domingo, 5 de abril de 2009

TROCA-TROCA - ARTE CONTEMPORÂNEA NA VIDA DE UMA PEQUENA CIDADE E O POTENCIAL EDUCACIONAL DE TRÊS FUSCAS - Ailtom Gobira




Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.
(Paulo Freire)

O principal objetivo deste ensaio é analisar, do ponto de vista educacional, o objeto de arte contemporânea Troca-Troca, três fuscas remodelados em oficinas da periferia da cidade do Rio de Janeiro, um projeto coordenado pelo artista Jarbas Lopes, bem como analisar o texto Diário de Bordo, escrito quando Jarbas Lopes e outros sete amigos viajavam em três carros do Rio de Janeiro até Curitiba, onde os fuscas foram entregues para uma exposição.

Analisar também o relacionamento entre um Museu de Arte Contemporânea com a comunidade de Brumadinho, uma pequena cidade do interior do Brasil, bem como a representação do fusca na cultura brasileira.




GAMBIARRA – BRASIL - REINO UNIDO - BRASIL

O meu primeiro encontro com o trabalho de Jarbas Lopes aconteceu em 2004 durante a exposição coletiva de artistas brasileiros, Gambiarra, que aconteceu na galeria Firstsite Minorities, na cidade de Colchester, interior da Inglaterra. A exposição foi organizada pela galeria Gasworks e apresentada pela primeira vez em solo inglês, em Londres, no outono de 2003. O objetivo da galeria era mostrar um grupo de artistas brasileiros que adotavam, entre si, práticas similares do fazer artístico.

Gambiarra em português refere-se a uma estratégia comum empregada por todos os artistas envolvidos neste projeto, que não vêem esse trabalho simplesmente como uma metodologia de pesquisa, mas também e mais importante, como uma metáfora positiva e poderosa para suas reflexões sobre instituições culturais e a complexidade de suas posições como parte dessas instituições. As decisões tomadas pelos artistas ao usar soluções rápidas, materiais mais baratos e gambiarra estão ligadas a grande desigualdade presente na sociedade brasileira e que afeta seus valores e símbolos (Gasworks, 2003)

Gambiarra é uma prática comum entre brasileiros, especialmente entre os grupos menos favorecidos da sociedade. Segundo o dicionário Houaiss gambiarra significa uma “extensão elétrica, de fio comprido, com uma lâmpada na extremidade, que permite a utilização da luz em diferentes localizações dentro de uma área relativamente grande” ou ainda uma “extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica; gato”. No meu ponto de vista gambiarra também se refere à maneira criativa com que as pessoas pobres da sociedade brasileira fazem utensílios para o uso diário, transformando, por exemplo, latas de óleo em canecas, latas de massa de tomate em lamparina; um conhecimento que é passado de pai para filho e que é fruto da falta de recursos materiais.

Lendo atentamente o material distribuído para a exposição me deparei com o Diário de Bordo. O diário é uma descrição poética da viagem de três fuscas que aconteceu em novembro de 2002 e descreve a saída dos três carros da periferia do Rio de Janeiro, onde foram remodelados, até o novo Museu de Arte Contemporânea em Curitiba, no Paraná. A descrição poética da viagem e a idéia de transformar três fuscas em objetos de arte contemporânea mexeram com a minha imaginação. Ao buscar na Internet informações sobre os fuscas descobri que, o CACI, Centro de Arte Contemporânea Inhotim, uma nova instituição de arte contemporânea brasileira, havia comprado o Troca-Troca. O CACI fica em Brumadinho, uma cidade localizada a sessenta quilômetros de Belo Horizonte em Minas Gerais.



ARTE CONTEMPORÂNEA E INTERVENÇÃO NA PAISAGEM DE UMA CIDADE PEQUENA

Antes de analisar os fuscas do Troca-troca e o Diário de Bordo, é importante que se faça uma reflexão sobre o local onde os fuscas estão “estacionados” e a posição que este modelo de carro ocupa na cultura e imaginário brasileiro.

Primeiramente, é necessário entender a proposta do CACI, compreendendo assim o porquê uma instituição como esta foi criada em uma cidade pequena, longe dos principais centros econômicos brasileiros, aproximadamente a seiscentos quilômetros do Rio de Janeiro e São Paulo e a quarenta e cinco minutos de carro da capital do estado, Belo Horizonte.

