sábado, 11 de abril de 2009

DA RESISTÊNCIA À REVOLUÇÃO - último capítulo do livro Restructuring and Resistance in Western Europe, Diverse Voices of Struggle (Resresrev, 2001).

[último capítulo do livro Restructuring and Resistance in Western Europe, Diverse Voices of Struggle (Resresrev, 2001).]


DA RESISTÊNCIA À REVOLUÇÃO
Substituindo o capitalismo por redes de espaços livres, autônomos e auto-suficientes(1): Uma perspectiva européia ocidental (Parte 1)Indivíduos ligados à AGP(Ação Global dos Povos) na Europa (2)

Quando este livro(3) estava para ser finalizado, o editor propôs um título que incluísse a palavra ‘Revolução’ para os autores dos capítulos, os quais estão, na sua maioria, ativamente envolvidos em movimentos anticapitalistas na Europa Ocidental. Alguns expressaram reservas bastante sérias em relação à inclusão dessa palavra e esperavam que ela não fosse incluída. Argumentavam que ela era muito associada às terríveis atrocidades e ao despotismo das ditaduras comunistas, ou que se falar de revoluções neste continente estaria muito fora da realidade. Uma pessoa chegou a dizer que retiraria seu capítulo se essa palavra fosse incluída no título do livro.

Essa história revela a extensão da apropriação de um conceito bastante fundamental e necessário pelos defensores de burocracias despóticas e hierárquicas. Como conseqüência, aqueles que sustentam idéias revolucionárias neste continente são vistos pela maioria das pessoas como violentos nostálgicos de cinzentas tiranias, como fãs anacrônicos e demagógicos do poder. Mesmo para pessoas que acreditam que necessitamos de ‘uma drástica transformação de longo alcance na maneira de pensar e se comportar’, em outras palavras... uma revolução.

Isso é mais do que um problema semântico. As conotações negativas desse termo levaram a uma erosão sem precedentes da nossa imaginação revolucionária, a qual, junto com as condições objetivas que torna impraticável a transformação social em larga escala na Europa Ocidental, levaram muitas pessoas que possuem convicções anticapitalistas e anti-autoritárias a construírem suas próprias alternativas longe do resto da sociedade, ou a focalizarem suas atividades em áreas restritas onde sentem que podem pelo menos alcançar alguns resultados concretos (como denunciar as práticas de certas corporações transnacionais, trabalhar em lojas de comércio justo, fazer campanhas contra agências de emprego temporário, se engajar em questões ambientais bem específicas etc.). Consequentemente, uma grande parte da energia e criatividade potencialmente revolucionárias terminam em lugares remotos com muito pouca interação com o resto do mundo, ou seguindo processos de transformação gradual dentro da arquitetura do poder vigente, ao invés de agir na direção da construção coletiva de relações políticas, econômicas e sociais totalmente diferentes.

Este artigo procura encorajar aqueles que rejeitam a ordem social vigente, mas que também se opõem a estruturas de poder centralizadas e regimes hierárquicos, a reclamar o conceito de revolução e redefini-lo através de práticas que possam ir além do quadro dos Estados-Nação e de clássicas (e cada vez mais obsoletas) concepções sobre a classe trabalhadora. Ele toma uma firme posição em favor de estratégias revolucionárias diversas, auto-determinadas e descentralizadas (mas interligadas) para criar espaços livres, autônomos que se relacionem entre si sobre a base do respeito e da igualdade. Ele não dá receitas de como esses espaços se pareceriam ou de qual seria o processo para construí-los, uma vez que propõe a autonomia e a descentralização com respeito a ambos, mas analisa alguns fatores cruciais que poderiam obstruir o processo.

Mas acima de tudo, este artigo convida aqueles que se identificam com o novo, e em rápido crescimento, ‘movimento’ contra a ‘globalização’ capitalista, a refletir coletivamente sobre como podemos ir da resistência contra as instituições que corporificam o capitalismo à construção de relações diferentes entre os seres humanos e com o meio-ambiente. Sobre quais processos organizacionais poderiam estimular o tipo de transformação social de que tão freqüentemente falamos. E sobre como expressar tudo isso em uma linguagem que seja compreendida pelas pessoas em nossa volta e numa praxis que dê espaço e estimule um grande número de pessoas de diferentes formações a participar.

Este apelo não é motivado por romantismo, por razões estéticas ou dogmáticas. É motivado pela convicção de que a devastação social e ecológica causada pelo nosso sistema econômico continuará a piorar a uma taxa crescente nos próximos anos, atingindo grande parte da população da Europa Ocidental, provocando uma crise de legitimidade política sem precedentes desde a criação dos Estados-Nação no nosso continente. Esse processo já está abrindo espaços políticos com um tremendo potencial para transformar a sociedade, manifestado principalmente no assim chamado ‘movimento antiglobalização’. Mas se não analisarmos e agirmos para criarmos alternativas rápido o suficiente, esses espaços podem muito bem serem ocupados (do modo como já está acontecendo) por ideologias hierárquicas e autoritárias que possuem uma abordagem coercitiva e de cima para baixo da transformação social, e um comprovado registro de desastres, atrocidades e opressão.

Talvez uma discussão sobre revolução não seja o melhor ponto de partida para esse debate. Em qualquer caso, espera-se que seja controverso o suficiente para estimular um intenso debate.

A morte de uma ilusão

Os escravos do século XXI não precisam ser caçados, transportados e leiloados através de complexas e problemáticas redes comerciais de corpos humanos. Existe um monte deles formando filas por uma oportunidade de trocar suas vidas por um salário de miséria em circuitos de produção para exportação do Sul, os quais a maioria das vezes preferem explorar mulheres jovens. Outros hipotecam seu futuro a agiotas de modo a financiar a arriscada viagem às regiões de acentuado desenvolvimento capitalista no Norte, se aventurando como imigrante ilegal nas obscuras profundezas da clandestinidade, da vulnerabilidade e exploração. Os governos dos países que eles deixam para trás, as ex-colônias onde as nações ocidentais empregavam táticas desumanas para obter acesso a recursos e tomar o controle da economia, onde tantas pessoas sacrificaram suas vidas pela ‘libertação nacional’, estão agora competindo entre si para atrair o investimento estrangeiro (o mesmo capital que as violentaram por séculos), descobrindo novas maneiras de ajudar qualquer um disposto a ‘investir’ alguns dólares com o intuito de multiplicá-los maltratando trabalhadores, destruindo a natureza e controlando a vida das pessoas.

É isso o que o ‘desenvolvimento’ capitalista está levando para a maior parte da humanidade hoje em dia. Ele alcançou um tal nível de sofisticação e crueldade que a maioria das pessoas no mundo tem que competir para serem explorados, prostituídos ou escravizados, se pretendem sobreviver.

Desde a Segunda Guerra Mundial, a maior parte da população da Europa Ocidental tem se beneficiado dos resultados materiais desse modelo. Nossos países concentram uma grande parte da riqueza saqueada pelas interações econômicas globais, pela contínua deterioração dos termos comerciais para as mercadorias produzidas pelos países do Sul(4) . O Estado de bem-estar distribuiu uma mínima parte desse afluxo, suficiente para proteger a maioria dos europeus ocidentais das mais rudes formas de exploração capitalista e ao mesmo tempo promover o consumismo.

Nesse período, a maioria dos governos da Europa Ocidental também devotaram substanciais parcelas de seus orçamentos a políticas que visavam equilibrar as desigualdades entre diferentes regiões, de modo a compensar parcialmente a tendência natural do capital de se concentrar onde ele encontra as melhores condições. A competição já concentrou a maior parte da produção e do consumo em regiões privilegiadas e áreas metropolitanas da Europa, fazendo o resto ficar cada vez mais dependente de subsídios.

Mas as políticas redistributivas que limitavam as disparidades sociais e regionais estão rapidamente desaparecendo. A acelerada expansão do capital, provocada por um sistema econômico que requer o contínuo crescimento e acumulação para sobreviver, fez até mesmo os maiores mercados nacionais e regionais pequenos demais para a maioria das indústrias sobreviverem. Consequentemente, o quadro no qual os negócios operam foi muito além dos quadros nacionais e regionais onde a política é feita, obrigando os governos a orientar suas políticas de acordo com as necessidades do capital, na tentativa de manter a maior fatia do bolo possível dentro dos seus países. O principal fator para a tomada de decisão das empresas é a lucratividade, que é naturalmente reduzida pelos impostos necessários para financiar as políticas redistributivas. Portanto, não vai demorar muito até essas políticas se tornarem parte da história. Junto com elas, as regulações sociais e ambientais que restringem a ‘liberdade’ de explorar e destruir estão aos poucos sendo removidas para promover a competitividade.

