terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

2 - ENTREVISTA DE CHRISTIAN FERRER - Série Anarquistas Teóricos Práticos


A diferença entre especialistas em uma área do conhecimento e pensadores está em suas vestimentas. Enquanto títulos e denominações caem bem para especialistas, qualquer alcunha definitiva, quando traja pensadores, mais se assemelha a uma veste apertada.
O argentino Christian Ferrer toma parte deste segundo grupo. Como pensador, habita um lugar onde os saberes se hibridizam e, por meio da forma ensaística, leva seu pensamento ao limite do desconforto e do desamparo -pois somente um pensamento livre pode ser forte o suficiente para optar pela condição de desamparado.
Debruçando-se sobre diversos domínios, do pensamento político à crítica da técnica, passando pela comunicação e seus objetos contemporâneos (a pornografia incluída), Ferrer atua numa zona sem fronteiras entre a sociologia e a filosofia, entre os territórios político e existencial.
Talvez, a única alcunha a que Ferrer se permita seja a de anarquista, "anarquista heterodoxo", sendo seu projeto intelectual marcado pela luta e paixão por um pensamento libertário. A anarquia seria, assim, não só um vislumbre longínquo e remoto de um amparo político, mas uma ferramenta para a compreensão de um estado de coisas, sempre histórico, e que se traduz em uma postura que recusa o silêncio diante do intolerável.
Quando esteve no Rio de Janeiro em 2003 para participar do seminário “O Eu em Rede: A Subjetividade na Cultura Digital”, promovido pela Universidade Cândido Mendes com o apoio da Unesco e no qual também estavam presentes Edgar Morin e Jean Baudrillard, Ferrer apresentou o ensaio “Dolor, Técnica, Pornografia - Del sufrimiento sin sentido a las ilusiones informático-biotecnológicas”.
Revelando uma retórica de crise, porém, movida por uma potente convicção e emoldurada por um lirismo crítico, Ferrer tematizou o apaziguamento do sofrimento contemporâneo pelas tecnologias de conforto que nos atravessam -dos psicofármacos medicalizadores da existência à ilusão de felicidade e prazer prometida pela pornografia.
Apesar de não ser especialista, daqueles que abotoam tão ajustadamente o colarinho das titulações, Christian Ferrer (nascido em 1960) é sociólogo de formação e professor de Filosofia da Técnica e Filosofia da Linguagem na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
Publicou “El lenguage libertário – Antologia del pensamiento anarquista contemporâneo” (Editorial Altamira); a coletânea de ensaios “Cabezas de tormenta – ensayos sobre lo ingobernable” (Pepitas de Calabaza Ed.); assim como uma compilação de ensaios sobre o poeta e ensaísta Nestor Perlongher, sob o título “Prosa plebeya” (Editorial Colihue); ainda “Lírica social amarga”, uma compilação de escritos inéditos de Ezequiel Martínez Estrada (Pepitas de Calabaza Ed.); e “Mal de Ojo – crítica de la violencia técnica – indagacíon sobre el drama de la mirada” (Editorial Octaedro). Fez parte dos grupos editores das revistas “Utopía”, “Fahrenheit 450”, “La Caja” e “La Letra A”. Atualmente, integra o corpo editorial das revistas “Artefacto – pensamientos sobre la técnica” e “El Ojo Mocho”.
Apenas dois de seus ensaios foram publicados no Brasil, "Mistério e Hierarquia" e "Gastronomia e anarquismo – vestígios de viagens à patagônia", na revista “Verve” (números 1 e 3), organizada pelo Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP). Ambos estão disponíveis na internet e constam originalmente do livro “Cabezas de tormenta”. O livro “Mal de Ojo – crítica de la violencia técnica” já está traduzido para o português, mas ainda não possui editora.
Ferrer é, antes de qualquer denominação, um ensaísta, habilidoso artesão das palavras que aproxima a prosa acadêmica de uma vigorosa poesia do pensamento. Seus ensaios se sustentam sobre uma escritura repleta de imagens e idéias em constante movimento, doce ironia e sutil melancolia, sempre com a força do desamparo, amparada na liberdade da anarquia. A entrevista que se segue foi feita por e-mail.