A instituição está localizada em uma fazenda e tem em sua coleção um grande número de objetos de arte contemporânea, principalmente de arte brasileira. O CACI - Centro de Arte Contemporânea Inhotim – é um empreendimento de Bernardo Paz; empresário proprietário da companhia mineradora Itaminas; e de acordo com o release distribuído à imprensa em 2003 o CACI pode ser considerado a iniciativa mais importante do ponto de vista institucional, desde a criação do MASP em 1947 por Assis Chateaubriand.

O MASP é uma das instituições artística brasileira mais importante e é resultado de uma iniciativa individual do empresário Assis Chateaubriand, proprietário de jornal, rádio e emissoras de TV, e apoiado pelo italiano Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de 1947 a 1990, que organizou a maior coleção de arte moderna da América Latina, oferecendo ao público brasileiro a possibilidade de apreciação dos trabalhos de Picasso, Van Gogh e Monet, entre muitos outros.

O CACI está localizado em uma fazenda de 300.000 metros quadrados de jardins, dentro de 1,5 milhão de metros quadrados de mata nativa, uma propriedade de Bernardo Paz, onde fica sua casa de campo. Nos anos 80 Paz começou a colecionar arte moderna e mais tarde em 1998 comprou seu primeiro objeto de arte contemporânea, uma instalação do artista brasileiro Tunga. O contato com Tunga durante o processo de criação da instalação mudou sua concepção sobre arte, conseqüentemente Paz vendeu sua coleção de pinturas modernistas e começou a comprar outros objetos de arte e instalações. A aquisição de instalações e outros objetos de arte contemporânea o levou a abrir galerias, para então, poder guardar sua coleção particular.
A casa de campo foi transformada em um centro cultural privado e teve também a participação do arquiteto e paisagista Burle Marx na elaboração dos projetos do seu jardim. Foram construídas 7 galerias espalhadas pelos 300.000 metros quadrados e quatro curadores foram convidados a fazer parte do Museu: os brasileiros Ricardo Sardenberg e Rodrigo Moura, o alemão Jochen Volz e o norte-americano Allan Schwartzman que atua como diretor da curadoria da coleção do CACI.

Em 2004 aconteceu um dos mais importante evento de arte brasileira, a XXVI Bienal de São Paulo. Bernardo Paz e seu grupo de curadores acharam que seria uma ótima oportunidade para apresentar o museu à imprensa, aos artistas e críticos, mesmo sem o término das obras em partes importantes do museu. O CACI tem um grupo de 7 galerias e uma coleção que inclui cerca de 500 trabalhos de artistas brasileiros como Cildo Meireles, Miguel Rio Branco, Tunga, Ernesto Neto, Vik Muniz e Helio Oiticica; e de artistas estrangeiros como Paul McCarthy, Dan Graham, Albert Oehlen, Olafur Eliasson, Franz Ackerman, Zhang Huan e Janet Cardiff.

Segundo o diretor do museu, Bernardo Paz, “A arte só faz sentido quando apreciada por todos. Não há razão para restringir o acesso à arte contemporânea a uns poucos colecionadores. Foi esse propósito que norteou a criação do CACI".

Algumas perguntas se apresentam diante da declaração de Paz: É importante criar objetos de arte contemporânea que possam ser apreciados por todos? É possível que todos tenham acesso à arte contemporânea? Que tipos de conexões podem ser estabelecidos com a comunidade para que todos os canais possam ser abertos para o diálogo e para que o museu possa se transformar em uma instituição educacional?

No livro “In Museum and Gallery in Education” [O museu e a galeria na educação], Hooper-Greenhill diz o seguinte: “No final do século XX, depois do advento da escola para todos, a filosofia do aprendizado para a vida toda e o reconhecimento de que o aprendizado não termina com a finalização da escola formal, podem oferecer uma sustentação teórica no sentido de novos esforços para transformar os museus tanto como uma forma de entretenimento quanto de educação para toda a população”. (Hooper-Greenhill, 1994: 10)

Os problemas da educação no Brasil estão longe de serem resolvidos, especialmente numa cidade como Brumadinho onde segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - um chefe de família tem em média 5 anos de estudo.

