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Entrevista com Zé Celso, Teatro Oficina – Parte 1
O revolucionário Uzyna Uzona de São Paulo está na Alemanha, apresentando "Os Sertões". Seu diretor e "chefe de terreiro" falou à DW-WORLD de carnaval, Nietzsche, "dessublimação", deus e o mundo... E de teatro!
No galpão da mina Auguste Victoria, em Recklinghausen, começou a trajetória internacional do Teat(r)o Oficina. Este é seu quarto avatar, o Uzyna Uzona, e seu guru continua sendo José Celso Martinez Corrêa, co-fundador do Oficina original, em 1958, mentor do tropicalismo e agitador político-religioso-social.
O legendário homem de teatro concedeu entrevista à DW-WORLD no domingo, 23 de maio de 2004, poucas horas antes do primeiro ensaio aberto da quarta parte do ciclo de Os Sertões, A Luta.
As quatro fases do Oficina
DW-WORLD: Zé Celso, esta é primeira vez que o novo Teatro Oficina – o Uzyna Uzona – sai do Brasil...
Zé Celso: O novo, sim.
O antigo viajou bastante, inclusive na França, na época da Revolução de Maio, e aprontou bastante lá, foi um sucesso, esteve na Itália, a gente viajava pela América Latina. Mas este quarto Oficina, é a primeira vez.
O primeiro era considerado "a época de ouro". (Mas agora estamos na época do ouro do ouro!) Depois teve a segunda fase, subterrânea, onde estivemos em Portugal, Moçambique, África, vários lugares. A terceira é o retorno ao Brasil, a reconstrução do teatro, os dez anos de abertura do repertório da "tragicomediorgia". E agora a quarta, a dos Sertões, que é quando a gente se abre para o bairro, para as crianças do bairro, e faz um trabalho com 100 pessoas.
Esta é a fase mais rica e mais ambiciosa. Os Sertões é uma obra imensa. Por enquanto fizemos A Terra, O Homem, hoje vamos apresentar o ensaio geral da primeira expedição, temos ainda a segunda e a terceira, juntas vão compor um espetáculo. Depois a quarta, que deve dar mais dois espetáculos. Ao todo, a gente vai ter umas 50 horas de peça, a gente é Guinness, certamente!
A equipe em criação coletiva
Com todo o trabalho de precisão que há em cena – de corpo, voz, coreografias, declamação coral, números musicais, técnica – como é a estrutura de ensaios do Oficina? Certamente há especialistas para cada área? Ou você faz tudo?
Não, tem toda uma equipe. Por exemplo, a Letícia Coura, uma das cantoras, que trabalha a voz, o maestro Marcelo Pellegrini, que dirige a banda, a Elisete Jeremias, que faz a direção de cena. Tem o Marcelo Drummond, que co-dirige comigo, é o mais antigo, e o primeiro ator da companhia. Tem os dramaturgos, o pessoal do vídeo, da luz, preparação coral, as crianças têm os professores de capoeira e de circo... enfim, tem muita gente.
São 100 pessoas trabalhando, e elas foram ganhando uma autonomia. Eu faço realmente o papel da estimulação e da coordenação dos desejos, em função de uma criação coletiva. Primeiro há uma improvisação, depois vamos para a dramaturgia, ela retorna a todas as áreas, e nós tentamos fazer um ensaio juntos, todos. Tudo ao mesmo tempo: luz, vídeo, música, dança.
Os Sertões: uma universidade
É muito difícil, ainda, nós estamos praticamente no bê-á-bá. Eu quero evoluir muito mais, inclusive, na parte virtual, porque no Brasil as condições econômicas não permitem ter o que nós precisaríamos. Mas pretendemos desenvolver uma ópera do carnaval, como eu chamo, a "tragicomediorgia", muito com a realidade atual do teatro – quer dizer, a atuação –, e com a virtual também – de que eu gosto muito.
E estamos caminhando também para expandir, e fazer um teatro de estádio. E uma universidade popular de cultura brasileira orgiástica, que já começou com a leitura dos Sertões. Desde 2000, nós lemos o livro inteiro com 200 pessoas.
Porque ele em si é uma universidade: quem lê Os Sertões sai formado, é como se fizesse uma universidade. Então, até as crianças lêem, a maior parte leu, 90 por cento. E nessa leitura e releitura – e é um livro que trata de tudo, geologia, poesia, literatura, história –, nós temos uma interpretação nova dos Sertões, produzindo um saber que nós queremos divulgar.
Replicando o Oficina em Recklinghausen
Como está sendo esta temporada na Alemanha?
Estamos aqui há duas semanas, uma para preparar, esta outra de apresentação. E foi muito puxado, tivemos que nos adaptar ao lugar [a antiga mina Auguste Victoria], que tem uma acústica muito difícil. Mas que é muito bonito, eles fizeram uma coisa gloriosa!
Nós o estamos inaugurando, até gostaríamos que permanecesse, porque é muito lindo. Gostaríamos muito que também abrissem as minas, para poder atuar embaixo, tudo.
Eles tentaram reproduzir o Oficina, que é um teatro único no mundo. Como Bayreuth: assim como o Wagner fez um teatro para a ópera dele, o Oficina foi feito para esse nosso repertório. Só que ainda precisa se ampliar, tem que chegar no [teatro-]estádio.
Porque no final da terceira parte dos Sertões, A Luta, eu suponho um anfiteatro como Euclides da Cunha descreve; quando os militares cercam Canudos inteiro, ficam contemplando com o binóculo, e os sertanejos estão no centro, atacando em todos os flancos.
Inovando o teatro na Alemanha
O trabalho com os alemães está sendo maravilhoso. Os técnicos alemães ficaram conosco, na primeira semana, todos os dias até as 6h da manhã. Criaram uma grande amizade. Tanto que ontem, nós os chamamos para os agradecimentos. Todos eles se apaixonaram pela maluquice, pela extravagância do acontecimento!
Este festival era mais da província, do Estado da Renânia do Norte-Vestfália. É a primeira vez que o Frank Castorf, de Berlim, o está dirigindo e tentando trazer inovações para cá. Entre elas, tiveram a coragem de nos trazer, 60 pessoas. É monumental! Só a Alemanha – que é o país do mundo onde há mais valorização do teatro – faria isso.