Li em alguma nota biográfica que você se considera um "anarquista heterodoxo". O que isto significa? A anarquia não implica, em si, uma heterodoxia?
Christian Ferrer: O anarquismo tem sido uma heresia moderna persistente e ao mesmo tempo o ideal antípoda da hierarquia. Por não contar com um livro sagrado único ou de um único fundador, por renegar o partido político como "ferramenta" organizacional e por "amparar" primeiramente a liberdade de decisão pessoal, o anarquismo foi em si mesmo uma heterodoxia, quer dizer, um arquipélago de individualidades e agrupamentos que não se acoplavam facilmente entre si e, portanto, sua história conteve uma notável variedade de fauna e flora.
Seu uniforme sempre foi proteico (no sentido de Proteo, deus grego que se metamorfoseava a gosto). O único mistério não revelado de sua história se encontra na esfera da "escuta política" que lhe foi destinada faz 100 anos. Em certas cidades e certos países, o anarquismo constituiu uma paixão popular, um feito histórico difícil de interpretar se considerarmos o estilo feroz da crítica libertária e seu estilo de "garra". Para mim, o anarquismo é o lugar onde encontro amparo político e esse lugar é pequeno como a cabeça de um alfinete.


Que avaliação você faz do Brasil no governo Lula?
Ferrer: Gostaria de poder dar uma resposta correta a essa pergunta, mas careço de conhecimento profundo sobre a história e a cultura brasileiras. E a Argentina é um país um tanto distinto do Brasil. O Brasil teve escravidão até pouco mais de um século atrás, e essa mentalidade não desaparece de um dia para o outro.
A Argentina conheceu várias etapas de acumulação de poder popular, começando com os sindicatos anarquistas e socialistas do início do século XX e continuando com a ascensão do peronismo na metade desse século. Há 50 anos que o pobres nascem na Argentina com uma importante consciência de merecer direitos sociais e cívicos, ou, mais ainda, com a certeza de que um despossuído merece uma dignidade, a da ascensão social e a da possibilidade de impor sua cultura.


Como está a produção de pensamento na Argentina? Pesquisando na internet, encontrei um dossiê chamado "Revista de Revistas: Argentina", feito por Miguel Valladares, Coordenador Bibliográfico de Dartmouth College (2003), no qual há um levantamento da quantidade de revistas acadêmicas e privadas em atuação. Impressionante. Cito os números: revistas de crítica literária, lingüística e criação literária – 68; revistas de arte, teatro e cinema – 22; revistas de ciências sociais e estudos culturais – 70...
Ferrer: Há uma grande quantidade de revistas publicadas na Argentina e acrescentaria que podemos enumerar muitas outras, especialmente no âmbito cultural. Contudo, a importância da produção cultural e científica em um país não pode ser julgada por números e, sobretudo, não deve ser julgada pela compulsão pela "produção" de conhecimento. O saber é um dom, e não uma conquista, é conseqüência da curiosidade humana e não da industrialização universitária ou editorial, que é conseqüência e não o seu motor.
O apetite cultural é tradicional na Argentina, mas creio que é mais importante prestar atenção ao fato de que as revistas literárias e culturais, incluindo as acadêmicas, costumam ser órgãos de defesa de idéias e linhas de pensamento, mais que publicações "neutras". Talvez a cultura seja a forma desesperada pela qual a Argentina tente fugir da barbárie sempre escondida e à espreita, uma vez que há uma linha tênue que mantém a Argentina ligada a suas origens européias, que são míticas, mas ainda estão ativas.


O mundo intelectual argentino ainda sente os efeitos da ausência de liberdade impingida durante o regime militar? Qual foi a conseqüência disso?
Ferrer: Argentina é, depois da experiência da ditadura, um país perverso. O pensamento argentino ainda não conseguiu dar conta da matriz cultural que possibilitou a destruição de corpos, vidas e experiências políticas. A metáfora da repressão tem sido dominante, mas é questionável que ela possa dar conta dos contornos do ocorrido. Ninguém passa por um inferno sem sair escaldado e nenhum país passa pela experiência de um massacre sem que sua alma fique corrompida.