Considerando esta média podemos dizer que a responsabilidade de um lugar como o CACI é enorme. Sob o ponto de vista educacional, o museu deve promover o encontro entre os artistas contemporâneos e a comunidade de Brumadinho, o que é vital para o sucesso da instituição; um encontro democrático que considere a maneira de vida e a cultura da comunidade.

“Porque é encontro de homens e mulheres que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro”. (Freire, 1970: 45).

O museu promove ações que demonstram uma intenção clara de promover o encontro entre o museu e a comunidade. Foi lançado um esquema de artista em residência que tem como objetivo criar um ambiente onde os artistas possam explorar o ambiente ao redor e também trabalhar com a comunidade.

Em 2004 e 2005 dois artistas norte-americanos, John Ahearn e Rigoberto Torres foram comissionados para desenvolver um trabalho junto à comunidade de Brumadinho; o museu alugou uma sala no terminal de ônibus e os artistas tiraram moldes de todos os tipos de pessoas, incluindo jovens, idosos, homens e mulheres, ricos e pobres.

Os artistas também participaram do festival popular afro-brasileiro, Congada, realizado no bairro Inhotim e fizeram moldes dos rostos, mãos e pés dos músicos e dançarinos participantes da festa. O trabalho dos artistas resultou em obras que podem ser apreciadas no museu.

Outra decisão importante tomada pela direção do CACI foi o apoio à igreja católica na periferia dos jardins onde o museu está localizado. A igreja celebra missa aos domingos e organiza todos os festivais que fazem parte do calendário católico exatamente como antes da construção do museu.


O SIGNIFICADO DO FUSCA NA CULTURA BRASILEIRA
Para entender o impacto do trabalho de Jarbas Lopes, especialmente para o público brasileiro, é essencial um olhar para a importância do fusca no Brasil. O fusca é ainda um carro popular especialmente em regiões pobres do país, onde muitas estradas ainda não são pavimentadas.

O fusca deixou de ser produzido em 1996, entretanto os carros produzidos nos anos 80, 70 e 60 ainda têm um grande valor comercial. Os amantes do fusca criaram um dia especial para comemorar o carro, dia 20 de Janeiro. No livreto O Diário de Bordo há uma citação do encontro na Barra do Turvo, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo.

“Na estrada quase na divisa, em Barra do Turvo, um mergulho. Parada para perguntar, encontramos Evandro num largo pó de pedra, uma casa e uma birosca no meio do nada cercado por colinas, paisagem perfeita a espera de maquiagem. Ele tinha um fusquinha bege... Pegamos a estrada e quebramos a direita no chão de barro entrando mata adentro, o moderno fica para trás... Apeamos os carros no barranco e fomos ao mergulho Zennudismo nas águas de “iara”- Aimberê”. Aí ficamos chapados na mata selva-gem, cada um na sua, amarrados na água corrente”. (Diário de Bordo, 2002).

O fusca começou a ser fabricado na Alemanha nazista de 1930 e no Brasil em 1959 quando o país estava vivendo o sonho do processo de industrialização. Um carro como o fusca foi então a oportunidade para preencher tanto as aspirações da classe média quanto o discurso demagógico dos políticos. Mais tarde, em 1962, o carro já era o mais vendido no Brasil.

Em 1970, durante a ditadura militar, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo, um político de São Paulo deu um fusca para cada jogador brasileiro, um casamento perfeito: futebol e fusca. Durante a década de 70, a venda do carro cresceu consideravelmente, modelos diferentes foram lançados sistematicamente. Contudo, no final da década, o fusca já não era mais o carro da classe média e tornou-se, então, o carro usado por sitiantes e trabalhadores das grandes cidades. Em 1978 a empresa alemã Volkswagen interrompeu a fabricação do fusca na Europa, mas a fábrica brasileira continuou a fabricá-lo até 1986.

Em 1993, o então presidente brasileiro Itamar Franco solicitou a empresa alemã que voltasse a fabricar o carro novamente; sendo produzido até 1996, quando a empresa decidiu interromper a fabricação definitivamente. No interior do Brasil o fusca é ainda um símbolo de desejo para a população mais pobre e é um carro para viajar em estradas de terra e com uma manutenção relativamente barata.