Mas eu tenho a impressão que outros países vão imitar. Nós vamos para Paris, para o Festival de Avignon, eu acho. Vamos para Londres. Mas aí a gente vai com Ham-let, numa grande exposição sobre o Tropicalismo. Isso está em negociação.
O medo alemão da insegurança
Vocês não puderam trazer todas as crianças do Oficina e trabalharam com as de Recklinghausen. Como foi o workshop com elas?
Foi feito pelo ator José de Paiva. Ele se apaixonou pelas crianças, e elas por ele. Elas não tinham experiência nenhuma, ele trabalhou bastante. Elas aparecem em cenas de O Homem 1 e O Homem 2. Enfim, você vê que não têm a experiência dos brasileiros, porque estes são meninos de rua, que já têm aquela agilidade, aquela capoeira, os saltos, os pulos.
Mas as crianças daqui se iniciaram, enfim, cuspiram fogo. O que é uma glória aqui na Alemanha! Porque a Alemanha tem todo um pavor da insegurança. Nós tivemos um problema muito grande com os fogos. Por exemplo, não pudemos colocar chão de pólvora no terreiro, teve que ser aquela estrelinha.
Nietzsche mesmo fala nisso, que é uma cultura muito baseada na segurança, tudo é inseguro. Ele até reclama, "puxa, mas não deve ter muita alegria, uma cultura que corta as arestas perigosas da vida, que não arrisca nada". Mas eu tenho a impressão de que nós conseguimos ir ao limite, eles fizeram o máximo que puderam. Tanto que quem acendeu a vela do espetáculo do primeiro dia foi o chefe do Corpo de Bombeiros.
Devorando um carvoeiro alemão
Vocês têm um ator alemão.
Temos, o Wolfgang, maravilhoso! É um achado. Parece que foi programado a gente vir à Alemanha, ele fazendo o bispo Sardinha. Em princípio, deveria ser um português, mas era necessário, sobretudo, que fosse um estrangeiro. (Porque o português, para o índio, é o estrangeiro, claro.) E foi maravilhoso vê-lo aqui, falando alemão, os índios realmente não entendendo NADA, e o devorando.
O Wolfgang é o nosso tradutor também, ele entende muito o grupo. E é da região, inclusive, trabalhou em minas de carvão, o pai dele também. Tanto que, no primeiro dia, ele saiu do subterrâneo vestido com aquelas roupas de carvoeiro. (Aliás é branca a roupa, que loucura! Mas é uma roupa de festa, parece...)
Nietzsche é seu guia
E a sua relação com a cultura alemã? Você cita Friedrich Nietzsche com freqüência.
Tenho uma influência muito grande do Nietzsche. O Caetano [Veloso] ficou muito entusiasmado com o espetáculo, foi exagerado, claro, disse: "Essa é Wagner!". Mas acho que é mais um Wagner de que o Nietzsche gostaria. Porque ele gostava muito da Carmen [de Georges Bizet, 1875], e queria que a ópera seguisse por um caminho mediterrâneo, até africano.
Eu trouxe aqui a de Aurora, do Nietzsche – numa tradução maravilhosa do Paulo César de Souza –, que parece que foi escrita para eu entender a Alemanha agora, hoje. E não só a Alemanha, como o poder, o PODER que existe na arte, o poder que tem o ser humano enfim. Eu adoro Nietzsche, sou apaixonado.
Ele foi muito deturpado pela irmã, pelo Hitler. Mas Aurora tem um elogio enorme aos judeus: ele tinha uma admiração muito grande por eles, no sentido de que resistiram séculos e séculos no Ocidente, conseguindo criar uma cultura crítica importantíssima. Achava que um dia os judeus se libertariam totalmente do sentimento de vingança, e seriam os criadores de uma Europa unificada. Ele tinha essa ilusão.
Nazismo-stalinismo e a ordem liberal
E a Alemanha pós-Nietzsche? O nazismo ocupa você?
Ocupa, sim. Tanto o nazismo como o stalinismo – porque a Alemanha viveu as duas experiências – criaram no povo alemão um recalque, um medo muito grande da emoção, da "tempestade do ardor irresistível" [Sturm und Drang, movimento do século 18]. O que acho que o nazismo fez, foi utilizar a emoção, mas militarizá-la, geometrizá-la, colocá-la a serviço dos sentimentos pequeno-burgueses, os mais vulgares, os mais torpes.
Você vê nos filmes da Leni Riefenstahl: as cerimônias nazistas são, todas elas, absolutamente retas, quadradas, matemáticas. Não se compara com o Carnaval da Bahia, mesmo com o Carnaval da escola de samba. As multidões podem criar também... os seres humanos podem liberar as emoções, sem necessariamente cair nem no nazismo nem no stalinismo.
Tanto um como outro utilizam a emoção das massas e a canalizam. Como a própria ordem liberal, que coloca tudo em função do dinheiro e do marketing. Só que é um nazismo APARENTEMENTE mais light. Nós vivemos numa sociedade stalinista e nazista, sob a ditadura brutal do capital financeiro, que utiliza, que compra também a vida privada das pessoas.
"Dessublimando" os subterrâneos germânicos
Eu acho que aqui na Alemanha nós estamos sendo gostados por tentar tocar nos subterrâneos, nas minas. É por isso que queremos muito que as minas daqui sejam abertas.
Porque não é preciso fazer como o Freud queria, recalcar o inconsciente: tem que soltar o inconsciente! Não tem que sublimar, é preciso "dessublimar"! E dessublimação não tem nada a ver com nazismo nem com o stalinismo, ela é o fracasso deles.
O nosso tradutor mesmo, o Berthold Zilly, que é um amor de pessoa: ele é muito receoso, acha que não se pode tocar no tema do racismo, fica impressionado com aquela cena onde se matam as crianças, traduziu sob protesto, entre parênteses. É o julgamento moral, de que o Nietzsche falava, ele é muito violento. No nazismo e no stalinismo ele aumentou muito ainda.
Teatro como lugar de potência
O revolucionário Uzyna Uzona de São Paulo está na Alemanha, apresentando "Os Sertões". Seu diretor e "chefe de terreiro" falou à DW-WORLD de carnaval, Nietzsche, "dessublimação", deus e o mundo... E de teatro!
No galpão da mina Auguste Victoria, em Recklinghausen, começou a trajetória internacional do Teat(r)o Oficina. Este é seu quarto avatar, o Uzyna Uzona, e seu guru continua sendo José Celso Martinez Corrêa, co-fundador do Oficina original, em 1958, mentor do tropicalismo e agitador político-religioso-social.