O cinema argentino é, hoje, é a principal expressão de um país que está superando uma imagem de crise, mas, ao mesmo tempo, é alimentado por ela. Isto é um fenômeno exclusivo do cinema ou outras artes compartilham essa mesma vitalidade na Argentina?
Ferrer: Sem dúvida, há outras expressões culturais que merecem ser levadas em conta, em especial quando se considera que a cultura é a seiva oculta de um país, e não os frutos tardios de uma árvore, quer dizer, sua decoração.
No caso do jovem cinema argentino, sua "visibilidade" é efeito de um "parricídio exitoso", conseqüência de sua desobediência em relação ao modelo anteriormente vigente de construção de histórias, que se correspondia com o sentimentalismo da classe média.


Você acredita que pensadores e pensamentos são respostas a seus meios e ambientes, a seus universos culturais mais imediatos (cidade, país), ou não são moldados por suas origens? Christian Ferrer só poderia ser argentino, ou poderia ser russo ou brasileiro?
Ferrer: Não, não poderia ser asiático ou brasileiro, somente argentino. As matrizes acadêmicas e culturais que nos anos 90 foram promovidas por políticas associadas à palavra "globalização" (mais uma senha que uma realidade única) tendem a fazer das instituições culturais um fenômeno relativamente uniforme, mas a moldura na qual se forma uma pessoa sempre é própria, quer dizer, nacional.
E a questão da nação, até o momento, tem sido pensada unicamente por nacionalistas, sociólogos e terceiro-mundistas, e tem sido mal pensada também pelos progressistas e globalizadores. Uma nação é uma experiência (e não uma teoria ou programa político), uma experiência que se ama, até mesmo quando não se pode admirá-la.


Em “Mistério e Hierarquia”, você escreve que "a política é uma dádiva da imaginação humana". Que políticas você imagina para a Argentina neste século que principia?
Ferrer: Gostaria de imaginar um país que não se deprecie na época das vacas magras e que não se torne arrogante na época das vacas gordas. No momento, Argentina é o nome de uma insatisfação coletiva, de um lamento, de um "mal de tango".

"A arte de viver contra a dominação", na qual se desenvolveu o anarquismo, está realmente suspensa, como você diz? Em “Mistério e hierarquia”, você escreve que o anarquismo "precisa hoje de um mito da liberdade que seja ‘revelador’ do mal-estar social e que dê à boa parte da população um impulso de rejeição". Mas o mal-estar não tem sido cada vez mais medicalizado e neutralizado pelas tecnologias de amortecimento subjetivo que se popularizam?
Ferrer: Superar a dominação foi uma aspiração moderna, a expectativa e demanda de uma redenção para o castigo da fome e da autocracia. Nesse contexto, os sintomas sociais que evidenciavam o mal-estar humano diante dos poderes pretendiam ser "curados", e boa parte do pensamento, da inovação científica e da ação política se converteram em instrumentos de transformação social e em bolas de cristal na qual se evidenciava um éden futuro.
Mas, hoje em dia, muitos dos sintomas do mal-estar existencial que em outra época teriam conduzido ao protesto ou à derrocada pessoal são hoje acoplados às diversas panacéias técnicas e às diversas indústrias do corpo. Em uma pílula, em uma cirurgia, em uma dieta, em exercício físico, em uma farmacopéia, o sintoma que antes exigia ser curado recebe agora uma transfusão de gozo.


No que consiste o sofrimento contemporâneo?
Ferrer: Consiste em uma experiência sem sentido, pois uma vez que o cristianismo já não é capaz de apaziguar a imensa dor humana (quando seus Cristos crucificados, suas virgens padecidas e seus santos martirizados já não constituem o espelho do corpo torturado) e quando as promessas políticas modernas já não são capazes de estimular as massas em direção ao futuro, a condição sofredora da humanidade cai aprisionada em um paradoxo: exige salvação para o sofrimento, mas carece de apaziguadores transcendentes, seja a teologia ou a política.
É então quando os confortos técnicos e os "amortecedores" farmacêuticos se ocupam de fazer suturas nos abismos existenciais de um presente contínuo, no qual sofrer, envelhecer e morrer carecem de sentido.