No Mercado internacional, em 1998 foi lançado o New Beattle , o novo fusca, no mesmo ano em que Bernardo Paz iniciou sua coleção. O novo fusca não é fabricado no Brasil, e é, em geral, um carro importado e caro e os compradores são normalmente ricos ou da classe média alta que podem arcar com os custos de importação e manutenção do veículo.


TRABALHO COLABORATIVO
O Troca-Troca são três carros, mais precisamente, três fuscas descaracterizados pelo artista Jarbas Lopes:

“Três carros, com sonorização em rede, plugáveis entre si. Três brinquedos gigantes nas cores, vermelha, amarela e azul. Portas, capot e porta-malas, tudo trocado… Uma beleza…” (Diário de Bordo, 2002).

Oito amigos, incluindo Jarbas viajaram do Rio de Janeiro até Curitiba, oitocentos quilômetros de Estrada, tendo no meio do trajeto a cidade de São Paulo. Viajaram com Jarbas, Marssares, Ducha, Aimbere, Sergio da Torre, Leo, Jorge Melodia e Luís Andrade. Andrade escreveu parte do diário, a viagem entre o Rio de Janeiro e São Paulo, já na viagem de São Paulo a Curitiba, Jarbas foi o encarregado do diário.

O acordo era viajar com essa nova produção em comboio até o estado do Paraná, onde os carros seriam entregues a alguém do mercado negro, em uma instituição local…”abrindo o novo museu de arte contemporânea de Curitiba, em novembro de 2002, no Paraná”. (Diário de Bordo, 2002).

O Troca-Troca resultou da colaboração de oito pessoas que viajaram juntas, um grupo de mecânicos, um especialista em som de carro e um estofador. É um bom exemplo do trabalho colaborativo, outro aspecto típico da cultura brasileira.

O esforço coletivo para construir aldeias, faz parte da cultura entre as comunidades indígenas brasileiras. Nas grandes cidades é muito comum a prática do mutirão na construção de casas e barracos. O trabalho colaborativo também é muito comum na área rural brasileira, durante a plantação e colheita os vizinhos ajudam uns aos outros.

Tenho certeza que a colaboração não é uma característica exclusiva da cultura brasileira, mas está presente em países pobres e esteve presente também na Europa e Estados Unidos antes da revolução industrial, no século XVIII.

Em termos de arte, a colaboração era freqüente no passado, principalmente antes do Renascimento. Depois daquele período, principalmente durante os tempos modernos, o individualismo, o artista como um gênio, ditava a maneira de se fazer arte. Somente recentemente a questão da coletividade e do trabalho colaborativo de arte tem sido discutida como uma alternativa importante, como pontuou Suzanne Lacy:

“algo mudou em relação à criatividade autônoma e independente para uma nova estrutura de diálogo, que normalmente não é produzida somente por um único indivíduo, mas é o resultado de um processo colaborativo e interdependente. Como artista deixe o sistema antigo e reconsidere o que significa ser artista.. eles estão reconstruindo a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o trabalho artístico e o público”. Lacy (1995).

No Brasil o trabalho artístico individual é uma herança da Europa modernista e acadêmica, no entanto, a arte popular brasileira é essencialmente colaborativa. Um grupo de artistas brasileiros, em particular Helio Oiticica e Lygia Clark, questionaram nos anos 50 e 60 a posição do artista e do objeto de arte, não somente o fazer artístico individual, mas também a participação e apreciação da arte. Na cultura brasileira, participação é fundamental:

“Acredito que nossa grande invenção é exatamente na forma de participação ou, melhor que isso, em seu significado, que diferenciamos com o que é proposto na Europa super civilizada ou nos Estados Unidos.”(Oiticica, 2004)


CARNAVAL E ARTE CONTEMPORÂNEA
Os três fuscas são objetos de arte e devem estar na rua, misturado com o povo, vê-los em um museu nos causa uma impressão estranha, mesmo estando do lado de fora da galeria. Eu os imaginei como arte em movimento, de uma cidade a outra, da mesma forma que Jarbas e seus parceiros fizeram quando os entregaram ao Novo Museu de Arte Contemporânea do Paraná.