O legendário homem de teatro concedeu entrevista à DW-WORLD no domingo, 23 de maio de 2004, poucas horas antes do primeiro ensaio aberto da quarta parte do ciclo de Os Sertões, A Luta.
As quatro fases do Oficina
DW-WORLD: Zé Celso, esta é primeira vez que o novo Teatro Oficina – o Uzyna Uzona – sai do Brasil...
Zé Celso: O novo, sim.
O antigo viajou bastante, inclusive na França, na época da Revolução de Maio, e aprontou bastante lá, foi um sucesso, esteve na Itália, a gente viajava pela América Latina. Mas este quarto Oficina, é a primeira vez.
O primeiro era considerado "a época de ouro". (Mas agora estamos na época do ouro do ouro!) Depois teve a segunda fase, subterrânea, onde estivemos em Portugal, Moçambique, África, vários lugares. A terceira é o retorno ao Brasil, a reconstrução do teatro, os dez anos de abertura do repertório da "tragicomediorgia". E agora a quarta, a dos Sertões, que é quando a gente se abre para o bairro, para as crianças do bairro, e faz um trabalho com 100 pessoas.
Esta é a fase mais rica e mais ambiciosa. Os Sertões é uma obra imensa. Por enquanto fizemos A Terra, O Homem, hoje vamos apresentar o ensaio geral da primeira expedição, temos ainda a segunda e a terceira, juntas vão compor um espetáculo. Depois a quarta, que deve dar mais dois espetáculos. Ao todo, a gente vai ter umas 50 horas de peça, a gente é Guinness, certamente!
A equipe em criação coletiva
Com todo o trabalho de precisão que há em cena – de corpo, voz, coreografias, declamação coral, números musicais, técnica – como é a estrutura de ensaios do Oficina? Certamente há especialistas para cada área? Ou você faz tudo?
Não, tem toda uma equipe. Por exemplo, a Letícia Coura, uma das cantoras, que trabalha a voz, o maestro Marcelo Pellegrini, que dirige a banda, a Elisete Jeremias, que faz a direção de cena. Tem o Marcelo Drummond, que co-dirige comigo, é o mais antigo, e o primeiro ator da companhia. Tem os dramaturgos, o pessoal do vídeo, da luz, preparação coral, as crianças têm os professores de capoeira e de circo... enfim, tem muita gente.
São 100 pessoas trabalhando, e elas foram ganhando uma autonomia. Eu faço realmente o papel da estimulação e da coordenação dos desejos, em função de uma criação coletiva. Primeiro há uma improvisação, depois vamos para a dramaturgia, ela retorna a todas as áreas, e nós tentamos fazer um ensaio juntos, todos. Tudo ao mesmo tempo: luz, vídeo, música, dança.
Os Sertões: uma universidade
É muito difícil, ainda, nós estamos praticamente no bê-á-bá. Eu quero evoluir muito mais, inclusive, na parte virtual, porque no Brasil as condições econômicas não permitem ter o que nós precisaríamos. Mas pretendemos desenvolver uma ópera do carnaval, como eu chamo, a "tragicomediorgia", muito com a realidade atual do teatro – quer dizer, a atuação –, e com a virtual também – de que eu gosto muito.
E estamos caminhando também para expandir, e fazer um teatro de estádio. E uma universidade popular de cultura brasileira orgiástica, que já começou com a leitura dos Sertões. Desde 2000, nós lemos o livro inteiro com 200 pessoas.
Porque ele em si é uma universidade: quem lê Os Sertões sai formado, é como se fizesse uma universidade. Então, até as crianças lêem, a maior parte leu, 90 por cento. E nessa leitura e releitura – e é um livro que trata de tudo, geologia, poesia, literatura, história –, nós temos uma interpretação nova dos Sertões, produzindo um saber que nós queremos divulgar.
Replicando o Oficina em Recklinghausen
Como está sendo esta temporada na Alemanha?
Estamos aqui há duas semanas, uma para preparar, esta outra de apresentação. E foi muito puxado, tivemos que nos adaptar ao lugar [a antiga mina Auguste Victoria], que tem uma acústica muito difícil. Mas que é muito bonito, eles fizeram uma coisa gloriosa!
Nós o estamos inaugurando, até gostaríamos que permanecesse, porque é muito lindo. Gostaríamos muito que também abrissem as minas, para poder atuar embaixo, tudo.
Eles tentaram reproduzir o Oficina, que é um teatro único no mundo. Como Bayreuth: assim como o Wagner fez um teatro para a ópera dele, o Oficina foi feito para esse nosso repertório. Só que ainda precisa se ampliar, tem que chegar no [teatro-]estádio.
Porque no final da terceira parte dos Sertões, A Luta, eu suponho um anfiteatro como Euclides da Cunha descreve; quando os militares cercam Canudos inteiro, ficam contemplando com o binóculo, e os sertanejos estão no centro, atacando em todos os flancos.
Inovando o teatro na Alemanha
O trabalho com os alemães está sendo maravilhoso. Os técnicos alemães ficaram conosco, na primeira semana, todos os dias até as 6h da manhã. Criaram uma grande amizade. Tanto que ontem, nós os chamamos para os agradecimentos. Todos eles se apaixonaram pela maluquice, pela extravagância do acontecimento!
Este festival era mais da província, do Estado da Renânia do Norte-Vestfália. É a primeira vez que o Frank Castorf, de Berlim, o está dirigindo e tentando trazer inovações para cá. Entre elas, tiveram a coragem de nos trazer, 60 pessoas. É monumental! Só a Alemanha – que é o país do mundo onde há mais valorização do teatro – faria isso.
Mas eu tenho a impressão que outros países vão imitar. Nós vamos para Paris, para o Festival de Avignon, eu acho. Vamos para Londres. Mas aí a gente vai com Ham-let, numa grande exposição sobre o Tropicalismo. Isso está em negociação.
O medo alemão da insegurança
Vocês não puderam trazer todas as crianças do Oficina e trabalharam com as de Recklinghausen. Como foi o workshop com elas?
Foi feito pelo ator José de Paiva. Ele se apaixonou pelas crianças, e elas por ele. Elas não tinham experiência nenhuma, ele trabalhou bastante. Elas aparecem em cenas de O Homem 1 e O Homem 2. Enfim, você vê que não têm a experiência dos brasileiros, porque estes são meninos de rua, que já têm aquela agilidade, aquela capoeira, os saltos, os pulos.