A eliminação das políticas redistributivas e ambientais na Europa está ainda nos estágios iniciais, mas já está causando conseqüências devastadoras para muitas pessoas (principalmente mulheres, idosos e crianças) e regiões. Por fim, as relações sociais provavelmente serão determinadas inteiramente pela competição entre pessoas e regiões, e um crescente número de europeus se verá excluído dos processos de produção e consumo, ou ocupará uma posição dentro destes processos que não garantirá uma vida digna. Essa tendência certamente se intensificará nos próximos anos, estimulada pelo papel desempenhado pelo crescimento econômico das tecnologias e do conhecimento altamente sofisticados, os quais possuem uma tendência ainda mais acentuada para se concentrar em regiões específicas (as assim chamadas ‘cidades globais’) do que as indústrias tradicionais. Tendência que é também uma fenômeno normal num mundo onde a expansão do capital atingiu os limites geográficos (uma vez que praticamente não existem novos territórios para serem conquistados e explorados) e em que a acumulação ocorre cada vez mais através da concentração do mercado, pela falência, fusão ou compra dos competidores. Isso exacerba e tendência existente para a formação de oligopólios globais, tornando os donos do capital cada vez mais poderosos.

Portanto, a menos que alguma coisa muito excepcional aconteça nos próximos anos, muitas pessoas na Europa Ocidental logo enfrentarão condições similares as enfrentadas atualmente pelos pobres no Sul, como já é o caso nos EUA. Os governos do Norte seguramente continuarão usando uma ampla variedade de mecanismos para se assegurarem que o enorme fosso macroeconômico entre o Norte e o Sul continue a crescer, de acordos comerciais à utilização direta da força militar, disfarçada como ‘intervenções humanitárias’ ou como ‘guerra contra as drogas’. Mas isso não se traduzirá em uma vida agradável para a maioria da população do Norte, somente expandirá o influxo de refugiados econômicos. As tensões sociais aumentarão dramaticamente na medida que as riquezas se concentram em cada vez menos mãos e regiões, tornando crescentes setores da população incapazes de satisfazer suas necessidades básicas e forçando-os a viver em horríveis condições ambientais(5) . A ilusão do Estado benevolente e do capitalismo socialmente e ambientalmente sensível que podem fornecer bem-estar, abundância e harmonia para todos, já severamente questionada, irá logo com toda certeza desaparecer. Sua decadência já está proporcionando um contexto perfeito para o crescimento do fascismo, da xenofobia e do nacionalismo exacerbado, já revigorados em toda a Europa.

Tudo isso não é somente (nem mesmo principalmente) causado pela escolha política de governos nacionais. Esses últimos são, é claro, responsáveis por suas decisões, especialmente os governos que aplicam políticas neoliberais com uma dedicação sadística desnecessária e aqueles que promovem, seja direta ou sutilmente, reações nacionalistas e xenófobas. Mas o principal motor desses processos é puramente econômico. O único modo de parar a desconstrução social e ambiental da Europa Ocidental seria parando a expansão do capital, o que significa abandonar o capitalismo e o substituir por um outro sistema econômico. Qualquer governo que quisesse fazê-lo tornaria a sua economia um alvo de ataque maciço por todas as grandes forças econômicas do mundo, as quais não tolerariam um desafio deste tipo (principalmente na Europa Ocidental). Esse é um preço que nenhum governo está preparado a pagar, a despeito de sua pretensa ideologia. Consequentemente, a ‘democracia representativa’ está se tornando, mais do que nunca, um conjunto de rituais inúteis (eleições, referendos etc.) e organismos (parlamentos, senados etc.) com cada vez menos espaço de manobra para tomar decisões independentes nas esferas de ação mais importantes. A manutenção da sua existência responde à necessidade de legitimar a máquina repressiva do Estado, cada vez mais ativa nesses tempos de tensões sociais globais.

Do mesmo modo, o desaparecimento da política social e ambiental na Europa Ocidental não é de fato uma conseqüência das políticas de instituições multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional ou a Organização Mundial do Comércio (as quais possuem muita responsabilidade pela acelerada desintegração da maioria dos países do Oeste e do Sul), nem mesmo da Comissão Européia ou de qualquer outro organismo da União Européia. Essas instituições são instrumentos e símbolos essenciais, mas não originadores, dos processos econômicos descritos acima. Mesmo se quisessem, elas não seriam capazes de frear esses processos, muito menos dar um ‘rosto humano’ ao capitalismo o regulando em nível global, como defendido pelos sindicatos dominantes, a maioria das ONGs etc. O melhor exemplo dessa impossibilidade é o fato dos pouquíssimos compromissos positivos resultantes do ciclo de conferências realizado pelas Nações Unidas no final dos anos 80 e início dos anos 90, estarem se tornando instrumentos para legitimar futuras destruições e explorações, como no caso da Convenção sobre o Clima. Do mesmo modo, se o Banco Mundial e o FMI subitamente pararem todos os Programas de Ajuste Estrutural, quase nada mudaria uma vez que o mesmo papel que essas instituições estão desempenhando nos anos 80 e 90 tem sido adotado, de modo muito mais eficiente e menos visível, pelas convenientemente privadas Agências de Avaliação de Crédito que determinam o comportamento dos grandes fundos de investimento que moldam a economia global(6) .

Consequentemente, todos os esforços para reformar ou ‘democratizar’ as instituições supranacionais são, na melhor das hipóteses, uma completa perda de tempo. Embora se apresentem como ‘pragmáticas’ e ‘orientadas pelos resultados’, elas não mudaram em nada a natureza das políticas que são designadas a satisfazer as necessidades do capital global.

A resistência autônoma global

Essas necessidades ainda existirão, e continuarão a ser igualmente dominantes, caso as instituições internacionais que as satisfazem desaparecessem. Mas os recentes Dias de Ação Global contra organismos como a OMC, o FMI e o Banco Mundial, por atacarem com sucesso sua legitimidade e questionarem sua existência, abriram um espaço para se pensar e se agir contra o capitalismo que seria inconcebível no Norte a apenas três anos atrás. Cada uma dessas mobilizações motivaram um crescente número de pessoas (principalmente jovens) a se organizarem em grupos de ação autônomos, e despertaram a consciência de amplos setores da população que lhes depositaram sua simpatia, devido ao transtorno que causaram a instituições e governos bastante poderosos.

As redes de intercâmbio anticapitalistas através das quais esses grupos têm se coordenado e preparado os dias de ação global, principalmente a Ação Global dos Povos (AGP), têm possibilitado uma grande quantidade de grupos e ativistas do Norte e uma diversidade de experientes movimentos populares do Sul se conhecerem e ampliarem os contatos. Essas redes e a série de bem sucedidas ações globais que ocorreram desde 1998 colocaram em prática o slogan ‘Nossa Resistência será tão Transnacional quanto o Capital’, o qual se tornou globalmente conhecido durante o segundo Dia de Ação Global em 18 de junho de 1999. Agora todas as instituições que simbolizam o capitalismo global sabem que, não importa onde forem, seus encontros serão perturbados pela desobediência civil descentralizada e ações diretas.

O sucesso dessas ações globais e redes vem em grande medida do fato de sua articulação ser baseada na autonomia e descentralização, não nas estruturas burocráticas e relações de poder injustas. Essa filosofia é também refletida no manifesto da AGP:

“Existem inúmeras formas de resistência contra a globalização capitalista e suas conseqüências. A nível individual, precisamos transformar nossas vidas cotidianas, nos libertando das leis de mercado e da busca do lucro privado. A nível coletivo, precisamos desenvolver uma diversidade de formas de organização a diferentes níveis, reconhecendo que não há uma única forma de resolver os problemas que enfrentamos. Tais organizações têm que ser independentes das estruturas governamentais e dos poderes econômicos, e serem baseadas na democracia direta. Essas novas formas de organização autônoma deverão emergir de e se enraizar em comunidades locais, enquanto ao mesmo tempo praticam a solidariedade internacional, construindo pontes para conectar diferentes setores sociais, povos e organizações que já estão lutando contra a globalização em todo o mundo”(7) .