Os fuscas devem ser um símbolo de questionamento do papel da arte contemporânea, o papel do museu, trocando informações nas ruas. Como uma alegoria carnavalesca, o carnaval que se estende por todo o ano, a arte nas ruas.

Como pontua DaMatta: “A oposição entre a rua e a casa é básica e pode ser uma ferramenta poderosa ao analizarmos a realidade social brasileira, especialmente quando alguém quer examinar seus processos de ritualização. A categoria rua basicamente aponta uma realidade com seus acontecimentos imprevisíveis, acidentes, e paixões; a causa refere-se ao universo controlado onde tudo tem seu lugar. A rua significa movimento, novidade, ação, a casa significa harmonia e calma”.
A casa, em nosso estudo o museu, irá tirar os carros das ruas e do povo, e é claro esses carros são objetos diferentes agora, embora pertençam a imaginação do povo, quando tirados da rotina diária das ruas, ganham novos códigos de valores.

Em vez de colocados em um local somente para apreciação, porque não apoiar a idéia do uso do trabalho artístico pelo público, deixando-o nas ruas, pertencente aos prazeres do dia-a-dia, provocando a participação e correndo os riscos inerentes das ruas?

Parece que o artista tem uma idéia clara do papel de seu objeto artístico. Jarbas Lopes esteve no CACI no segundo semestre de 2004 e durante sua estada no museu levou os carros para lugares fora do museu, passeou com eles pelas ruas de Brumadinho, estacionou nas ruas, ouviu música na rua, conversou com a população local. O museu tem o compromisso de manter a proposta dos três fuscas viva, como Jarbas tem feito? Segundo Bernardo Paz: “ Não há razão para restringir o acesso à arte contemporânea somente a alguns colecionadores de arte”. Alguém ligado ao museu pode dizer que é fácil para todo mundo visitar o museu e ver os carros. Mas no entanto, não tenho certeza se todas as pessoas que vivem em Brumadinho, sem falar em outras cidades da redondeza, se sentiriam confortáveis ao visitar um museu como o CACI Inhotim. Mas se alguém vir os carros nas ruas, tocá-los, ouvir música nos fuscas, poderá então se sentir atraído a ver o que mais um museu poderá oferecê-lo, os carros podem criar a abertura de canais facilitando assim o acesso ao museu.

“O conhecimento é visto como parte da cultura. O conhecimento também pode ser visto como provisório, possibilitando assim o reconhecimento do caráter instável do significado. As certezas do modernismo foram substituídas pela fluidez do pós-modernismo, com sua indeterminação, fragmentação, decanonisação, hibridização e construtivismo”. (Hooper-Greenhill,2000: 141).

Quantos moradores de Brumadinho já visitaram um museu? Não existem estatísticas disponíveis, mas eu duvido que tenhamos pelo menos 5% da população que já tenha visitado um lugar semelhante. Não vem ao caso criarmos expectativas otimistas e fantasiosas e pensarmos que todo mundo irá visitar o CACI, entretanto, todas as pessoas devem se sentir à vontade para visitá-lo quando quiserem.

Um texto publicado pelo Victoria and Albert Museum sobre museus e aprendizagem no Reino Unido, mostra os benefícios possíveis que um museu pode nos oferecer:

Cada comunidade precisa de um espaço público que seja acolhedor e seguro, e que estimule a participação. Os museus podem oferecer tal espaço. Seus valores, códigos morais e expectativas de comportamento ajudam na formação da comunidade. A disposição do público para a diversidade, remoção de barreiras para acessar todos os tipos de diversidade, estabelece normas de inclusão que podem influenciar o comportamento individual. Os museus também podem desempenhar um importante papel na definição das noções públicas de qualidade, incluindo as qualidades estéticas, em suas comunidades, e podem servir como um local para debates, discussões e expressão dos sentimentos da população. Para aqueles membros da comunidade onde o poder público possa estar escasso e instável, a existência de um lugar limpo, confortável e bonito que seja da população para que ela possa entrar e dividir seus direitos com os demais membros do grupo, traz determinados benefícios. Os museus são metáforas do tipo de sociedade que temos, e a sociedade que queremos criar. (Anderson, 1997: 8).