Mas as crianças daqui se iniciaram, enfim, cuspiram fogo. O que é uma glória aqui na Alemanha! Porque a Alemanha tem todo um pavor da insegurança. Nós tivemos um problema muito grande com os fogos. Por exemplo, não pudemos colocar chão de pólvora no terreiro, teve que ser aquela estrelinha.
Nietzsche mesmo fala nisso, que é uma cultura muito baseada na segurança, tudo é inseguro. Ele até reclama, "puxa, mas não deve ter muita alegria, uma cultura que corta as arestas perigosas da vida, que não arrisca nada". Mas eu tenho a impressão de que nós conseguimos ir ao limite, eles fizeram o máximo que puderam. Tanto que quem acendeu a vela do espetáculo do primeiro dia foi o chefe do Corpo de Bombeiros.
Devorando um carvoeiro alemão
Vocês têm um ator alemão.
Temos, o Wolfgang, maravilhoso! É um achado. Parece que foi programado a gente vir à Alemanha, ele fazendo o bispo Sardinha. Em princípio, deveria ser um português, mas era necessário, sobretudo, que fosse um estrangeiro. (Porque o português, para o índio, é o estrangeiro, claro.) E foi maravilhoso vê-lo aqui, falando alemão, os índios realmente não entendendo NADA, e o devorando.
O Wolfgang é o nosso tradutor também, ele entende muito o grupo. E é da região, inclusive, trabalhou em minas de carvão, o pai dele também. Tanto que, no primeiro dia, ele saiu do subterrâneo vestido com aquelas roupas de carvoeiro. (Aliás é branca a roupa, que loucura! Mas é uma roupa de festa, parece...)
Nietzsche é seu guia
E a sua relação com a cultura alemã? Você cita Friedrich Nietzsche com freqüência.
Tenho uma influência muito grande do Nietzsche. O Caetano [Veloso] ficou muito entusiasmado com o espetáculo, foi exagerado, claro, disse: "Essa é Wagner!". Mas acho que é mais um Wagner de que o Nietzsche gostaria. Porque ele gostava muito da Carmen [de Georges Bizet, 1875], e queria que a ópera seguisse por um caminho mediterrâneo, até africano.
Eu trouxe aqui a de Aurora, do Nietzsche – numa tradução maravilhosa do Paulo César de Souza –, que parece que foi escrita para eu entender a Alemanha agora, hoje. E não só a Alemanha, como o poder, o PODER que existe na arte, o poder que tem o ser humano enfim. Eu adoro Nietzsche, sou apaixonado.
Ele foi muito deturpado pela irmã, pelo Hitler. Mas Aurora tem um elogio enorme aos judeus: ele tinha uma admiração muito grande por eles, no sentido de que resistiram séculos e séculos no Ocidente, conseguindo criar uma cultura crítica importantíssima. Achava que um dia os judeus se libertariam totalmente do sentimento de vingança, e seriam os criadores de uma Europa unificada. Ele tinha essa ilusão.
Nazismo-stalinismo e a ordem liberal
E a Alemanha pós-Nietzsche? O nazismo ocupa você?
Ocupa, sim. Tanto o nazismo como o stalinismo – porque a Alemanha viveu as duas experiências – criaram no povo alemão um recalque, um medo muito grande da emoção, da "tempestade do ardor irresistível" [Sturm und Drang, movimento do século 18]. O que acho que o nazismo fez, foi utilizar a emoção, mas militarizá-la, geometrizá-la, colocá-la a serviço dos sentimentos pequeno-burgueses, os mais vulgares, os mais torpes.
Você vê nos filmes da Leni Riefenstahl: as cerimônias nazistas são, todas elas, absolutamente retas, quadradas, matemáticas. Não se compara com o Carnaval da Bahia, mesmo com o Carnaval da escola de samba. As multidões podem criar também... os seres humanos podem liberar as emoções, sem necessariamente cair nem no nazismo nem no stalinismo.
Tanto um como outro utilizam a emoção das massas e a canalizam. Como a própria ordem liberal, que coloca tudo em função do dinheiro e do marketing. Só que é um nazismo APARENTEMENTE mais light. Nós vivemos numa sociedade stalinista e nazista, sob a ditadura brutal do capital financeiro, que utiliza, que compra também a vida privada das pessoas.
"Dessublimando" os subterrâneos germânicos
Eu acho que aqui na Alemanha nós estamos sendo gostados por tentar tocar nos subterrâneos, nas minas. É por isso que queremos muito que as minas daqui sejam abertas.
Porque não é preciso fazer como o Freud queria, recalcar o inconsciente: tem que soltar o inconsciente! Não tem que sublimar, é preciso "dessublimar"! E dessublimação não tem nada a ver com nazismo nem com o stalinismo, ela é o fracasso deles.
O nosso tradutor mesmo, o Berthold Zilly, que é um amor de pessoa: ele é muito receoso, acha que não se pode tocar no tema do racismo, fica impressionado com aquela cena onde se matam as crianças, traduziu sob protesto, entre parênteses. É o julgamento moral, de que o Nietzsche falava, ele é muito violento. No nazismo e no stalinismo ele aumentou muito ainda.
Teatro como lugar de potência
Acho que é necessário o teatro alemão – que é tão poderoso – se libertar, retornar ao [Bertolt] Brecht da primeira fase, que é tão maravilhoso. O Brecht de Baal, de Na selva das cidades, que foi um dos meus melhores espetáculos. Enfim, o Brecht poeta mesmo.
Não, aquela coisa de afastamento [Verfremdungseffekt, ou distanciamento crítico]... Eu acho que o público não vai ao teatro para refletir. Acredito que Marx e Nietzsche se dêem muito bem, no Brasil eles se namoram, se adoram. Pelo menos no Oficina.
Porque acho que o público vai ao teatro em busca de potência. Ele é um lugar de poder humano. E o maior poder está na libido dessublimada, como o William Reich dizia. Acho que o teatro é a casa do poder, aonde a sociedade vai para adquirir poder, não para racionalizar, para ficar de pé atrás. É muito chato isso.
"Soltar a franga" é política
Como você consegue de seus atores essa entrega total que se vê no palco?