Essas conexões autônomas, descentralizadas e globais e formas de ação já provocaram uma mudança de consciência e entendimento em muitas pessoas, as quais em virtude desses sucessos decidiram participar ativamente delas. Dentro de um período muito curto, a idéia de resistir ao capitalismo se tornou uma realidade para muitas pessoas que até recentemente estavam dominadas pela aparente impraticabilidade de um empreendimento tão grande, ou que nem pensavam sobre isso até verem que era possível (e muito satisfatório). Mesmo para alguns que, focalizados como estavam em campanhas muito específicas e limitadas, consideravam que se expressar publicamente contra o capitalismo na Europa Ocidental seria contraprodutivo por causa de suas conotações históricas.

Essa esplêndida transformação na paisagem política da Europa Ocidental (e América do Norte, Austrália e Aoteoroa(8) , e em menor medida também do Sul, onde a consciência e ação anticapitalista sempre foi mesmo muito maior) está obviamente relacionada aos visíveis e apavorantes efeitos que o capitalismo globalizado está produzindo em todo o mundo, no entanto esses feitos já se manifestavam há muito tempo sem que catalisasse a reação social que temos testemunhado nos últimos recentes anos. Essa reação foi em grande medida induzida pelo enorme apelo da articulação livre num nível global, de identidades e formas de ação diversas, igualitárias, autônomas e autodeterminadas em espaços de apoio mútuo. O potencial de mobilização dessas redes possui muito de suas raízes na rejeição consciente das estruturas de poder e de lutas pela liderança dentro do ‘movimento’, a qual impossibilita a ‘capitalização’ política dos nossos esforços coletivos por qualquer programa ou ideologia. Essas formas de articulação já foram anteriormente identificadas como sendo particularmente efetivas por pensadoras feministas como Biddy Martin(9) :

“O que a esquerda tem criticado no movimento feminista como sendo fragmentação, falta de organização, ausência de uma teoria coerente e acabada e a incapacidade de preparar um ataque frontal, pode muito bem representar reações fundamentalmente mais radicais e efetivas ao exercício do poder na nossa sociedade do que a centralização e a abstração que continuam a impregnar o pensamento e a estratégia da esquerda”.

Espaços para a revolução

As recentes ações coordenadas internacionalmente contra o capitalismo permitiram que os coletivos e ativistas anti-autoritários e anti-hierárquicos parcialmente superassem o recuo provocado pela história dos regimes comunistas. Consequentemente, nos últimos três anos temos saído de uma longa temporada no closet da auto-limitação política. Porém, até agora temos usado o potencial das redes internacionais autônomas e descentralizadas principalmente para tomar as ruas com protestos e bloqueios, e para uma limitada (embora muito interessante) troca de idéias e práticas.

Ainda não examinamos até onde esses instrumentos podem nos ajudar a construir espaços auto-sustentados e não-hierárquicos para criarmos meios de vida não-capitalistas, tomar de volta o controle de nossas vidas e concretizarmos nossas concepções de relações sociais igualitárias e livres com sensibilidade ambiental, isenta de exploração econômica e de ‘todas as formas e sistemas de dominação e discriminação incluindo, mas não somente, o patriarcado, o racismo e o fundamentalismo religioso de todos os credos’.(10) Espaços inclusivos articulados em redes internacionais de apoio mútuo e troca, e com lugar para a participação ativa de várias pessoas, motivadas por suas idéias, pelas terríveis condições de vida que a sociedade oferece a elas, ou apenas por curiosidade.

Existem espaços autônomos anticapitalistas na Europa há um bom tempo: experiências maravilhosas de modos de vida coletivos, ecológicos e livres de coerção e exploração, centros sociais com espaço para a participação política autônoma, redes locais de trocas econômicas alternativas etc. Mas a maioria desses espaços estão bastante desconectados dos processos mais amplos de transformação social (sendo esta principalmente a situação da maioria das comunidades rurais alternativas), ou possuem possibilidades muito limitadas para resolverem os problemas cotidianos das pessoas excluídas, uma vez que baseiam sua auto-suficiência em interações econômicas totalmente normais (como os centros sociais que se sustentam com bares e festas). E, embora existam brilhantes exceções, em geral eles também são espaços um tanto fechados, se constituindo em áreas de refúgio contracultural onde as pessoas que não compartilham certo ponto de vista político, e às vezes até mesmo certas preferências estéticas, geralmente se sentem um tanto indesejáveis, resultando em uma homogeneidade e às vezes até mesmo em sectarismo.

Isso é compreensível no contexto social que ainda predomina na Europa Ocidental (exceto em regiões e setores sociais específicos como o dos imigrantes sem documentação), onde as necessidades básicas da maioria das pessoas são satisfeitas, e consequentemente a razão principal para participar nesses espaços tem sido uma predileção política ou estética. Contudo, os terríveis efeitos do capitalismo globalizado estão transformando radicalmente a paisagem política da Europa Ocidental.

A idéia de construir modos de vida autônomos e auto-suficientes poderia muito bem se tornar uma opção real para as pessoas que sofrem mais o aumento da competição e a diminuição da redistribuição, que são excluídas da produção ou do consumo por esse processo ou que estão profundamente infelizes com os precários e inseguros lugares na sociedade reservados para elas. Ao mesmo tempo, as regiões excluídas das redes econômicas dominantes, incapazes de competir em uma economia aberta de mercado de outra forma que não seja como depósitos de lixo, não terão de fato que pensar muito para optar sair da lógica capitalista, uma vez que elas já estão sendo retiradas do jogo, assistindo suas economias decomporem-se e os subsídios encolherem.

Consequentemente, daqui a alguns anos a construção de espaços auto-suficientes com relações econômicas e sociais igualitárias e não-excludentes poderia se tornar uma alternativa real para muitos europeus ocidentais e regiões sem ‘uso’ para o sistema. Mas isso não ocorrerá espontaneamente, principalmente não em um continente no qual a maioria das pessoas espera que o Estado resolva problemas estruturais, ‘crie empregos’ e assegure que as necessidades básicas de todos os ‘cidadãos’ sejam satisfeitas.

As pessoas que acham essa expectativa ingênua e irreal em tempos de capitalismo globalizado irreversível, terão que trabalhar duro para a transformação da cultura política dominante antes que as pessoas e regiões excluídas comecem a pensar seriamente na idéia de espaços livres, autônomos e auto-suficientes como alternativas reais e relevantes a elas. Isso só irá acontecer se as pessoas perceberem que podem ampliar suas possibilidades, melhorar sua qualidade de vida e aumentar o controle sobre seus destinos através da mudança das estruturas e princípios que moldam sua compreensão das relações sociais, econômicas e políticas. Isso implica em tornar visível que grupos de pessoas autônomos e auto-definidos podem substituir os Estados-Nação como espaços de tomada de decisão e na resolução de conflitos, que relações de cooperação, solidariedade e eqüidade entre grupos em boa medida auto-suficientes podem substituir as trocas monetárias e o dinheiro, e que a superação das relações sociais opressivas que estão profundamente incorporadas na cultura dominante (incluindo o sexismo, racismo e o fundamentalismo religioso de todos os credos, mas também formas mais sutis de dominação como o consumismo) pode ser libertadora para todos, não apenas para aqueles que são visivelmente oprimidos por elas. Isso pode parecer uma tarefa hérculea, mas pode ser mais fácil do que parece, por várias razões.

A primeira é que a democracia representativa está rapidamente perdendo legitimidade na Europa Ocidental devido à patente contribuição de todos os governos, a despeito de suas composições ideológicas, e devido à crise social e ambiental que está começando a se manifestar em nosso continente. O mesmo processo também é capaz de minar a legitimidade do Estado como instituição, devido ao aumento da repressão que provavelmente este aplicará de modo a proteger a concentração de riqueza, dificilmente com alguma função positiva ou legitimidade democrática para ajudar a equilibrar sua imagem.

Como mencionado acima, a reação de muitas pessoas em relação a esse processo é o anseio por um regime autoritário (fascista ou comunista) para re-nacionalizar a economia, mas felizmente a maioria dos europeus ainda possui uma forte lembrança histórica e recusa tais ‘soluções’ para seus problemas. Isso pode impulsionar a receptividade social e simpatia em relação a outras possíveis saídas para a crise que reflitam valores éticos positivos (tais como a liberdade, igualdade, consciência ambiental etc.).

Consequentemente, dependendo de como reagimos coletivamente à globalização do capital, podemos construir um futuro com mais liberdade e controle sobre nossas vidas, ou encararmos sombrias perspectivas de autoritarismo, controle e (muito possivelmente) guerra e devastação. Muito provavelmente, teremos que lidar com uma mistura de ambos, mas o balanço dependerá, em grande medida, de nossas próprias decisões.

