sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

EDÉLCIO MOSTAÇO* - UM POUCO DE ANARQUIA NÃO FAZ MAL A NINGUÉM

gravura do Proudhon raciocinando


O dia 15 de janeiro de 2009 marcou o bicentenário do nascimento de Pierre-Joseph Proudhon ( 1809 – 1865), por muitos considerado o pai do anarquismo. A data, reduzida a notinhas discretas na imprensa de esquerda, passou inteiramente em branco; bem ao contrário do que ocorreu por ocasião do centenário, no começo do século passado, quando a cidade de Besançon, terra natal de Proudhon, recebeu uma estátua em bronze solenemente inaugurada pelo presidente da França.
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Após o triunfo da onda burguesa marcada pelo 18 Brumário, o país vai conhecer um novo processo de insurreição apenas em 1848, quando se inicia s Segunda República, pretendendo reavivar os sentidos revolucionários então perdidos. Proudhon foi então eleito deputado da Assembléia Nacional, aquela que forjou uma nova constituição e onde ele militou com afinco em benefício da implantação de uma nova ordem social.
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Num momento em que assistimos à renascença dos ideais de grupo nos coletivos teatrais brasileiros, voltar às bases do anarquismo certamente não fará mal a ninguém, podendo ajudar a esclarecer alguns procedimento em curso, cujas origens estão nesse movimento político. Embora o insubordinado Proudhon tenha sido declarado o pai do anarquismo, esse, sem dúvida, não nasceu com ele nem teve seus contornos conceituais e filosóficos inteiramente traçados em sua obra. Tanto o socialismo quanto o anarquismo possuem manifestações ao longo de toda a história ocidental e uma inextrincável rede de relações mútuas interliga os dois sistemas políticos.
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A UTOPIA
Se nos primórdios utopia significou uma falta de lugar, uma terra inexistente, um país ideal onde tudo e todos viviam felizes, logo a noção imantou-se de significados mais concretos: o desejo e a vontade de lutar por um mundo mais justo e igualitário. Esse desejo é reconhecido como central pelo anarquismo, como a pulsão primária que impele os homens à vida social, ao desfrute gregário, à partilha dos bens comuns, à ausência de poder central; daí “An-Archia” – não poder. Tais sentidos foram indelevelmente forjados no pensamento do chamado socialismo utópico, através das obras de Saint-Simon, Fourier, Orwen e Godwin, eminentes contemporâneos da era pré e pós Revolução Francesa.
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Proudhon distinguiu-se como incansável batalhador das causas populares, tendo apresentado à Assembléia Nacional o projeto de um Banco do Povo, iniciativa que visava romper o oligopólio capitalista e possibilitar, pela primeira vez, a ampla circulação da riqueza. Para ele a revolução política era apenas o primeiro passo para outra mais decisiva, a revolução social, uma vez que somente esta poderia assentas as bases de uma nova cultura pública, cidadã e libertária. Tal é a base utópica do anarquismo: a abolição da propriedade e do Estado como mediação à livre organização popular e a distribuição da riqueza segundo as necessidades de cada um. Tais ideais não são comunistas, como pensam alguns, mas socialistas e anarquistas, fincadas numa sólida base nascida da convivência entre grupos sociais quando irmanados numa tarefa comum. Por recusar a existência do partido único e a hierarquia política da burocracia sindical, Proudhon foi apontado por Marx como “uma contradição viva”, desentendimento entre ambos que se torna definitivo em 1847, e acabará levando ao aleijamento dos proudhonianistas quando da fundação da Primeira Internacional Socialista, em 1864.
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Para Proudhon, havia uma dialética positiva e outra negativa em suas proposições; onde, de um lado, o Estado, a Igreja e a propriedade deveriam ser duramente atacados e rejeitados, ao mesmo tempo em que, através de contínuos experimentos sociais ligados à livre associação, à reciprocidade (base do mutualismo), à igualdade e ao federalismo, uma nova ordem seria forjada, paulatinamente, através das novas relações que frutificassem. Ou seja, havia uma radical oposição entre os dois líderes quanto à política: Marx defendendo a necessidade do partido operário conduzir a organização das massas e Proudhon militando pela livre associação.
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No verbete Anarquia, que ele escreveu para o Dicionário Larousse, surge anotado:
(...) com essa palavra quero indicar o termo final do progresso político. A anarquia é, se assim pode-se expressar, uma forma de governo ou de constituição na qual a consciência pública e privada, formada pelo desenvolvimento da ciência e do direito, é suficiente para manter a ordem e para garantir todas as liberdades; na qual, portanto, o princípio de autoridade, as instituições policiais, os instrumentos de prevenção e repressão, a burocracia, o fisco, etc., estejam reduzidos e simplificados ao máximo; onde ainda com mais razão, as instituições monárquicas e a centralização sejam substituídas pelas formas federativas. (...) As leis funcionarão por elas mesmas, sem vigilância e sem imposição, por meio da espontaneidade universal.