É uma tendência que as pessoas têm. Elas querem se dar, "soltar a franga", sair dos seus limites. A própria tragédia grega acontece quando há hybris, quando você ultrapassa o limite. O limite de tempo, por exemplo, essa coisa do espetáculo de uma hora e meia, da agenda.
Só quando você sai da agenda é que começa a descobrir a riqueza que o ser humano tem. Principalmente na ordem liberal, que é muito avarenta para com o ser humano, em que ele é transformado numa idéia única de homem, que é assim, assado, é o consumidor.
Então se tem uma idéia preconceituosa de homem, extremamente massacradora do potencial criador. Quando você acena para as pessoas libertarem os seus desejos, eu sinto que é uma atitude política muito forte, hoje
Cultura libertária brasileira...
As pessoas estão querendo soltar a franga, no mundo inteiro. No Brasil é mais fácil, pois tem uma multidão de excluídos que tenta se virar. Aliás, essa multidão é responsável pela sobrevivência do Brasil. Como diz o Caetano Veloso, o povo ainda mantém viva essa cultura libertária. O povão brasileiro é completamente amoral: tanto que ele rouba, mata, pede esmolas, ele faz tudo para sobreviver, se organiza no crime organizado...
Ele não tem moral, apesar de a Igreja tentar conduzir os movimentos políticos de maneira a não irem tão longe quanto poderiam, porque ela segura um pouco no catolicismo.
Eu acho que liberação sexual, inclusive no Brasil, diminuiria demais a violência. Assim como a descriminalização das drogas. Porque o marginal é obrigado a ter uma atitude muito machista.
Mesmo essas crianças, quando elas começaram a entrar, os companheiros de rua disseram: "Vocês vão virar veados, vão dar a bunda, vão ficar pelados!" E na Febem, no Brasil, eles são tratados com muita violência. Se a Febem tivesse um tratamento como nós damos no Teatro Oficina, um tratamento libertário, a situação seria diferente.
... antídoto contra o puritanismo do capital
Acho que o mundo é dominado por uma cultura puritana. A cultura do DINHEIRO é puritana, do bem e do mal. Tenho a impressão de que todos os povos do mundo são libertários, o ser humano em si é libertário. Agora, ele recebe uma educação violentamente autoritária, puritana, dividida em bem e mal. É por isso que o Nietzsche é tão importante: Além do bem e do mal.
É por isso que o Noel Rosa, o próprio Euclides da Cunha, Oswald de Andrade, Glauber Rocha, o Gilberto Freyre, a poesia, a literatura brasileira, o candomblé... É uma cultura libertária, ela tem em si uma política muito mais importante do que muito do que veio do Capital, do marxismo, do Kennedy, dos americanos, do monetarismo.
Nós temos uma cultura libertária mais ou menos definida, e é uma riqueza nossa que vai se transformar em política, e pode ser muito boa para os outros povos todos. Para o povo chinês, que sofre muita repressão, mas acredito que seja muito sem-vergonha, também. Como o povo russo é muito sem-vergonha, muito religioso. O alemão, depois que bebe, solta a franga mesmo. Eu acho que é uma questão de transmutação de valor, aí.
Entrevista com Zé Celso, Teatro Oficina – Parte 2
Continuação da conversa com o visionário pragmático José Celso Martinez Corrêa: arquitetura, religião, erotismo, antropofagia, tempo teatral, Silvio Santos e a "tragicomediorgia".
O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona de São Paulo apresentou, numa antiga mina da região industrial do Ruhr, ao longo de 20 horas, as quatro primeiras partes da saga Os Sertões. O convite foi do festival internacional Ruhrfestspiele, um dos mais importantes do país.
A DW-WORLD conclui aqui a entrevista com o fundador da companhia, José Celso Martinez Corrêa: mito, guru, filósofo-sociólogo-urbanista teatral.
Os anos 90: revendo a história do teatro
DW-WORLD: Hoje em dia é facílimo ser lenda viva: lança um disco, virou mito. Mas você é o homem que criou o Teatro Oficina, ajudou no parto do tropicalismo, com O Rei da Vela de Oswald de Andrade, agitou com Roda Viva em 1968...
Zé Celso: E Ham-let [1993], uma fase mais forte do que todas essas. Porque já é toda a dramaturgia mundial repassada através da visão do Oswald e da arquitetura da Lina Bardi, num teatro que parece o Sambódromo. Então, nós repassamos Shakespeare, o teatro nô japonês. Com as Bacantes, retornamos à origem do teatro – e é muito forte, é um rito de teatro deslumbrante, que nós queremos levar para a Grécia.
Fizemos o Boca de Ouro do Nélson Rodrigues, o [Antonin] Artaud, Pra dar um fim no juízo de Deus. E foram todas sucesso. Nós repassamos toda a dramaturgia internacional. E eu escrevi Cacilda! também, para retomar o teatro que nos antecedeu, que é muito rico também, da geração de Cacilda Becker. Até chegarmos aos Sertões.
Antropofagia revitalizadora
Quer dizer, O Rei da Vela foi um começo, depois realizado na arquitetura do teatro agora, no desejo urbanístico, no repertório do teatro agora, na atuação. Isso tudo vem do Oswald de Andrade, que tinha uma dramaturgia muito ligada ao teatro russo do Maiakóvski, mas com muito mais humor, mais graça. É um teatro muito ligado ao Brasil, é a antropofagia, enfim.
Porque eu acho que a cultura popular brasileira, mesmo que não saiba disso (aliás, ela vem dos índios), ela é antropofágica. E hoje a cultura dos povos que cercam as cidades, Paris, Nova York, dos árabes, tende a devorar a cultura ocidental antropofagicamente, com isso resguardando-a, revitalizando-a.
Tempo teatral liberador
Cada parte de Os Sertões dura entre quatro e seis horas, a meta é uma hexalogia totalizando 50 horas. Quem passa esse tempo todo no teatro? Como você encara a dimensão da duração dentro do espetáculo? Seria imaginável uma versão do ciclo com as duas horas "regulamentares"?
Nunca...! Quer dizer, pode ser, mas é um clip, não?
O tempo do teatro é o do eterno retorno, é nietzscheano, é o tempo do amor. (Quando você está na cama com uma pessoa, você não tem "tempo". Você sai do tempo, entra num outro.) É a mesma coisa com a arte. Não tem sentido ficar nesse tempo de agenda. Aí você sai do teatro e não foi modificado, ficou no tempo linear, o do Ocidente, do relógio.