Segundo, já construímos redes internacionais autônomas e descentralizadas que dentro de muito pouco tempo executaram a aparentemente impossível tarefa de tornar o capitalismo global um tema controverso e aberto à discussão social. O efeito combinado dessas vozes diversas articulando uma mensagem coletiva (embora não necessariamente idêntica) de uma forma descentralizada e horizontal tem sido uma agradável surpresa. Antes dessas redes ganharem existência, essas mesmas vozes, agindo em relativo isolamento, não poderiam esperar ter tal impacto em um período de tempo tão curto. Como dito acima, seu sucesso está profundamente relacionado à sua consciente recusa de estruturas de poder e representação desnecessárias e divisionistas, de modo a evitar a burocratização e promover a participação autônoma. Os mesmos princípios e conexões globais poderiam ter igualmente extraordinários resultados se fossem usados para construir coletivamente espaços livres, autônomos e auto-suficientes, e torná-los visíveis e (pelo menos parcialmente) acessíveis a todas as pessoas que não estejam felizes com seus lugares na sociedade.

Por fim, a construção desses espaços, em contraste com outras reações ao capitalismo global, somente dependem da determinação, otimismo e criatividade das pessoas que querem construí-los. Está em nossas mãos fazê-los acontecer, já que não requerem nenhuma intervenção estatal (ao invés, o oposto) ou mudança de governo. E a construção desses espaços pode ser feita sem muito dinheiro (principalmente em regiões excluídas), procurando meios de reduzir a necessidade de dinheiro o máximo possível. Além disso, as redes globais têm demonstrado que temos, dentro de um curto período, atingido coletivamente níveis surpreendentes de capacidade organizacional, tecnológica, e comunicacional. Embora possam não ser suficientes, e suficientemente compartilhadas, para tornar economias não-monetarizadas baseadas na solidariedade uma alternativa viável, o modo como estão crescendo é um bom motivo para acreditar que logo poderemos não apenas sobreviver em tais espaços, mas viver uma vida interessante e auto-determinada.

Uma vez que hajam espaços desse tipo funcionando com sucesso, eles certamente inspirarão a criação de muitos outros. Essas revoluções imediatas nas relações econômicas, políticas e sociais podem levar a uma verdadeira mudança de uma maneira muito mais rápida, efetiva e auto-determinada do que qualquer grandioso projeto de tomada do poder. Todavia, muitos obstáculos precisam ser transpostos antes que essas nobres finalidades se tornem uma realidade dinâmica e vibrante.

Identidade, diversidade e participação

Como dito acima, muitos espaços desse tipo já existem, mas a maioria deles são um tanto introspectivos. Muitos possuem apenas limitadas conexões com processos mais amplos de transformação social, principalmente a nível internacional (embora muitos deles sejam bastante ativos a nível local), e a maioria deles não faz muito esforço consciente para chegar a pessoas que não compartilhem suas perspectivas contraculturais e/ou políticas, talvez porque aqueles que se esforçam freqüentemente não obtêm muito sucesso. Por exemplo, vários centros sociais que gostariam de ser um espaço aberto para as pessoas do seu bairro acabam atraindo somente pessoas que se vêem refletidas na aparência estética do espaço. Esse limitado alcance se deriva do fato desses espaços serem normalmente construídos por grupos de pessoas relativamente homogêneos, que muitas vezes definem sua identidade coletiva em termos defensivos ou escapistas, refletindo uma mentalidade de resistência que os distancia do resto da sociedade.

Se queremos sair do gueto, teremos que assumir o desafio de pôr em prática as idéias que a maioria de nós defende sobre a importância da diversidade, sacrificando a segurança, a previsibilidade e a trivialidade que resultam de identidades coletivas homogêneas e relativamente fechadas. Isso não somente reduziria a tendência daqueles que se acham ‘politicamente conscientes’ de se acharem ‘bons demais para se misturar’, mas também é um passo positivo em si mesmo, uma vez que lutar pela autonomia sem diversidade e respeito pela diferença é uma combinação muito perigosa, com um grande potencial autoritário e reacionário. Além disso, identidades coletivas homogêneas são baseadas em convenções que determinam os comportamentos, idéias e valores apropriados. Consequentemente, elas debilitam a liberdade e a autonomia dos membros do coletivo (mesmo quando eles aceitam as convenções voluntariamente), em parte negam as próprias identidades particulares das pessoas, e introduzem arriscadas dinâmicas de poder e liderança, e em alguns caso até mesmo de opressão. A capacidade de auto-abnegação inerente a essas dinâmicas é realçada em uma brochura crítica sobre o movimento dos ‘direitos dos animais’, escrita por alguém que era ativamente engajado nele:

“Os guetos que brotam em torno de temas singulares, grupos políticos, religiões, etc. surgem sim do desejo comum de pertencer, de ser parte do mundo, de estar envolvido em uma verdadeira comunidade. Mas isso sempre e mais uma vez se reduz a representar um papel no mundo e a corresponder a uma dada fórmula de pretensas identidades sociais... Para ‘se encaixar’, é conveniente se adotar as mesmas opiniões, posturas, atitudes e até mesmo vocabulários. Todas as modas são um exemplo de pessoas que se recusam a pensar explicitamente por si mesmas, [sobre] a natureza da sua vida e sua relação com a sociedade como um todo”(11) .

Trata-se de um assunto complexo, já que existem obviamente comportamentos, valores e idéias que não podem ser aceitos, não importa o quanto enriqueçam a diversidade. Mas os limites são subjetivos e discutíveis. Por exemplo, algumas pessoas consideram comer carne algo quase equivalente ao fascismo, enquanto para outros é a coisa mais natural do mundo. Do mesmo modo, existem diferentes abordagens sobre o comportamento sexista ou racista, dependendo de como sua importância e grau sejam concebidos, e a lista poderia continuar ao infinito. Consequentemente, espaços caracterizados pela diversidade estão destinados a fomentar discordâncias, o que é na verdade positivo, uma vez que a discordância nutre a criatividade e a mudança. Novamente é bom salientar que isso não significa que devamos abraçar uma perspectiva relativista, ou que valores coletivos sejam necessariamente uma má idéia. Pelo contrário, eles são indispensáveis, mas se tornam um problema quando são conduzidos de uma maneira moralista, levando à homogeneidade, sectarismo e isolamento, e muitas vezes a repulsivas relações de poder.

Um bom modo de criar espaços políticos e sócio-econômicos alternativos, com lugar para a diferença, seria conscientemente evitando a criação de comunidades políticas com fronteiras e identidades precisas (tais como partidos, associações, corpos legislativos etc.) enquanto estruturas para tomada de decisão e ação baseadas no fato das pessoas ‘serem membros’ delas ou ‘pertencendo’ a elas. Esse tem sido o modo padrão de articulação da vida política, social e econômica desde tempos imemoriais, e que explica por que a maioria das pessoas parece necessitar de tal sentimento de ‘pertencimento’ para se envolver coletivamente com outros. Mas de fato é perfeitamente possível ir além de comunidades políticas isoladas, basta pensar e agir dentro de diferentes níveis de afinidade e de interação livre, combinando vários espaços de comunicação e cooperação fluidos e interligados, de pequenos grupos locais a grandes redes globais, sem ‘pertencer’ a nenhum deles. De fato, tudo que precisamos de modo a agir e cooperar em um contexto de discordância parcial, sobre a base da nossa identidade própria, é alguma flexibilidade e imaginação para se mover entre diferentes espaços, dependendo das finalidades da cooperação em questão e do grau de afinidade que ela requer.

Na verdade isso não é novidade, a maioria das pessoas se relacionam entre si dessa forma nas suas vida cotidianas. Mas a maioria, mesmo as que acreditam na autonomia e na descentralização, adotam em sua atividade ‘política’ uma única identidade coletiva com um único espaço para tomada de decisão, o qual quase sempre se torna o cenário de abomináveis lutas de poder. Isso não é apenas totalmente contraditório com a própria idéia de autonomia, é também uma esplêndida maneira de desestimular a participação de muitas pessoas que têm coisas melhores para fazer do que testemunhar jogos de poder mal disfarçados em intermináveis reuniões sem sentido.