NA ESTRADA

A partir das palavras do Diário de Bordo “Vamos aqui, por um momento, deitar1 de lado as referências possíveis da Historia”; vou analisar três aspectos do Troca-Troca. Primeiro, a relação entre a arte popular e a arte contemporânea brasileira e depois os aspectos autoritários dos objetos de arte contemporânea e a legalidade dos três fuscas.

A escolha dos fuscas por si só mostra uma preferência clara de Jarbas Lopes pelo popular. Outra indicação do popular está presente na trilha sonora que é muito próxima do tipo de música ouvida pela classe trabalhadora brasileira. Os “três carros, interligados pela música” foi um projeto desenvolvido por Marssares, um dos artistas do grupo especializado em música. Foram extraídas algumas palavras do Diário que indicam a preferência pelo popular: “Batucada”, “ O pagode de quintal”, “Samba e percussão”, “Músicas do Cartola”, “Bezerra da Silva”, “Pagode de quintal e música sertaneja no cavaquinho de Jorge Melodia”. Também aparecem no texto referências ao grupo Mundo Livre S/A, um grupo de Recife e a Luís Tati, um músico de São Paulo. Essas referências são bem conhecidas no Brasil, por suas relações com os menos favorecidos da sociedade, às vezes são relacionadas a malandragema e as favelas. É importante ressaltar a citação seguinte quando o grupo estava na periferia de São Paulo:

“O dia inteiro na Oficina Pernambuco. O dono, Pernambuco, é pesado, fala alto e tem passado: foi “do bando” e movimento local, teve muito e gastou muito, mas hoje é um “trabalhador”…Fez uma participação vocal no CD que fui gravando na estrada com Marssares … resolveu o problema mecânico”.(Diário de Bordo, 2002).

Durante o encontro com Pernambuco, dois aspectos diferentes do trabalho podem ser observados, a colaboração do mecânico e também a colaboração do músico, o “cantor” Pernambuco. A outra característica é o limite entre o legal e ilegal. Pernambuco tem antecedentes criminais e agora é proprietário de uma oficina mecânica. E os carros? Segundo um profissional do CACI, os carros estão legalizados com toda a documentação necessária para serem utilizados, entretanto o encontro com a polícia descrito no diário revela que há pelo menos uma suspeita de que nem tudo estava totalmente dentro da lei, não somente a lei restrita a carros, mas também a lei da arte.


A POLÍCIA - A AUTORIDADE DA ARTE
Quatro encontros com a polícia foram mencionados no diário, o primeiro aconteceu no Rio de Janeiro, entretanto não há menção da conversa com a polícia. “À frente da sala Cecília Meireles, por acaso uma blitz policial”. Os outros encontros aconteceram no estado de São Paulo, o primeiro na capital, na Avenida Paulista, um símbolo global de poder econômico, com bancos de todos os lugares do mundo, Citybank, HSBC, Bank Boston e muitos outros; é também onde fica o MASP, um símbolo da arte moderna no Brasil: “logo outra referência, o prédio do MASP [Museu de Arte de São Paulo], falou e disse, seguimos Avant Gard.” (Diário de Bordo,2002).

A avenida é também um ponto de encontro popular para celebrar o aniversário da cidade, campeonatos de futebol, vitórias eleitorais da prefeitura da cidade, eleições presidenciais, carnaval, etc.

Apesar da popularidade, a avenida Paulista não é um lugar onde encontramos muitos fuscas, especialmente fuscas estacionados atrapalhando o trânsito e não há diálogo com as autoridades.

“Podem ir ligando os carros e dando o fora! Caso contrário vou pedir reforços e serão todos detidos, os veículos apreendidos e seus documentos presos.” Era uma policial escoltada por dois outros… Me dirigi a ela e disse: “mas, minha querida, é que… “ etc, etc. (Diário de Bordo, 2002).

Nos outros dois encontros foi possível conversar com os guardas, principalmente com o primeiro.

Luzes e sirenes na pista escura. Polícia Rodoviária Federal, encosta rapaziada. Alertas ligados, conversa-se sobre arte e leis na maior gentileza. Você sabe o que é arte contemporânea? Não, nem eu, mas beleza pura todo mundo sabe o que é. Beleza? . Beleza. Tchau e bença. (Diário de Bordo,2002).