Mesmo no aqui e agora, existe alguma outra coisa que não está no relógio. Se você se abre para ela, libera energias enormes no corpo, que estão escravizadas pelo relógio de ponto. E a gente tem a vida toda pontuada, horário para trabalhar, para ver televisão, para dormir, acordar.
Aqui, todos eles diziam. "Ah, não dá mais de quatro horas, as pessoas não vão agüentar". O público que fica – tem muita gente que sai, porque não entende a língua, e tal – depois não quer sair mais do teatro.
Aquário de energia unindo atores e público
Ontem começamos a fazer o aplauso da maneira alemã. (Porque no Brasil, as pessoas descem, vêm nos abraçar, elas vão se aproximando, se aproximando, quando termina, estão todos abraçados.)
Aqui, como eles recebem muita informação, a energia precisa ser manifestada. Então é o aplauso, que é um descarrego, faz a catarse. Ontem fizemos o agradecimento de um por um, depois chamando todos. E eu senti que eles não queriam ir embora mais.
Confirmo plenamente sua impressão!
E no Brasil é assim, as pessoas não vão embora, elas ficam lá.
Porque eu trabalho muito a concentração, não só o tipo de atenção como no palco italiano – os atores entre si –, como com o público, com o espaço, também o espaço cósmico. O nosso teatro, por exemplo, tem um teto móvel, tem uma janela enorme, que dá para a cidade. Então, eu estou atuando, olho para uma estrela, fico mais forte, tem a lua cheia. Às vezes cai uma chuva, tem que fechar o teto. Então você vai estar relacionado com tudo.
Nosso teatro não tem lugar para nada a não ser os atores e o público: é um palco, uma pista, basicamente. Eu trabalho (com muita dificuldade, é difícil muitos compreenderem) a concentração FORA de cena. Eu procuro que eles fiquem ligados também, ouvindo e mandando energia.
Aí se cria uma espécie de aquário de energia, que acaba por envolver o público. Que permite, então, você entrar nesse tempo.
Diálogo entre todas as épocas e gêneros
Você não exige do público só a resistência na duração. A estrutura de Os Sertões também é exigente, saltando de Euclides da Cunha para outras dimensões narrativas, para o presente real, para outras ficções.
Acho que o teatro é o eterno presente. Como agora: a gente está aqui, mas tem toda uma carga do passado, toda uma série de desejos futuros. E está tudo aqui, o que existe é aqui e agora. Se você se concentra no aqui e agora, está dialogando com essa eternidade. Então, não tem sentido você fazer uma coisa em que vai voltar para a história e abstrair o presente. Porque a história está aqui, está no teu corpo, no corpo do público, na arquitetura do espaço. E nós já não temos mais uma visão linear da história. Você pode trafegar do passado para o presente, o futuro, para fora do tempo, em épocas; isso não tem a menor importância.
Eu tenho 45 anos de carreira, então já pratiquei quase todo tipo de teatro. E chega um momento onde vejo que todos eles são compatíveis, todos eles dialogam: o teatro nô com Nélson Rodrigues, com Shakespeare, que dialoga com Oswald, que dialoga com Brecht. Não existe nada puro, ortodoxo, realmente é um caldeirão antropofágico. Como é a vida.
No tabu tem petróleo
Você impõe ainda um terceiro – talvez o maior – desafio para um público convencional: a participação ativa, interatividade total. Ele é instigado a falar, cantar junto, entrar no palco, dançar, jogar capoeira, comer com os atores. Na terceira parte de Os Sertões, você até o convida a se despir e fazer sexo: e pela reação fica claro que esta é a última fronteira. Sua intenção é libertar o público? Ou simplesmente provocar?
Não, o estatuto do Uzyna Uzona é baseado na peça do Brecht A importância de estar de acordo [Badener Lehrstück vom Einverständnis, 1929], o que a gente chama de "acords", que é o acordo na transformação, no movimento. (E ele incorpora, evidentemente, coisas de Oswald de Andrade, e tal.)
Então, um dos itens é: Vá direto ao tabu. Não perca tempo, porque é lá que está a riqueza, se você for ao tabu, lá tem petróleo, lá jorra, entende? E o tabu sexual talvez seja o mais importante. Talvez seja o responsável pela guerra. Tenho quase certeza disso, vendo a transformação de meninos que roubavam, que matavam. (Tem um ator que já matou, já esteve preso.)
Pela sacralização da sexualidade
E a transformação maior está sempre no tabu sexual. Porque se você toca naquilo, dissolve, há uma transformação absurda. Um dos grandes pecados da Igreja – o papa deveria pedir perdão de joelhos, antes de morrer – é essa condenação absurda da sexualidade. Não só a homossexualidade; nós todos nascemos do ato sexual, a sexualidade é uma coisa sagrada.
Acho que a minha geração trabalhou muito para a libertação do sexo. Mas agora nós trabalhamos para a sacralização da sexualidade, do corpo humano. Ele é maravilhoso; o melhor figurino de teatro é o corpo nu. A vergonha do corpo é uma vergonha de si mesmo, a vergonha do amor é um ato de negação de si mesmo. O mundo é todo erótico, e o que move o mundo é Eros, mesmo.
Alguma nudez será castigada?
Nenhuma, que eu saiba. Mesmo no Nélson [Rodrigues] é uma paródia: ele se faz de moralista mas é o homem mais amoral que existe. Só que ele trabalha pela inversão, diz "Toda nudez será castigada" e cria uma das personagens mais eróticas, mais sensuais.
Existe hoje na vulgaridade da mass media e na sociedade liberal, nas lojas pornô, toda uma visão da sexualidade que é antierótica. Eu odeio esse sexualismo, eu acredito que o sexo é sagrado, erótico, elétrico. Gosto muito dessa palavra "libidinoso". Tudo é erótico, comida, o vento, as plantas. Tudo é erótico.
Um Antônio Conselheiro erótico
Em Os Sertões é você mesmo quem representa o Antônio Conselheiro. O de Euclides da Cunha é um asceta, é seco, contido, repressor. O seu é dionisíaco.
É ambíguo, porque ao mesmo tempo tinha amor livre em Canudos. E o Conselheiro, ele não descreve inteiramente como asceta, é menos a visão de Euclides, acho que é mais a visão geral que se tem.