DA RESISTÊNCIA À REVOLUÇÃOSubstituindo o capitalismo por redes de espaços livres, autônomos e auto-suficientes: Uma perspectiva européia ocidental (Parte 2)Indivíduos ligados à AGP(Ação Global dos Povos) na Europa

O processo organizacional da ação contra o Banco Mundial e o FMI no dia 26 de setembro em Praga exemplifica muito bem os problemas associados a espaços únicos para tomada de decisão. Na assembléia preparatória de agosto, a última antes da ação, perdemos uma dia inteiro (além de muito cansativo) discutindo devido à teimosa insistência dos representantes do Socialist Workers’ Party, que queriam que o protesto fosse constituído por uma única passeata. Finalmente chegamos a um consenso ‘por cansaço’ que terminou sendo totalmente sem importância de qualquer maneira, já que a maioria das pessoas que foram à Praga participar na ação tinham suas próprias idéias sobre o que queriam fazer no dia, e se coordenaram no espaço bastante fluido e participativo do centro de convergência, onde vários diferentes níveis de identidade, conexão e coordenação se juntaram em um processo bastante caótico (no melhor sentido da palavra) e criativo. Todos nós sabíamos de antemão que um centro de convergência seria concebido precisamente para esses tipos de interações, mas isso não impediu que muitas pessoas (não somente o Socialist Workers, também algumas pessoas de grupos autônomos) vissem as assembléias preparatórias como o ‘organismo de tomada de decisão’ para todas as pessoas que quisessem se juntar à ação, embora muitos de nós as considerassem simplesmente como um espaço de comunicação entre os diferentes grupos que se mobilizavam para Praga, com o papel principal de assegurar que as pessoas que fossem à Praga para as ações tivessem as condições para interagirem e decidirem livremente. Os mesmos problemas de concepção foram manifestados claramente através das diferenças de entendimento (ou mais asperamente, a total confusão) sobre o papel da INPEG, a coordenação que foi formada para preparar a logística do dia de ação.

Os problemas enfrentados em Praga são provavelmente o mais recente e completo exemplo na Europa Ocidental dos tipos de quebra-cabeças organizacionais e de conflitos que tendem a emergir se quisermos atuar no sentido de uma transformação social de larga escala, de uma forma autônoma mas coordenada, na Europa. Esse processo provavelmente não será possível se não nos esforçarmos conscientemente para superar, a nível local, regional e internacional, as clássicas e monolíticas concepções sobre ‘unidade’, organização e identidade política, trabalhando na direção da construção de conjuntos de espaços autônomos de coordenação complexos, multiculturais e dinâmicos. Embora essa mudança de concepção seja relativamente fácil e não enfrente muitos obstáculos no que diz respeito ao nível internacional ou regional de coordenação (como foi o caso em Praga), seguramente ela não ocorrerá espontaneamente dentro de espaços locais de articulação e organização, onde o vício de homogeneização através de identidades políticas fechadas é mais intenso e alienante. Se ocorrerá ou não, dependerá dos nossos esforços.

Os becos sem saída nacionais

Um problema parecido, também relacionado a temas de identidade e a concepções clássicas de ‘unidade’ e ‘resistência’, é a forte inclinação para reagir contra a ‘globalização’ com nacionalismo (às vezes combinado com fundamentalismo religioso). Essas ‘soluções’, feitas sob medida para grupos de pessoas seletos e específicos às custas de outros, esquecem a contribuição positiva mais importante que a ‘globalização’ tem a oferecer a um genuíno processo de transformação social positiva: o fato de que hoje, mais do que nunca, os sonhos com uma solidariedade internacional e com o apoio mútuo estão dentro de nosso alcance. Tais reações já engendraram aberrações e tragédias na Europa, como por exemplo a ascensão de um partido fascista ao governo austríaco e a guerra na ex-Iugoslávia (que foi maquinada com a ativa participação dos países do Ocidente). Mas isso é só o começo do que poderia se tornar ma evolução política ameaçadora para a Europa, e possivelmente para o resto do mundo, se deixarmos o potencial destrutivo das reações nacionalistas se desdobrarem sem desafio. E uma das principais formas de desafiar essas reações é mostrando às pessoas que olham o futuro com ansiedade, que existem outras saídas, outras alternativas baseadas em valores positivos.

O que torna esse problema particularmente sério e relevante para nós é o modo pelo qual a grande mídia está fortalecendo essas reações através do modo que ela representa nossas mobilizações. Ela geralmente passa a impressão de que aquilo com que todos nós estamos insatisfeitos é a globalização, o neoliberalismo e as corporações transnacionais, e que não temos nada a objetar ao capitalismo se nós enquanto ‘cidadãos’ convencêssemos os políticos a ‘controlar’ sua expansão, seja assegurando que ele permaneça dentro das fronteiras nacionais ou graças à redistribuição global e mecanismos de controle como a taxa Tobin. Essa é infelizmente a posição de várias ONGs reformistas e chamados ‘intelectuais’ que não possuem ligação com nenhum processo de mobilização popular na Europa (excetuando na França, onde as coisas são um pouco diferentes em relação à maioria dos outros países da Europa Ocidental), mas estão sempre procurando oportunidades para se retratarem na mídia como ‘líderes intelectuais’ ou ‘porta-vozes’ do ‘movimento’.

Contudo, a instrumentalização das nossas mobilizações para fins reformistas é também responsabilidade dos grupos populares anticapitalistas que têm realizado a maior parte do trabalho nessas ações, por não termos tornado nossas perspectivas mais amplamente conhecidas como deveríamos. Nossa cuidadosa e cética aproximação da mídia é de fato algo positivo em si mesmo, tendo em conta o papel bastante destrutivo que a mídia pode desempenhar em relação a movimentos populares, mas podemos procurar formas de tornar nossa mensagem clara e alta para todas as pessoas que não tenham uma interação direta conosco ou que não acessem nossa mídia independente e autônoma.

Do mesmo modo, organizações nacionalistas, que estavam quase ausentes nos estágios iniciais desse processo de resistência autônoma anticapitalista, estão ficando cada vez mais interessadas nas nossas ações. O último exemplo são os planos dos nacionalistas catalãos para organizar um encontro de ‘nações sem Estado’ em Barcelona, para protestar contra a Conferência de Desenvolvimento do Banco Mundial na cidade, em junho de 2001. A principal razão para seu súbito interesse pelas instituições globais (quando o seu tradicional campo de ação era a resistência contra os Estados onde estão localizados) é a simpatia pública gozada pelo chamado ‘movimento antiglobalização’ e o potencial que eles vêem para conquistar espaço político projetando o nacionalismo como uma solução à ‘globalização’. Aqueles de nós que não gostariam de ver nosso esforço se tornar munição política para o nacionalismo deveriam fazer algo a respeito bem depressa, porque de outra forma pode ser tarde demais quando reagirmos.

Um infeliz ponto de convergência entre reformistas reacionários e progressistas e nacionalistas é sua obsessão comum pelos ‘direitos dos cidadãos’. Alguns dos grupos progressistas que utilizam esse conceito insistem que a cidadania não deveria depender da nacionalidade, e que esses direitos deveriam ser estendidos a qualquer um que vivesse no país em questão. Mas a mensagem dominante das suas campanhas (que cobrem um largo espectro, das rendas mínimas cidadãs a medidas para proteger a produção nacional da competição das multinacionais) é de que a estrutura legítima de formulação de políticas é o Estado-Nação. Isso implica que os direitos (e deveres) deveriam continuar a ser definidos pelo governo nacional do país que por acaso se habita, um critério parcial e injusto (como cinco séculos de colonização demonstram) que levaria a extremas desigualdades. Já que a única forma de melhorar a sorte dos cidadãos europeus cuja situação piora devido à ‘globalização’, mantendo a máquina da acumulação capitalista viva e cheia de energia, seria isolando completamente os países europeus da dinâmica de competição do mercado internacional e ao mesmo tempo levando a exploração das regiões e continentes desprivilegiados a um tal extremo que as margens de lucro globais concentradas nos países europeus não seriam afetadas pelas políticas de redistribuição. Isso não é possível a menos que fosse imposto pela força sobre outras regiões, e certamente não é desejável, embora partidos fascistas em toda a Europa seguramente ficariam satisfeitos em fazê-lo do mesmo modo que o governo dos EUA está fazendo, com a colaboração de vários países aliados da Europa Ocidental, em países como Iraque e Colômbia. Pedir o restabelecimento dos privilégios nacionais em seus países ou regiões dentro de uma estrutura econômica global levemente reformada é a mensagem subliminar enviada por todos aqueles que gritam contra a ‘globalização’ mas se mantêm em silêncio em relação ao capitalismo.

