sábado, 12 de dezembro de 2009

*VALMIR SANTOS - CRÍTICA AO THÉÂTRE DU SOLEIL - INVENTÁRIO DO PRESENTE


INVENTÁRIO DO PRESENTE
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“O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente”
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Juízo Final, letra de Nelson Cavaquinho e Elcio Soares
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A passagem de “os Efêmeros”(Lês Éphémères) pelas cidades de Porto Alegre e São Paulo é eternizada na memória de quem assistiu ao espetáculo mais recente da companhia francesa Théâtre Du Soleil, que veio pela primeira vez ao Brasil em 43 anos de história. Trata-se de um projeto artístico que estimula público e criadores a repensar seus papéis nessa arte.
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O espetáculo integral dura oito horas e compreende não só a cena, mas sua órbita. Assim que chega ao espaço (o Galpão Humaitá, para os gaúchos, e o SESC Belenzinho, para os paulistas), o espectador caminha até uma das duas platéias, leste ou oeste. Escolhe um lugar, retira o adesivo com o número do respectivo assento e o cola no ingresso . Exercita o livre arbítrio e tira um pouco daquela camada proprietária sobre o assento transitório.
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No fundo, é uma forma do Soleil estimular o público a chegar mais cedo ao teatro e descobrir outros papéis que pode desempenhar como espectador e cidadão. Antes do início. Pode-se ir ao bar comprar os pratos feitos pelos artistas, invariavelmente carne, legumes, queijos e doces. No intervalo, a demanda é maior e convém paciência.
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Os artistas que servem a comida não estão preocupados em ser garçons de fast-food. Muita gente vai bufar, mas eis a chance para resgatar a percepção dos tempos do outro e de si. O ato de comer agrega. A ambientação inclui mesas retangulares de madeira e bancos longos, em conformação que coloca o comensal de frente para o outro. Toalhas, velas, aroma dos pratos, fundo musical, tudo envolve a todos. O camarim é aberto.
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Em sua cosmogonia peculiar, o Soleil reafirma ideais socializantes, mesmo ao tecer universos particulares. Após montagens apoiadas em narrativas épicas de conflitos vividos por outros povos, a trupe volta-se para seu corpo e memória. Expõe fragmentos pessoais dos intérpretes numa dramaturgia de embarque e desembarque por épocas e lugares.
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Às vezes, parece que o trem sai dos trilhos pelo descomedimento, ausência de uma cabeça exterior que represe tantas emoções e comoções. Mas é sensação também passageira. Na subversão ao relógio, “Os Efêmeros” concilia emoção e consciência de mundo.
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Há uma sincera beleza em lidar com esses estados interiores, até como documento histórico da humanidade em seus dramas, tragédias e comédias. O teatro é consagrado em sua menor grandeza, como na minúcia dos objetos nas plataformas que deslizam sobre rodinhas ou no brio dos artistas que as empurram, protagonistas na coreografia e no olhar tanto quanto os colegas que atuam em cima dos tablados.
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Sob a perspectiva do teatro paulistano atual, o Soleil também diz muito. O modo de produzir é tão radical quanto o praticado pelos coletivos como Oficina Uzyna Uzona, com o ciclo “Os Setões”, e a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis, com seu Teatro de Vivência em “Kassandra in Process” e “A Missão”. A escala monumental dos franceses ecoa a perseverança do Teatro da Vertigem em, “BR 3”, que navegou pelas águas do rio Tietê ou a Baía de Guanabara. Já o naturalismo de cena em “Os Efêmeros” deixa entrever ainda a que ponto chegaria o “Prêt-à-Porter” do Centro de Pesquisas Teatrais (CPT) se o projeto fosse redimensionado com mais fé e risco, e não manejado de forma lateral pelo encenador Antunes Filho. Por isso, mas não só, a primeira turnê da companhia pela América do Sul, iniciada por Buenos Aires, é, desde já, memorável.
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EPIFANIAS
Anunciam que o mundo vai se acabar. Uma previsão apocalíptica da conta de um asteróide que se aproxima e porá fim ao planeta em horas, dias. O que fazer? Eis a antevisão lançada pela diretora Ariane Mnouchkine aos atores do Théâtre Du Soleil como desafio para o laboratório de improvisos do novo espetáculo, cujos ensaios duraram cerca de nove meses; a estréia aconteceu em dezembro de 2006. Os artistas não têm dúvida: aferram-se ao quinhão das lembranças e compõe um inventário coletivo do presente. Na partilha de dores e epifanias, o microcosmo individual é transformando em matéria-prima emendada à história contemporânea da humanidade.
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É por meio dessa montagem que o Brasil finalmente conhece de perto os procedimentos coletivos de criação e de produção do Soleil. Princípios éticos e filosófico do ofício que ajudam a consolidar o lendário conjunto teatral de Mnouchkine na cena européia da segunda metade do século XX.