Eu não estou asceta, e teria muita dificuldade. Para valer, eu precisava ter uma religião, uma fé, uma crença. Porque isso ele tinha, e era isso que aglutinava. Aí a crença que eu encontro, o único deus em que acredito, é Eros. E acho que foi o que conseguiu unificar todo o mundo no Brasil, lá nós todos acreditamos em Eros.
E Nietzsche me ajudou também muito, no Zaratustra. Porque é uma questão de reinterpretar o mito. Uma das funções da arte é re-significar o mito, a cada geração.
E Dionísio é seu orixá
Em sua visão, mito e história estão muito próximos, sem uma linha definida separando.
O mito é muito mais importante. Porque a história, ninguém sabe, a história é um mito, também. A linha não é clara. E o mito, a história – no teatro e na arte, na VIDA, aliás, para você viver – você tem sempre que reinterpretar de acordo com aquilo que te traz mais vida. Não vai interpretar para trazer mais morte!
Você não vai interpretar também de acordo com o que é mais politicamente correto. Acho que a gente já vive o fracasso total do politicamente correto: ele é uma decadência, é um fim de linha. Então minha religião é Eros, é o teatro, não tenho a menor dúvida: meu deus e meu orixá é Dionísio!
Sua Santidade, Zé Celso
Enfim, seu Antônio Conselheiro se parece muito com o Zé Celso...
Mas o Zé Celso também é mito. Eu fiz uma peça muito bonita, do Jean Genet, Ela, sobre a imagem, em que eu fazia o papel do papa, "Ela", a Sua Santidade. Então foi maravilhoso, porque eu brinquei... Foi no dia em que o papa chegou no Brasil, e eu entrei em cena de papa, também. E eu fazia a desmistificação da minha imagem e da do papa.
Eu tenho um Zé Celso que é totalmente mistificado. As pessoas nem sabem o que eu faço; eu apareço na televisão mas elas nem vão ver o meu teatro. Todo o mundo me conhece, fala com a maior intimidade: "Ô, Zé Celso!". Que é uma coisa que não existe, é uma abstração.
Então não é o Zé Celso. Eu trabalho esse mito, trabalho o mito do Conselheiro, trabalho a visão que o Euclides tem. No fim do Homem 1 [segunda parte do ciclo], eu apresento essas três personagens numa só. Eu incorporo as três.
Sociedade-espetáculo x teatro-terreiro
Mas, enfim, nós vemos no palco esse Antônio Conselheiro-Zé Celso. E todo o tempo você faz paralelos entre a luta de Canudos e a do Teatro Oficina. Ao apresentar quem construiu a igreja do povoado, é a Lina Bo Bardi [arquiteta do Oficina] em pessoa que vem à cena. E você conta que, ao ser torturado pelo DOPS [1974, na ditadura militar], o que o salvou foi incorporar uma personagem, um iogue meio intocável. Essa oscilação entre uma e outra dimensão é constante. Onde termina o palco e começa a vida real, ou vice-versa?
Ah... não existe. É tudo a mesma coisa. Uma, que o mundo é um espetáculo, não é, você vive numa sociedade-espetáculo. E a função do teatro é exatamente desmascará-la, sublimá-la. A sociedade-espetáculo faz o teatrão, o teatro de palco-e-platéia.
Já esse "teatro de terreiro", de incorporação, estoura com a sociedade-espetáculo, não cabe nela. Você sai do espetáculo, entra numa coisa; sai do horário do espetáculo, da relação educada com o público.
O ator entra e diz "Boa tarde. Boa tarde! BOA TAAARDE!", ninguém responde. Você vê, eles não estão acostumados a isso. Eles trazem a "quarta parede" no corpo, mesmo num trabalho onde não se trata dela. Mas depois, vão sentindo que tem que quebrar. E é uma descoberta, eles ficam apaixonados.
Roubar e matar pelo teatro
Mas na vida você está sempre atuando. ATUANDO, não representando. Representar, eu representei para o DOPS.
Uma das personagens de Os Sertões convida o público a fazer uma jura: que não medirá meios para que o teatro continue vivo...
É, para fazer teatro, você rouba, mata, fornica...
Tudo o que antes se jurou não fazer.
Exatamente. Para conseguir a integração.
Em Os Sertões temos elementos de melodrama, clown, pirotecnia, ópera, sangue falso, música hollywoodiana, nudez, alegorias, agitação política, teatro nô, pantomima, dramalhão... Há algum recurso radical demais, apelativo, clichê demais para colocar no palco? Há algo que seja tabu?
Não, onde tem tabu, me diz, que eu vou lá e ponho. É só saber.
Você jamais se pergunta: será que isso não é muito piegas, patético? Essas categorias interessam a você?
Não, eu adoro, eu acho que isso é uma besteira, nada do que é humano me é desconhecido, e as experiências humanas passam por TUDO.
Eu não gosto é de drama, detesto!
A "tragicomediorgia"
O que você tem contra o drama?
Não sei, eu vivo na tragédia. Tive um irmão assassinado com 100 facadas. Eu sinto que a vida é trágica, que essa história de "dou ou não dou?", "caso ou não caso?", "compro ou não compro?", "fico ou não fico?", tudo isso é besteira. Isso é nada.
Por isso é que eu sou pela "tragicomediorgia". Eu acho que a vida é trágica; mas ela é cômica. E é muito orgiástica. Eu defino assim, "tragicomediorgia". Não basta só a tragicomédia, mas tem que ter a orgia, que é a origem do teatro. É ela que nos torna igualitários. Não só a orgia sexual, mas em todos os sentidos: é a mistura de tudo, do atual com o virtual, da imagem com o corpo, dos gêneros, vale tudo.
Veja o Oswald de Andrade. O Rei da Vela tem desde o discurso mais ordinário, o teatro de revista mais vagabundo, ao teatro mais sofisticado. Acho que sou barroco nesse sentido... brega.
Veterano antenado...
Você nunca se pergunta se o que faz é anacrônico?
Não é, porque eu sou crônico! O teatro em si só existe se você ressuscita aqui e agora. Uma coisa formidável na minha vida é ter um adversário como o Silvio Santos, que é um grande homem de televisão, e me obriga a estar antenado na contracenação, na briga, na disputa.
A área em torno do Oficina é tombada. O Silvio Santos quer comprar e fazer um shopping, que vai sufocar o teatro. Então depois de muita luta, ele próprio – que é um homem absolutamente inacessível, desafiando todo o grupo financeiro dele, desafiando toda a família dele, que é evangélica – foi ao teatro.