Um passo que contribuiria muito para clarificar nossos pontos de vista seria expressar ativamente e vigorosamente que não somos contra a globalização, da forma como a mídia repete o tempo todo, mas sim contra o capitalismo. Podemos comemorar a globalização, como Antonio Negri e Michael Hardt fazem em seu livro Império(12) , onde eles usam essa palavra para identificar ‘o regime de relações globais’ que muitos outros chamam ‘globalização’:

“Insistimos na afirmação de que a construção do Império é um passo adiante de modo a afastar qualquer nostalgia por estruturas de poder que o precederam e a recusar qualquer estratégia política que envolva um retorno ao antigo modelo, como por exemplo tentar ressuscitar o Estado-Nação para se proteger do capital global. Alegamos que o Império é melhor, do mesmo modo que Marx insiste que o capitalismo é melhor do que as formações sociais e modos de produção anteriores a ele. O ponto de vista de Marx está baseado em um saudável e lúcido desgosto pelas hierarquias rígidas e paroquiais que precederam a sociedade capitalista, assim como no reconhecimento de que o potencial de libertação é ampliado no novo contexto. Do mesmo modo, hoje podemos ver que o Império afasta os regimes cruéis do poder moderno e também amplia o potencial de libertação”.

Negri e Hardt fazem uma boa observação sobre o espaço de libertação que é ampliado pela globalização. Mas o que eles não levam em conta, seguindo uma longa tradição de pensadores marxistas, é o fato de que nem todas as sociedades pré-capitalistas e modos de produção eram paroquiais e hierárquicos como o feudalismo europeu, uma questão que será abordada mais profundamente na próxima seção.

Outro anacrônico legado do marxismo mais tradicional é a permanente obsessão de muitas organizações e ativistas anticapitalistas (incluindo boa quantidade que faz parte do movimento autonomista) em conceber a classe operária como o principal ator da transformação social a nível nacional (e por último global). Embora a importância dos trabalhadores não seja questionada, as esperanças entusiásticas e fervorosas de uma revolução proletária, proclamada a toda hora por muitas organizações marxistas tradicionais, são totalmente sem sentido. Essas organizações e seus ideólogos parecem não ter percebido as implicações da reestruturação econômica global que tem ocorrido desde os anos 70. Não deveremos ver os trabalhadores tomando o poder em nenhum lugar durante muito tempo, se é que um dia veremos, devido a uma complexa combinação de fatores.

A maciça introdução de tecnologias que dispensam trabalho na maioria dos setores da economia, as profundas mudanças na organização da produção efetuadas pelo pós-fordismo (através das quais grandes e ‘sólidas’ companhias passaram responsabilidades e riscos a pequenas e ‘fracas’ companhias subcontratadas), a divisão de trabalho internacional (que concentra a produção de trabalho intensivo em regiões com boas condições de exploração dos trabalhadores), e o deslocamento de milhões de pessoas a cada ano devido à destruição de seus meios de vida (por guerras, tecnologias agrícolas modernas, megaprojetos, catástrofes ambientais etc.) que têm que procurar novos meios de sobrevivência dentro ou fora de seus países, são algumas das razões que têm feito a maioria dos trabalhadores se sentir bastante feliz sendo explorada, desde que mantenham seus empregos. A máquina de produção global nunca funcionou melhor para os donos do capital, que são agora recebidos com tapetes vermelhos mesmo em países supostamente revolucionários como Cuba e China. Enquanto isso, os sindicatos de todos os tipos e as ideologias estão perdendo sua força e credibilidade.

O único desafio sério a esse processo de acumulação vem de pessoas no Sul que em grande medida dependem da natureza para sua sobrevivência, e que estão resistindo ao seu deslocamento (como o exército indígena Zapatista faz em Chiapas, defendendo o direito das comunidades indígenas controlarem seus recursos e preservar sua cultura), forçado pelo assim chamado ‘desenvolvimento’, ou reivindicando de volta um espaço para sobrevivência (como o movimento dos trabalhadores sem terra estão fazendo em toda a América Latina, e principalmente no Brasil, com suas ocupações de terra). Esses processos de resistência em crescimento estão se tornando um problema real para a expansão futura e acelerada do capitalismo, uma vez que bloqueiam o acesso a recursos naturais. Mas não se tratam das revoluções proletárias que a maior parte dos marxistas tem anunciado por mais de um século e meio. São processos de resistência de pessoas que estão tentando evitar sua proletarização, manter um nível mínimo de auto-suficiência e ficar longe das misérias da dependência. Ao invés de visar a tomada do poder a nível nacional, elas estão defendendo ou reconstruindo espaços de poder autônomo a nível local. Portanto, mesmo em países onde a maior parte da população (não apenas os excluídos, mas também aqueles com trabalho) vive em horríveis condições, uma revolução proletária está totalmente fora de vista.

Mas mesmo se os trabalhadores estivessem em posição de derrubar o governo e tomar o poder em algum lugar do mundo, e mesmo assumindo (contra todas as evidências históricas disponíveis) que isso não conduziria à criação de um regime autoritário e despótico, essa não é a melhor época para romantizar revoluções nacionais. Os Estados Unidos e seus aliados da Europa Ocidental (principalmente o Reino Unido) estão mais do que prontos para utilizar sua máquina de poder militar contra qualquer governo que eles achem ser uma séria ameaça aos seus interesses, como já demonstraram por inúmeras e suficientes vezes, e isso é extremamente improvável que mude em um futuro próximo. Portanto, revoluções nacionais nesses tempos estão predestinadas à mesma lenta derrota ocorrida na Nicarágua, com todo o sofrimento humano e desmoralização que isso implica.

Localismo, tecnologia e progresso

O papel repressivo que os Estados-Nação desempenham na Europa desde de sua formação (13) , juntamente com os problemas inerentes às estruturas nacionais com vistas à transformação social (seja qual for sua ideologia), têm levado muita gente a reagir através da mistificação do âmbito local. Muitos críticos da ‘globalização’ defendem que relações sustentáveis e igualitárias somente são possíveis através da interação a nível local, e consequentemente restringem a maior parte do seu trabalho político a esse nível, mantendo ligações nacionais e internacionais apenas circunstancialmente.

De mesmo modo, considerações sobre o uso destrutivo da maioria das tecnologias têm provocado uma forte aversão à tecnologia entre muitas pessoas (principalmente aqueles com consciência ambiental), que reagem a isso idealizando o trabalho manual e odiando máquinas. Porém, o primitivismo é bastante alienante à maioria das pessoas neste mundo, que sentem o desejo totalmente legítimo de viver em condições confortáveis e possuir o máximo de tempo livre de modo a poderem determinar como gastá-lo. Não resta dúvida que algumas tecnologias, como a biotecnologia e a indústria nuclear, são destrutivas independente do uso que possamos dar a elas, e que algumas tecnologias aumentam a dependência e portanto restringem a liberdade, embora isso seja normalmente conseqüência da forma que são disponibilizadas e usadas, e não da tecnologia em si mesma. Mas existe também uma grande quantidade de tecnologias que podem ajudar a se atingir maiores graus de liberdade, e que possuem conseqüências ambientais desprezíveis (como geradores de pequena escala que utilizam energia eólica feitos de material reciclado) e meios para reduzir a dependência provocada pelo uso de certas tecnologias (como as redes anticomerciais que trabalham coletivamente para produzir programas de computador sem copyright). Mesmo algumas tecnologias que produzem um certo grau de dependência podem ter um efeito global positivo, como por exemplo muitos métodos contraceptivos. Computadores têm sido, por exemplo, indispensáveis para a criação de redes globais de ação autônoma e descentralizada. Sem eles, teríamos possibilidades muito mais limitadas para associar nossa resistência globalmente.