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A vida, os escritos e a ação política de Proudhon serviram para inspirar um jovem russo de classe abastada que, atendendo ao chamamento revolucionário, renunciou à benesses de sua classe de origem e atirou-se no mundo: Mikhail Bakunin (1814- 1876). Com ele o anarquismo irá conhecer contornos mais efetivos, uma vez que, nos embates concretos frente à condução da luta dos oprimidos posteriores à Primeira Internacional, a discussão não mais ocorria no terreno das possibilidades, mas no das alternativas.
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Em Dresde, após os levantes de 1849, Bakunin ganhou projeção em toda a Europa, mas também conheceu uma sucessão de prisões e perseguições pela polícia, culminadas com seu encarceramento na Sibéria. Reafirmando a necessidade do internacionalismo e do federalismo defendidos por Proudhon, o novo líder anarquista igualmente lutou pela necessidade da abolição do Estado e do princípio autoritário na condução da revolução social. Foi ele o principal articulador e difusor da noção de autogestão, assim como da negação do partido único e da ditadura do proletariado.
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Após sua morte o anarquismo conhecerá dois outros grandes nomes: o russo Pyotr Alexeyevich Kropotkin (1842-1921) e o italiano Enrico Malatesta (1853 – 1932). Marcados pelo positivismo da segunda metade do século XIX, o primeiro efetivou uma re-interpretação da dialética hegeliana sob os auspícios da ciência, rejeitando o princípio darwinista de vitória dos mais fortes em relação aos mais fracos como uma lei natural; advogando, ao contrário, o pleno desenvolvimento humano tendo como base o mutualismo, o fim do individualismo burguês e a exploração recíproca entre seres humanos.Suas idéias frutificaram especialmente na Espanha por ocasião da proclamação da república (1936), conformando ali uma das mais expressivas manifestações do anarquismo em todos os tempos. O segundo marcou-se pelo agudo realismo, investindo contra o ingênuo otimismo que sempre rondou muitas ações anarquistas, afirmando que tal sistema não corresponde a uma evolução natural – histórica ou moral - , mas a uma conquista da inteligência frente à barbárie instituída, um triunfo da razão humana. Para ele conta mais o exemplo que o discurso, a elevação ética que enfrenta a degradação, a injustiça ou a violência do sistema instituído. Devoto de um pacifismo de base, não descartou, contudo, o recurso à violência para combater as ações daqueles que oprimem os seres humanos.
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ARTE E CULTURA
Ao contrário dos comunistas, os anarquistas sempre dedicaram especial atenção à arte e à cultura, reconhecendo no movimento do espírito a base sobre a qual deve ser edificada a ação social transformadora. Neste sentido, fortes laços interligam a criatividade à pedagogia, fundamentando um outro território em relação aos conflitos sociais. O anarquismo reconhece que a ignorância leva à miséria e esta à ignorância, circulo vicioso dificilmente quebrado quando deixado à espontaneidade. Daí ter apoiado todas as grandes inovações ligadas à pedagogia laica surgida entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, bem como a atuação das vanguardas artísticas que marcaram o mesmo período.
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Para Bakunin, três princípios devem reger a construção pedagógica da sociedade: o nascimento sob condições de higiene; uma educação racional e integral, acompanhada de instrução baseada no trabalho, na razão, na igualdade e na liberdade; e um meio social onde o indivíduo cresça igual aos demais, isto é, reconhecendo de fato e de direito os limites que devem reger a convivência humana (O sistema do anarquismo). A essa associação entre trabalho manual e intelectual foi dado o nome de educação integral, visando ultrapassar as dicotomias associadas ao culto do indivíduo e à exacerbação subjetiva. A cultura em geral – e a arte em particular – ocupam papel de relevo na constituição do sujeito, promovendo uma indissociável relação entre saúde, beleza, inteligência e bondade, quatro dos fundamentos que devem guiar toda a atividade experimental.
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Contra a educação religiosa ou estatal, as maiores instituições repetidoras dos padrões existentes, o anarquismo voltou-se para o cultivo da cultura laica, incentivando festivais e atividades ao ar livre, nas quais o teatro sempre ocupou papel de destaque. Atividade grupal excelência, o teatro incentiva o desabrochar das personalidades, a superação de inibições e a discussão dos comportamentos que atravessam o grupo, quer no sentido real quanto metafórico, fazendo aflorar a gênese das contradições sociais, dos preconceitos e da má-educação que presidem a vida capitalista. Além da escola, a cultura fornece um acréscimo contínuo de novas experiências tanto para qume a pratica quanto para quem a usufrui, fomentando um envolvimento que dura toda a vida.
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O anarquismo esteve presente nas manifestações da vanguarda russa no período revolucionário, bem como orientando muitas ações dadaístas, expressionistas e surrealistas. Na segunda metade do século XX foi assumido por diversos grupos estadunidenses de projeção, como o Living Theatre, o San Francisco Mime Troupe, o Bread and Puppet, o Teatro Campesino, entre outros, alargando as fronteiras culturais de temas e problemas abarcados nas produções.