Durante o último encontro eles usaram o discurso artístico para explicar a viagem para a polícia, e depois foram convidados a explicá-la na delegacia de polícia:

“De repente aparece uma patrulha da PM param na frente da oficina e com o dedo o policial faz sinal para que eu me aproxime, querem saber que história é essa, eu lhes disse que a arte mente e se eles quisessem serenganados2 passassem a ver arte contemporânea. Me convidaram amigavelmente para falar sobre com o delegado da cidade. Achamos melhor não aceitar, serviço pronto, queimamos chão”. (Diário de Bordo,2002).

É interessante perceber que em todos os encontros não há desavença entre os artistas e a polícia, e apesar de algumas ameaças, os policiais não pediram documentos ou alguma prova que pudesse validar o discurso dos artistas. A arte contemporânea precisa de explicações? É clara por si só? Ou os objetos de arte deixaram os policiais surpresos?

Em um dos trabalhos de Ducha, um dos artistas do grupo, algo similar aconteceu em sua intervenção artística Coca-Coca:

“pôsteres estavam sendo colocados próximo à delegacia de polícia sem que ninguém percebesse... Ficaram ao lado da delegacia por 15 dias... A câmara usada quando anexamos os pôsteres chamou mais a atenção que o conteúdo dos pôsteres pregados na parede. Dois policiais ficaram lá olhando. Nunca viram uma filmagem noturna” (Ducha, 2003).

Se por um lado, há uma surpresa e confusão da polícia e do público em geral em relação à arte contemporânea, por outro, os artistas usam a ambigüidade das mensagens da cultura popular e de forma inteligente usam todo o seu potencial como forma de resistência. Eles estão usando o que chamamos no Brasil de malandragem.

Como pontuou DaMatta (1991) “na rua precisamos ser cuidadosos para não violarmos o desconhecido ou as hierarquias desapercebidas. Devemos também ser cuidadosos para não nos afetarmos por aqueles que querem nos enganar ou nos forçar, desde que as leis básicas da rua sejam o enganar, a decepção e a malandragem – a arte brasileira de usar a ambigüidade com uma ferramenta de sobrevivência.


CHIQUE OU POPULAR?
A aquisição do Troca-Troca pelo CACI mostra a importância dada aos artistas que até alguns anos atrás poderiam ser tachados como marginais, inconseqüentes ou ingênuos.

No entanto, o museu corre alguns riscos, o primeiro de transformar os fuscas em objetos domesticados posicionando-os sob uma grande árvore. Será a árvore da sabedoria? Deixando de ser uma ameça para o mundo civilizado da arte e das ruas.

No início, o fusca era fabricado no Brasil exclusivamente para os ricos, e depois se tornou popular, acessível à classe trabalhadora. O novo modelo do fusca foi desenvolvido para os ricos. Já o fusca velho e popular foi transformado em um objeto de arte por Jarbas Lopes, mas pode também se tornar um objeto chique, admirado somente para um público específico, mas há um outro risco que é o de se tornar uma brincadeira desinteressante para todos.

É importante ressaltar, uma vez mais, a responsabilidade social do CACI. Qualquer objeto de arte pode ser incorporado e domesticado ou pode ser um objeto vivo, ajudando-nos a entender o ambiente ao redor e a cultura de um povo. Não um objeto que traz consigo a verdade, mas um objeto destinado a compartilhar significados e conhecimento.



* Colaboração e Tradução para o Inglês <> Português – Tyr Peret.Agradecimentos - Nicholas Addison e Lesley Burgess (Institute of Education – Universidade de Londres), Thiago Gomide e Felipe Taboada (CACI Inhotim), Debora Chobanian e Marlene Peret.

NOTAS
1 No Diário de Bordo Jarbas opta por deitar e não deixar.
2 Serenganados em vez de serem enganados – opção de Jarbas.



Este artigo está sendo publicado como a contribuição do Rizoma para a Documenta 12 Magazines , da Documenta de Kassel em 2007, relativo ao tópico “O que pode ser feito? (educação)” . Rizoma foi convidado para participar do documenta 12 magazines, um projeto ligando por todo mundo cerca de 70 revistas impressas e online assim como outros meios (http://www.documenta.de/).










Nenhum comentário:

Postar um comentário