Como era de se esperar, o localismo é freqüentemente ligado ao primitivismo, e nesses casos, os grupos em questão muitas vezes possuem identidades coletivas bastante fechadas: muitos deles se distanciam contundentemente do resto da sociedade. A escolha é deles, e na maioria dos casos não há problema, desde que não tragam nenhuma implicação negativa para outras pessoas. Mas tais posturas possuem um potencial bastante perigoso quando sua base ideológica é unicamente a suposta destruição do planeta pela ‘humanidade’, desconsiderando que os problemas ambientais estão enraizados em um sistema de produção mantido por relações de poder opressivas. A difusão desse modo de pensar oferece um grande potencial para pregadores fascistas, como foi acuradamente identificado pelos ecologistas sociais Janet Biehl e Peter Staudenmaier:

“Durante o Terceiro Reich... ‘Ecologistas’ nazistas até mesmo tornaram a agricultura orgânica, o vegetarianismo, a veneração da natureza e temas relacionados, em elementos fundamentais não somente da sua ideologia, mas também da sua política governamental. Além disso, a ideologia ‘ecológica’ nazista era usada para justificar a destruição dos judeus europeus. Também alguns dos temas que os ideólogos nazistas articulavam, trazem uma semelhança forte e perturbadora com temas familiares às pessoas ecologicamente preocupadas de hoje em dia... Atualizando sua ideologia e falando na nova linguagem ecológica, esses movimentos estão novamente invocando temas ecológicos para servir à reação social... enfatizam a supremacia da ‘Terra’ sobre as pessoas, evocam os ‘sentimentos’ e a intuição às custas da razão, e sustentam um grosseiro sóciobiologismo e até mesmo um biologismo malthusiano... Como ecologistas sociais, nós... sustentamos a importância da razão, da ciência e da tecnologia na criação de um movimento ecológico progressista e de uma sociedade ecológica”(14) .

Não se trata de um problema do passado. O grupo antifascista holandês “De Fabel van de illegaal” escreveu uma série de artigos quando decidiram parar todas as suas atividades antiglobalização, que mostram como os movimentos ambientalistas e o chamado ‘movimento antiglobalização’ têm se tornado o ‘terreno de atuação’ favorito dos fascistas europeus. Segundo eles, “uma das estratégias da Nova Direita é procurar tendências nacionalistas e conservadoras nas ideologias supostamente de esquerda e adotar essas idéias para o seu próprio crescimento”(15) . Um dos exemplos mais chocantes que eles expuseram foram as ligações de Edward Goldsmith, editor da The Ecologist, a mais importante revista ambientalista do Reino Unido, com a Nova Direita(16) :

“Goldsmith faz um apelo por uma política verde que restabeleça uma “ordem social natural” e “as tradicionais relações entre as pessoas”. “Os verdadeiros problemas são causados pelo rompimento de sistemas naturais como a família, a sociedade e o sistema ecológico”, ele escreveu recentemente na The Ecologist. Somente quando as relações humanas forem novamente organizadas pelas “leis de Gaia” uma sociedade estável será possível segundo ele. Goldsmith descreve alguns conflitos políticos como problemas “naturais” ou “étnicos”. Ele acredita que “grupos étnicos diferentes” não podem viver juntos em um país... Goldsmith vê os católicos e protestantes da Irlanda do Norte “como dois grupos étnicos diferentes”, que deveriam ser separados. Ele também é um fã de Ataturk(17) , que de acordo com Goldsmith, “separou gregos e turcos com absoluto sucesso, embora tenha havido uma terrível gritaria na época e tenha sem dúvida causado uma inconveniência considerável a pessoas que eram forçadas a migrar. Mas não deveríamos desejar aceitar medidas incômodas de modo a estabelecer uma sociedade estável?”... Comparando sociedades humanas com organismos biológicos, Edward Goldsmith até mesmo argumentou: “O que hoje é considerado preconceito contra pessoas de grupos étnicos diferentes é uma característica normal e necessária do comportamento cultural humano, e é ausente somente entre membros de um sistema cultural já em estado avançado de desintegração”. Muita gente na Nova Direita vê Edward Goldsmith como um dos seus mais importantes ideólogos... Ele é o presidente da Ecoropa(18) e membro do quadro de diretores do Fórum Internacional sobre Globalização (IFG)”(19) .

Trata-se, no entanto, de um assunto complexo, uma vez que existe certamente uma sobreposição entre a mensagem de grupos fascistas e as idéias que a maior parte dos progressistas da Europa Ocidental defendem quando falam dos povos indígenas. Fabel reproduziu as reflexões sobre essa sobreposição de Veldman, um dos mais importantes ideólogos da Nova Direita na Holanda:

“Não faz sentido que a identidade política explícita de minorias quase extintas e destruídas, e mini-povos ‘fora de risco’, obtenham tanto apoio, enquanto o mesmo conjunto de valores é imediatamente posto sob suspeita quando sustenta o nacionalismo vigoroso de um povo relativamente maior”, Veldman diz, desconsiderando simplesmente todos os livros de história cheios de “minorias” sendo mortas por “povos relativamente maiores” que propagavam esse tal “nacionalismo vigoroso”... “Vendo tantas pessoas bem intencionadas valorizarem a cultura e visão de mundo dos povos indígenas, é surpreendente que os europeus que também possuem aversão ao progresso e também tentam recuperar suas raízes culturais e identidade, sejam confrontados com tamanha desconfiança e resistência por pessoas que dizem compartilhar os mesmos valores”(20) .

É claro, a solidariedade da maioria dos europeus de esquerda que apóiam as lutas dos povos indígenas e outros setores rurais que lutam pelo autogoverno (afro-americanos que vivem em comunidades rurais livres, certas comunidades de agricultores etc.) não tem nada a ver com a etnicidade ou com essencialismo cultural. Pelo contrário, é motivado pelo caráter anti-capitalista e autonomista dessas lutas, pela percepção de que muitas dessas sociedades rurais carregam muitos valores ambientais e sociais positivos, e pela violenta opressão que elas têm sofrido há séculos (principalmente sob domínio colonial europeu). Consequentemente, há uma clara análise entre os defensores da autonomia indígena, dos camponeses e dos afro-americanos que os imuniza contra as tentativas de cooptação da Nova Direita. Mas Veldman levanta uma questão extremamente importante e que realmente precisa ser discutida pelo movimento ambientalista radical: a concepção de progresso.

Uma grande parte dos grupos ambientalistas radicais da Europa Ocidental (principalmente aqueles com idéias próximas à chamada ‘ecologia profunda’) se consideram parte de um vago movimento ‘antidesenvolvimento’. A rejeição do conceito de ‘desenvolvimento’ é totalmente justificado se se observa a história de abuso, destruição, destituição e exploração que tem sido gerada em nome desse conceito cosmético, inventado pela administração dos EUA no período pós-guerra para vestir a exploração neocolonial do Sul com uma retórica humanitária e compassiva. Mas essa crítica não deveria terminar em uma idealização do passado e numa visão romântica das sociedades estáticas (que de qualquer forma nunca existirão). Novamente, nas palavras do Fabel:

“Os ativistas de esquerda deveriam ao invés lutar por uma sociedade que possa mudar, e na qual todos os recém-chegados possam igualmente participar. A esquerda deveria lutar para desenvolver culturas de luta internacionalistas e autônomas... Os ativistas de esquerda não deveriam protestar contra uma globalização da solidariedade ou um intercâmbio global de culturas e idéias. E contra o progresso menos ainda. A verdadeira luta é sobre a direção na qual iremos progredir, e mais importante: quem irá decidir sobre isso”(22) .

As novas redes de grupos de ação autônomos podem desempenhar um papel importante na promoção desse importante debate dentro do movimento ambientalista radical. Esse é um bom exemplo da importância dessas redes e conexões para facilitar o intercâmbio de idéias (incluindo a provocação mútua quando necessário, mas de forma cordial, como se espera) entre grupos que estavam anteriormente bastante afastados uns dos outros. Tais intercâmbios pode ser tremendamente úteis para fazer avançar nossas análises e compreensões individuais e coletivas do mundo, da transformação social e do nosso papel nela.

Desafios pela frente

Além desses e outros debates, muitos outros desafios terão que ser superados antes que os processos de criação de espaços livres, autônomos e auto-sustentados na Europa Ocidental possa se tornar revolucionário.

Primeiramente, precisamos trabalhar duro com nossas práticas de comunicação, de modo a alcançar entendimentos coletivos, em diferentes níveis, sobre o que queremos e como queremos chegar lá. Não se trata de um pequeno desafio, como os últimos três anos amplamente demonstraram. Deveríamos também experimentar e aperfeiçoar maneiras de eliminar todas as formas e sistemas de opressão, dominação e discriminação dentro dos nossos círculos (ao mesmo tempo mantendo o direito à diferença e tomando precauções contra a formação de identidades coletivas dominadoras) e lidar com o conflito e a dissensão construtivamente (de modo que enriqueçam o que fazemos, ao invés de nos dividir), já que somos deficientes em ambas questões. Além disso, será necessário um compartilhamento muito maior das capacidades e conhecimentos ao longo do processo, tanto no plano da análise (através de seminários, intercâmbio com pessoas de outras partes do mundo etc.), quanto no intercâmbio de instrumentos para auto-suficiência organizacional e econômica (tecnologias de comunicação, energia renovável, agricultura ecológica, línguas etc.), evitando o estabelecimento de lideranças e hierarquias conseqüentes de uma especialização. Por fim, deveríamos continuar os magníficos esforços de desenvolvimento de formas mais eficientes e criativas de transmissão da nossa mensagem para o resto da sociedade sem depender da grande mídia.