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Aos 68 anos, a diretora não disfarça a vocação materna para com a “família”, como costuma tratar a companhia fundada há 43 anos em Paris, em maio de 1964. Ainda não era aquele mês histórico de 1968, mas ela e outros estudantes ligados a uma associação de teatro protagonizam revolução à parte ao constituir um grupo em sistema cooperativado. A primeira peça montada é “Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, adaptada por Arthur Adamov. A partir do segundo espetáculo, a improvisação torna-se ferramenta vital na recepção de clássicos como Ésquilo, Molière e Shakespeare ou mesmo na construção de dramaturgias próprias, caso de “Os Efêmeros” e seu 29 episódios “sonhados, invocados, evocados e improvisados” pelos intérpretes.
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É uma obra que não tem vergonha da emoção, mesmo a mais desbragada, no limite do melodrama. Isso tampouco anula o subtexto da reflexão política, traço marcante no Soleil. Aqui, ela se dá por meio das células pessoais que alcançam o plano universal. O épico não surge sob a tônica espetacular de trabalhos anteriores, como “Tambours sur La Digue” (Tambores sobre o Dique, de 1999), de Hélène Cixous, “em forma de peça antiga para marionetes representada por atores”, como diz o subtítulo, e “Le Dernier Caravansérail” (O Último Caravançará, de 2003: no Oriente Médio, caravançará é um grande abrigo para hospedagem gratuita de caravanas, pavilhões que hospedam viajantes de vários países), peça que relata os destinos de alguns refugiados pelo mundo.
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Antes de seguir com a dramaturgia, é preciso falar do espaço. Para onde quer que se vá, o Théâtre Du Soleil carrega simbolicamente o galpão que ocupa desde 1970 na Cartoucherrie no bairro de Vincennes, uma área de bosque no subúrbio de Paris. A rústica fábrica do século 19 foi desativada e transformada em abrigo de outras companhias e ateliês. O local serve de casa, laboratório de criação e “palco” para as apresentações. Não há a platéia frontal do formato italiano, o mais conhecido. É possível re-configurar a arquibancada conforme a concepção de cada montagem.
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“ Um teatro não é uma butique, nem um escritório, nem uma fábrica. É uma oficina[no sentido artesanal] para encontrar-se e compartilhar. Um templo de reflexão, de conhecimento, de sensibilidade. Uma casa onde devemos sentir-nos bem, com água fresca, se temos sede, e algo para comer, se temos fome. Meyerhold dizia que um teatro teria que ser um verdadeiro ‘palácio das maravilhas’. Hoje em dia, com efeito, é muito difícil ir ao teatro. Então, é necessário receber as pessoas e mostrá-las, com pequenos sinais, até que ponto estamos felizes e orgulhosos por elas estarem ali”, afirma Mnouchkine, em livro de entrevistas lançado em 2005 e traduzido este ano na Argentina.(MNOUCHKINE, Ariane. El Arte Del Presente – conversaciones com Fabianne Pascaud. Buenos Aires:Atuel, 2007.) “Por que existem tantos teatros sinistros? Por que são gastos milhões na construção de monstros frios? Às vezes, quando fazemos nossa reuniãozinha ritual cotidiana com os atores, antes do início do espetáculo, lembramos que há na sala espectadores que vêm ao teatro pela primeira vez. E outros para quem esta será a última vez.”
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Nesse espetáculo, a arquitetura cenográfica envolve a própria platéia bifrontal, uma de frente para a outra, com capacidade total para 600 pessoas. As cenas acontecem nesse corredor; ao mesmo tempo em que as assiste, o espectador depara com seu semelhante sentado do outro lado. Espelhamento.
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O camarim é aberto, acessível aos olhos do público que acompanha os atores de cerca de 30 pessoas, homens, mulheres e crianças do elenco ao maquiar-se, aquecer o corpo, a voz ou concentrar-se para a obra a ser apresentada dali a minutos. No Brasil, esse desvelo do ritual de preparação pode mensurar o quanto a essência do olhar tem sido turvada pelo voyeurismo televisivo da intimidade.
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TECIDO HISTÓRICO
E “Os Efêmeros” é feito de puro intimismo. É uma fileira de histórias curtas ou duradouras, que suplantam templos e lugares. Inclinam ao enternecimento, mas não escapam às convulsões do gênero humano. Vemos, por exemplo, o périplo de uma mulher pelo arquivo dos antepassados, os avós dizimados pela guerra; em outra seqüência, outros avós surgem prostrados diante da fissura do neto pela droga; uma professora surge desolada pelo espancamento de uma das crianças em sala de aula pelos próprios coleguinhas; despontam as estripulias de um casal, seus filhos e a empregada para se safar da polícia nazista; ouve-se o choro copioso de um homem na frente de um transexual vizinho, amigo de sua filha menos, proximidade que no início rejeitara; e a terna relação de uma médica com uma paciente debilitada, com problemas mentais, mas que a cativa como nenhuma pessoa ‘normal’ o fizera ao sonhar delirantemente com uma viagem à Mesopotâmia, para apreciar os seus jardins suspensos – Mesopotâmia que hoje é o Iraque invadido por forças americanas e aliados.
