AQUI UM RACIOCÍNIO MAIS PROFUNDO SOBRE A PEDAGOGIA LIBERTÁRIA FEITA POR SÍLVIO GALLO
E AQUI "A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA" FEITA POR ANGELA MARIA SOUZA MARTINS
Magnífico esse texto, muito enriquecedor, lendo lembrei de algumas coisas que pesquisei (livros, vídeos...) de Paulo Freire. Estudei um pouco sobre ele, fiz um trabalho sobre Educação e Liberdade em Paulo Freire. Adorei: “A melhor motivação para aprender é a percepção do valor da coisa aprendida. A pior, mesmo que não seja necessário decidir se devemos ou não recorrer a ela, será a coerção e o medo(William GODWIN (1756-1836). Com certeza muito prazeroso lê.
ResponderExcluirAdorei:
ResponderExcluiros exemplos educam e falam mais do que as palavras; portanto, o educador deve estar sempre aberto a aprender, a se educar, a reconhecer os erros e dar o bom exemplo, a ser coerente em relação aos meios e fins, a teoria e prática; trata-se de, para além de assumir o pensamento anarquista, ter atitude, uma ética e um modo de ser anarquistas.