Slavoj Zizek nos diz que a tolerância liberal retira do outro toda a sua diversidade, assim como retira da vida sua substância nociva, perigosa, esvaziando da realidade seu conflito. Você concorda?
Ferrer: A forma moderna de pensar por antecipação os conflitos supõe impôr-lhes um ideal de "diálogo", ao qual as partes divergentes deveriam aspirar. Quer dizer, antes do conflito em si mesmo a lei se ocupa de repartir as posições em disputa, a fim de deixar claro "lados" e possibilidades de "conciliação". É o ideal da comunicação moderna, a humanização do "conflito social", que no momento vem a ser insignificante.
Do mesmo modo, se espera que as sociedades liberais contemplem e contenham todas as diferenças e aspirações de minorias (pobres, ricos, baleias, baleeiros, kosovares, sérvios, mulheres, homens, gays, lésbicas, travestis, sem-terra, com-terra, comunistas, liberais, imigrantes e nativos, e assim sucessivamente). Mas talvez a tolerância e o reconhecimento dos direitos do outro para que este viva sua vida pressuponham um tabuleiro social no qual as casas seriam fixas e as identidades definidas.
No entanto, nunca estivemos mais alijados do "outro" que quando reconhecemos nossa distância identitária em relação a ele. Talvez devêssemos começar por questionar que atributos do outro habitam em nós, quais desses atributos são necessários para nossa vida, e quais não. Desapareceria assim a compulsão pela identificação de pessoas por categorias, atitude que sempre foi praticada pela polícia.


A pornografia seria justamente uma demanda de neutralização da vida? O gênero contemporâneo por excelência?
Ferrer: O crescimento da indústria pornográfica, com a velocidade de uma tempestade de neve, pode ser interpretado como um efeito invertido das demandas libertárias dos anos 60, quer dizer, da época da "revolução sexual", na qual as demandas do "direito natural ao prazer" emergiram da discussão pública e foram postas em experimentação.
Dali em diante, os fluxos de capitais se encontraram com os fluidos libidinais, e tanto a indústria da cirurgia estética quanto a pornográfica produziram seus frutos nesse cruzamento. Mas não se trata de "neutralização" da vida, mas sim de sua intensificação no mundo ordenado pelo capitalismo e pelo patriarcado.
Não é simples recusar estas indústrias em nome da moral, pois a pornografia não é somente um gênero sintomático da atualidade, mas também o prisma em que o prazer (ainda que tendo em conta sua orientação masculina) se refrata. Não fomos educados para o prazer, e muitas vezes este mesmo se reflete unicamente em galerias de espelhos deformantes.


A era do “management”, cujo ideário prega que o indivíduo deve ser, agora, auto-gestor, empresário-de-si-mesmo, e que deve dar conta, por si só, de todos os problemas de modo jovial, dócil, alegre e, sobretudo, "criativo", também compartilharia uma prerrogativa pornográfica?
Ferrer: Uma vez que nem a religião nem a política podem conceder orientações nítidas para a vida, então a responsabilidade por gerir uma "existência satisfeita" é responsabilidade de cada pessoa, individualmente. E tanto a psicanálise quanto os medicamentos antidepressivos, o implante de silicone ou a pornografia se tornam uma logística possível e necessária no mercado da subjetividade.

Como se desenrolaram as tecnologias no século XX e quais são as relações entre os avanços da técnica e o desenvolvimento de uma reflexão ética?
Ferrer: Recorrendo a uma velha idéia trotskista, caberia dizer que o mundo experimenta um desenvolvimento desigual e combinado das relações entre ética e técnica. No século XIX, a política, a religião e a estética eram um referencial e concediam orientação à tecnologia, pois suas inovações e seus desenvolvimentos eram mais velozes que os produzidos pela ciência e pela técnica. No século XX, esta equação se inverteu, e hoje tecnociência se auto-legitima.

Em “La curva pornografica – el sufrimeinto sin sentido y las tecnologias”, você nos convoca a uma “mirada moral”. E eu devolvo a você a pergunta que está na última frase de seu ensaio: "A que chamamos dignidade do corpo"?
Ferrer: O corpo só pretende não sofrer e ser aceito: uma condição a qual também aspira o resto do reino animal.
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Ilana Feldman
É formada em cinema pela Universidade Federal Fluminense, onde faz mestrado. Dirigiu o documentário em média-metragem "Se tu Fores", que ganhou o Prêmio Itaú Cultural para Novos Realizadores.

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