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No final do século XIX e nas primeiras décadas do XX o anarquismo promoveu um assas curioso modo de propagar a cultura e a arte: as seratas ou veladas, uma seqüência de atrações que geralmente enfileirava um recital de poesia, um drama, uma conferência, uma comédia ou farsa e, culminando o evento, um baile. Autores ligados ao movimento encontraram, nesse ambiente, condições para exercício da criatividade e desenvolvimento dos respectivos talentos artísticos, em produções que tomavam os temas da época como assuntos centrais.
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No Brasil, São Paulo conheceu amplo desenvolvimento dessas seratas, entre as décadas de 1900 e 1930, especialmente entre os imigrantes italianos e espanhóis, cuja maioria era ligada ao anarquismo ou ao anarco-sindicalismo. Uma amostragem dessa produção cênica foi reunida pela pesquisadora Maria Thereza Vargas no livro “Antologia do teatro anarquista”, lançamento recente da editora Martins Fontes, com textos de Foscolo, Spagnolo e Catallo.
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GLOSSÁRIO
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Anarco- sindicalismo: no final do século XIX alguns anarquistas decidem associar-se ao movimento sindical, abandonando as táticas anteriores. A CNT foi a maior expressão dessa corrente.
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Ateísmo : deus é a fonte de toda a opressão, pois transforma o homem em escravo e o faz dele dependente. Razão pela qual o ateísmo foi cultivado, ao lado do anti-clericalismo em relação a todas as Igrejas estabelecidas.
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Anti-politicismo: as táticas anarquistas marcam-se pela ação direta e pelo exemplo de luta, razão pela qual sempre se recusou a participar do jogo político inerente às assembléias e parlamentos burgueses. Os políticos profissionais são considerados opressores do povo e a autogestão é estimulada como modo de associação.
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Autogestão: a associação anarquista é autogestionada pelos seus integrantes, sem dependência de um modelo prévio ou poder central. Conselhos livres e o princípio federalista norteiam a ação dos grupos anarquistas.
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Coletivismo: modo de produção onde todos os bens são coletivos, mas fica assegurada uma remuneração a todos os que participam do projeto segundo seu empenho e incumbência.
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Educação integral: pedagogia que une estreitamente atividades físicas e intelectuais, visando o desenvolvimento amplo do indivíduo, sem dicotomias ou hierarquias, apoiada, sobretudo, em métodos experimentais.
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Federalismo: Princípio político sem hierarquia que visa interligar e fazer circular as informações e estratégias entre os vários coletivos de trabalho e comunas que formam o país. Os representantes são livremente eleitos e possuem mandatos revogáveis, significando o fim do poder central e/ou estatal.
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Greve geral: tática difundida no final do século XIX, com o objetivo de criar um colapso no sistema político e administrativo dos estados existentes, visando criar as condições para uma mais rápida mudança do modo de produção capitalista.
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Exemplo: tática em vigor no final do século XIX que consiste na ação direta e na insurreição através de pequenos atos isolados que visam chamar a atenção para uma situação opressora mais reconhecível. Não substitui a luta contínua, mas apenas configura uma violência pontual, atualmente classificada como terrorismo.
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Libertário: tudo o que implica ou enseja a liberdade integral do indivíduo, cerne filosófico do anarquismo. Não deve ser confundido com ausência de normas de conduta, indolência ou individualismo; mas, ao contrário, o permanente empenho por concretizar a liberdade em todas as suas acepções e domínios, visando liberar o ser humano de suas amarras. O ideal libertário é sempre de cunho coletivo.
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Utopia: referência às sociedades ou países (reais ou imaginários) onde ocorre um projeto de sociedade ideal; significando, igualmente, todos os experimentos atuais onde um conjunto de idéias e práticas libertárias visa fundamentar as bases de uma nova sociedade, igualitária e justa, motor do esforço solidário para modificar a realidade existente.
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EDELCIO MOSTAÇO* – professor universitário da UDESC, crítico e ensaísta.
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Referências Bibliográficas:
- DROZ, Jaques. Historie General du Socialisme. 3 vols. Paris: Presses Universitaires de France, 1972.

- BAKUNIN. El Sistema del Anarquismo. Buenos Aires: Proyección, 1973.

- GUÉRIN, Daniel. Proudhon – Biblioteca Anarquista. Porto Alegre: LPM, 1983.

- MORIYON, Felix Garcia. Del Socialismo Utópico al Anarquismo. Madrid: Cinzel, 1985.

- TRINDADE, Francisco. O Essencial Proudhon. São Paulo: Imaginário, 2001.

-PROUDHON, Pierre-Joseph. A Propriedade É Um Roubo. Porto Alegre: LPM, 1997.

- WOODCOCK, George. Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LPM, 1981.
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ESTE ARTIGO FOI COPIADO DA REVISTA CAVALO LOUCO nº6 – EDITADA PELOS ATUADORES DA TERREIRA DA TRIBO DE ATUADORES ÓiNóisAquiTraveis EM PORTO ALEGRE.
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