Outro desafio será a repressão estatal, que poderá se tornar um verdadeiro pesadelo se esse processo se enraizar e se fortalecer, principalmente se esses espaços bloquearem o acesso a recursos exploráveis (e ainda mais se houverem conflitos por causa de recursos básicos, como a água). Esse é mais um motivo para permanecer o máximo possível em contato com o resto da sociedade, uma vez que um Estado deslegitimizado terá dificuldade de reprimir espaços que são vistos com bons olhos pela maioria da população.

Ligado a isso, existe um par de questões espinhosas que não poderemos evitar, já que elas têm sido o objeto de discussões bastante longas e difíceis em espaços autônomos, mas ainda não foram resolvidas: formas de ação violentas (incluindo aquelas que não colocam qualquer ameaça à vida ou à saúde) e o autodestrutivo uso de drogas. Ambas têm sido usadas amplamente pelo Estado para reprimir com sucesso e destruir movimentos sociais. As redes de ação autônomas de hoje são pequenas e frágeis comparadas a movimentos que já foram esmagados por medidas inconstitucionais (mas infelizmente muito populares) contra ‘pessoas violentas’, ou por LSD e outras drogas introduzidas pelo aparato estatal de modo a destruir vidas humanas e criminalizar os dissidentes. É importante discutir essas experiências históricas coletivamente, principalmente no contexto do aumento da (bastante positiva) interdependência efetuada pelas redes de grupos de ação autônomos. Uma vez que, como o ex-ativista dos direitos dos animais colocou: “Construir comunidades, eliminar os fossos e cicatrizar as feridas entre nós, lidar com a nossa própria alienação e condicionamento é uma tarefa muito difícil e nem um pouco romântica, e que não cria heróis e mártires... Arremessar uma pedra em uma vidraça ou construir um dispositivo incendiário é ridiculamente fácil em comparação”(22) .

O bom de todos esses desafios é que, como mencionado acima, só depende de nós superá-los. Um grupo de pessoas já está discutindo a idéia de lançar um espaço constituído globalmente em forma de rede para a experimentação e compartilhamento de conhecimentos/capacidades, de modo a promover esses tipos de processos revolucionários. Se você quer participar desse processo de discussão, ou tem alguma observação ou críticas para compartilhar, por favor escreva para autonomousrevolutions@gmx.net.

NOTAS:

(1) Este texto é o último capítulo do livro Restructuring and Resistance in Western Europe, Diverse Voices of Struggle (Resresrev, 2001).

(2) Este texto não está assinado porque ele é resultado de longas discussões entre uma diversidade de pessoas. Embora muitas questões discutidas neste texto sejam certamente relevantes para outros continentes também, a ênfase se focou na Europa Ocidental já que é a região do mundo que as pessoas que participaram das discussões conhecem relativamente bem. ‘Nós’, dentro deste texto, portanto significa as pessoas ativamente engajadas na resistência autônoma anticapitalista na Europa Ocidental.

(3) Trata-se do livro Restructuring and Resistance in Western Europe, Diverse Voices of Struggle (NT).

(4) Isso significa que os países do Sul têm que fornecer crescentes quantidades do que produzem (matéria-prima, principalmente) em troca do que adquirem dos países do Norte (principalmente produtos industriais e serviços). Essa deterioração das relações comerciais não está acontecendo espontaneamente: ela foi violentamente iniciada pelos poderes coloniais e mantida no período pós-guerra pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, principalmente desde a década de 80, devido ao imenso poder que a crise da dívida deu a essas instituições.

(5) Muitas regiões ‘não-competitivas’ na Europa Ocidental já aceitam os incômodos ambientais que as regiões mais ricas não querem e que podem ser transferidos, como por exemplo o lixo tóxico (que já provocou um desastre ambiental no sul da Espanha), o estrume de porco (produtores de carne do norte da Europa pagam agricultores no sul da Europa para cuidarem de seus porcos, devido às conseqüências da produção excessiva de porcos, de modo a manter o lucro mas deixar os outros lidarem com a merda), os incineradores de lixo etc. Essas ‘exportações’ se juntam aos generalizados e cada vez piores problemas ecológicos, da mudança climática (que se manifestará principalmente através de uma maior instabilidade e desastres, os quais os governos terão cada vez menos meios para aliviar) aos ainda desconhecidos efeitos a longo prazo da engenharia genética, além de muitos outros.

(6) As agências de avaliação de crédito calculam e avaliam os riscos associados aos títulos da dívida pública emitidos pelos governos de todo o mundo. Os governos emitem títulos da dívida pública como fonte de renda: é como se o governo pegasse um empréstimo (com juros) de mãos privadas, se comprometendo a pagar de volta após um certo período. Para muitos países do Sul é vital vender a dívida pública em mercados financeiros internacionais (onde ela é negociada como uma das várias mercadorias internacionais) para manter sua balança macroeconômica, principalmente como uma fonte de moeda forte. Os juros que eles têm que pagar dependem da avaliação dos riscos feita por essas agências: quanto maiores os riscos, maiores são os juros que eles têm que oferecer. Quatro agências de avaliação de crédito (é claro, todas são privadas, três sediadas em Nova York e uma em Londres) fazem um ranking de países para os olhos dos mercados financeiros, baseando suas decisões principalmente na avaliação da política desses países. Elas podem, portanto, fazer os países se ajoelharem diante delas e forçá-los, indiretamente, a tomarem importantes decisões políticas, como foi o caso quando elas rebaixaram a avaliação do Equador. A crise provocada por essa decisão desempenhou um papel crucial na dolarização da economia do Equador. Fato que foi severamente contestado pelos movimentos sociais do país, que chegaram ao ponto de ocupar o parlamento e destituir o presidente em janeiro de 2000 para impedir a dolarização. Porém, a dolarização foi feita pelo governo seguinte. Mas isso é uma outra história...

(7) Citado do manifesto da AGP na forma que foi aprovado na primeira conferência da AGP. Essa também é a atual versão do manifesto no momento em que este texto foi escrito, mas ele pode ser mudado em futuras conferências da AGP. O texto completo do primeiro manifesto da AGP de junho de 1998 está disponível em http://www.agp.org/.

(8) Mais conhecido como Nova Zelândia (NT).

(9) Martin, Biddy (1988) Feminism, Criticism and Foucault, in I. Diamond and L. Quinby (eds.) (1998) Feminism and Foucault: Reflections on Resistance, Boston: Northeastern University Press.

(10) Retirado do segundo princípio da AGP, introduzido na segunda conferência da AGP. Veja o boletim da AGP número quatro em http://www.agp.org/.

(11) Do anônimo e sem data, Animal liberation - devastate to liberate? or devastatingly liberal?.

(12) Negri, A. & Hardt, Michael (2001) Império, Record: Rio de Janeiro.

(13) Os Estados-Nação ainda possuem uma boa reputação em outras partes do mundo uma vez que eles efetivamente libertaram as pessoas do jugo colonial. Porém, em grande parte da Europa Ocidental eles nunca preencheram essa função.

(14) Biehl, Janet & Staudenmaier, Peter (1995) Ecofascism: Lessons from the German Experience, Edinburgh: AK Press.

(15) Krebbers, Eric & Schoenmaker, Merijn (1999) De Fabel van de illegaal quits Dutch anti-MAI campaign, Leiden: De Fabel van de illegaal.

(16) Por essa razão, exatamente as melhores pessoas da equipe editorial da The Ecologist deixaram a revista e formaram seu próprio coletivo de pesquisa e editorial, chamado The Cornerhouse.

(17) Mustafa Kemal Ataturk (1881-1938), fundador da República da Turquia. Se tornou o líder carismático da luta de libertação nacional turca em 1919. Foi presidente da Turquia durante quinze anos (NT).

(18) Ecoropa, ou Grupo Europeu para Ação Ecológica, é uma ONG (NT).

(19) Ibid.

(20) Krebbers, Eric (1998) Together with the New Right against globalisation? Leiden: De Fabel van de illegaal.

(21) Ibid

(22) Do anônimo e sem data, “animal liberation - devastate to liberate? or devastatingly liberal?”.

Fonte: CMI - Centro de Mídia Independente (http://www.midiaindependente.org/).

fonte para o nosso blog - Rizoma.net

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