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O nome da região do Oriente Médio significa ‘entre rios’. De um lado, o Eufrates; de outro, o Tigre. Pois é na pista formada pelas duas platéias que os atores surgem invariavelmente sobre platôs, circulares ou retangulares, carregados pelas mãos de outros colegas. Estes são como que um coro grego antigo, ora neutro ora intervindo radicalmente nos ângulos de ação, idas, vindas e pausas que remetem à linguagem cinematográfica. Exige-se mais do intérprete, exposto o tempo inteiro, sem noção precisa do que é fundo ou primeiro plano; em raros momentos ele encontra o olhar do espectador, mas sem prejuízo da conexão que se dá por outras formas de expressão, como o incrível sentido de presença que emanam da cena.
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É difícil saudar nomes num projeto que reafirma o coletivo em todas as suas instâncias, inclusive com a isonomia salarial das 61 pessoas, entre técnicos e artistas. Mas não dá para resistir à atuação da carioca Juliana Carneiro da Cunha, que integra o Soleil desde 1990. Ela interpreta sete personagens, uma paleta de registros densos ou de um lirismo poético que dão a medida da maturidade do ofício. Outra parceria talentosa é a iraniana Shaghayegh Beheshti, a paciente que contracena com a médica de Cunha e, juntas, constroem verdades imensuráveis.
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Como também fica impossível falar de “Os Efêmeros” sem passar pela obra do compositor e instrumentista Jean-Jacques Lemêtre, cúmplice das encenações de Mnouchkine há quase 30 anos. Ele e sua música são personagens literais. Lemêtre passa o tempo todo numa plataforma aérea da qual pode ser observado dedilhando cordas, tocando sopros, assoviando ou operando as composições originais gravadas em algumas cenas. Ou seja, é a ‘respiração’ do espetáculo, movimentos e pausas. Os arranjos reforçam o realismo de base hegemônico nas ações, por mais abstratas que sejam as texturas sonoras desse artista que gosta de inventar instrumentos.
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Já se disse que nesta peça a cenografia é anterior à cena. Na metáfora da rotação de pequenos planetas, representado por nichos cenográficos criados em colaboração pelos próprios atores, nota-se o quanto o objeto é celebrado, ou melhor, respeitado como signo cênico. Quando a luz abaixa, as luzinhas dispostas ao longo das arquibancadas desenham uma paisagem cósmica, um instante de suspensão, de pertencimento que consagra a todos, quer nas sessões divididas em duas partes, uma a cada dia, que nas integrais, de uma levada só, unindo as luzes solar e lunar.
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Na Europa, o público e os artistas estão acostumados com espetáculos de longa duração, como a versão de 21 horas para o “Fausto”, de Goethe, por Peter Stein, que a Alemanha assistiu em 2000, para ficar num exemplo extremo. Bob Wilson, Frank Castorf e Forced Entertainment são criadores que também costuma vencer a barreira do tempo. No Brasil, o Oficina de José Celso Martinez Corrêa chegou a sete horas numa das partes do ciclo “Os Sertões”, e o público jamais se esquivou.
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Por isso, a tão aguardada temporada do Théâtre Du Soleil resulta numa extraordinária oportunidade para aferir alguns paradigmas da cultura do teatro no país. Os historiadores apontam a década de 1940 como marco do ingresso do palco brasileiro na fase moderna. É a partir daí que dramaturgia, interpretação, direção, cenografia, figurino, luz, música e outras variáveis do espetáculo evoluem como linguagem. Agora na casa dos 60 anos, essa jovem senhora cultura do teatro anda bifurcada entre as convenções de conteúdo, tempo e espaço da indústria do entretenimento, de digestão agradável e ligeira, sem o desassossego das idéias; e a contra-face dos que enfrentam mares revoltos, encoraja o público a embarcar e não concebe a arte sem navegar pelos dois conceitos entranhados na palavra estética.
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Os adeptos deste segundo caminho, artistas e espectadores à margem do lugar-comum das montagens caça-níqueis, que não arrefecem mesmo em países de tradição secular nas artes cênicas, são os principais interlocutores da companhia de Ariane Mnoushkine. As apresentações gaúchas e paulistas tiveram seus ingressos esgotados em poucas horas. Para bagunçar ainda mais o coreto, quis o destino que a primavera brasileira contivesse dois sóis. O contemplado nestas linhas e o Cirque Du Soleil, a trupe canadense que circula por algumas capitais até 2008 com “Alegria”, espetáculo emblematicamente apropriado pelo marketing de uma rede bancária.
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(Nota – no texto acima, o autor condensa artigos que publicou na revista Carta Capital [Militância nos palcos, ed 464, p.60-61, 28/9/2007] e no jornal Folha de São Paulo [Soleil une emoção e consciência do mundo, caderno Ilustrada, 20/10/2007].)
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*Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro, co-autor do livro Aos Que Virão Depois de Nós – Kassandra in Process – O Desassombro da Utopia ( Tomo Editorial/Projeto Oi Nóis na Memória, 2º edição, 2005)
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ESTE ARTIGO FOI COPIADO DA REVISTA CAVALO LOUCO nº3 – EDITADA PELOS ATUADORES DA TERREIRA DA TRIBO DE ATUADORES ÓiNóisAquiTraveis EM PORTO ALEGRE.

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