Ele foi recebido por nós, os atores ficaram cantando mantras durante uma hora e meia, antes da peça. E ele foi de uma escuta enorme. E estou querendo que ele não só não construa o shopping lá (mas em outro lugar), como que banque esse nosso projeto, a construção do teatro-estádio, da oficina-de-florestas e da universidade popular. E possivelmente ele vai topar. Vamos convidar o [Oscar] Niemeyer para fazer uma arquibancada rebolante.
... seduzindo o Silvio Santos!
Então você está conquistando o Silvio Santos?! Se não pode vencer o inimigo, seduza-o?
Eu li na própria Bíblia isso, outro dia, fiquei chocado! Eu sabia disso pela antropofagia, que você deve devorar o inimigo. Mas caí num capítulo da Bíblia que dizia que o inimigo é seu "marche-pied". Em vez de você retrair e lutar com ele, ele pode ser o seu caminho, para chegar onde você quer.
Então isso, de qualquer maneira, me mantém muito atualizado. Por exemplo, na Luta [quarta parte de Os Sertões], eu vou trabalhar bastante com o tecno, principalmente na parte do exército. Eu sou muito antenado, quer dizer, leio jornal, vou aos lugares, em danceteria. Como trabalho com jovens, recebo sempre essa informação. Eu dou e recebo.
Então, eu não me acho superado, não.
Brasil: samba, carnaval e nudez
Quem assiste ao seu espetáculo recebe em parte a mensagem de que o Brasil é um monte de gente seminua, doida por sexo, com futebol e festa o dia inteiro. Você não se preocupa de estar insistindo num clichê pernicioso?
Eu adoro esse clichê. Eu acho que o Brasil felizmente é a bunda da Carla Peres. É muito importante o mundo rebolar, o c* é muito importante, o mundo tem que descobrir. Eu acho o futebol uma coisa fantástica, eu me miro nele. Porque futebol já é cultura, mas o teatro pode vir a ser o esporte das multidões! Eu gosto muito da disciplina, da concentração do futebol, de tudo o que ele traz.
Contra o lixo do politicamente correto
Gosto de samba, do funk, da música brasileira. Eu gosto, acho que é a maior besteira dizer que o Brasil "não é o país só do Carnaval"! Ele é uma das coisas mais maravilhosas do mundo, tanto que eu faço ópera de carnaval. Acho que a carnavalização é a única forma de viver a vida, quase. (Não sou eu quem diz isso, é o [Mikhail] Bakhtine no livro dele.) Eu acredito na carnavalização, e ela é uma coisa universal. A paródia, a irreverência, contagiam.
Pena que no próprio Brasil ela está desaparecendo. Mas, como fala o Caetano [Veloso], ainda existe, e é preciso batalhar para que isso não desapareça, esse espírito do deboche. Porque tem uma imposição pela televisão e pela própria vida econômica muito violenta em cima. Tenta-se aplicar no Brasil essa coisa do politicamente correto, o espírito de seriedade, é um lixo, não é? Mas nós não vamos deixar.
Muito obrigado, Zé Celso.
Obrigado a você.
Não, aquela coisa de afastamento [Verfremdungseffekt, ou distanciamento crítico]... Eu acho que o público não vai ao teatro para refletir. Acredito que Marx e Nietzsche se dêem muito bem, no Brasil eles se namoram, se adoram. Pelo menos no Oficina.
Porque acho que o público vai ao teatro em busca de potência. Ele é um lugar de poder humano. E o maior poder está na libido dessublimada, como o William Reich dizia. Acho que o teatro é a casa do poder, aonde a sociedade vai para adquirir poder, não para racionalizar, para ficar de pé atrás. É muito chato isso.
"Soltar a franga" é política
Como você consegue de seus atores essa entrega total que se vê no palco?
É uma tendência que as pessoas têm. Elas querem se dar, "soltar a franga", sair dos seus limites. A própria tragédia grega acontece quando há hybris, quando você ultrapassa o limite. O limite de tempo, por exemplo, essa coisa do espetáculo de uma hora e meia, da agenda.
Só quando você sai da agenda é que começa a descobrir a riqueza que o ser humano tem. Principalmente na ordem liberal, que é muito avarenta para com o ser humano, em que ele é transformado numa idéia única de homem, que é assim, assado, é o consumidor.
Então se tem uma idéia preconceituosa de homem, extremamente massacradora do potencial criador. Quando você acena para as pessoas libertarem os seus desejos, eu sinto que é uma atitude política muito forte, hoje
Cultura libertária brasileira...
As pessoas estão querendo soltar a franga, no mundo inteiro. No Brasil é mais fácil, pois tem uma multidão de excluídos que tenta se virar. Aliás, essa multidão é responsável pela sobrevivência do Brasil. Como diz o Caetano Veloso, o povo ainda mantém viva essa cultura libertária. O povão brasileiro é completamente amoral: tanto que ele rouba, mata, pede esmolas, ele faz tudo para sobreviver, se organiza no crime organizado...
Ele não tem moral, apesar de a Igreja tentar conduzir os movimentos políticos de maneira a não irem tão longe quanto poderiam, porque ela segura um pouco no catolicismo.
Eu acho que liberação sexual, inclusive no Brasil, diminuiria demais a violência. Assim como a descriminalização das drogas. Porque o marginal é obrigado a ter uma atitude muito machista.
Mesmo essas crianças, quando elas começaram a entrar, os companheiros de rua disseram: "Vocês vão virar veados, vão dar a bunda, vão ficar pelados!" E na Febem, no Brasil, eles são tratados com muita violência. Se a Febem tivesse um tratamento como nós damos no Teatro Oficina, um tratamento libertário, a situação seria diferente.
... antídoto contra o puritanismo do capital
Acho que o mundo é dominado por uma cultura puritana. A cultura do DINHEIRO é puritana, do bem e do mal. Tenho a impressão de que todos os povos do mundo são libertários, o ser humano em si é libertário. Agora, ele recebe uma educação violentamente autoritária, puritana, dividida em bem e mal. É por isso que o Nietzsche é tão importante: Além do bem e do mal.
É por isso que o Noel Rosa, o próprio Euclides da Cunha, Oswald de Andrade, Glauber Rocha, o Gilberto Freyre, a poesia, a literatura brasileira, o candomblé... É uma cultura libertária, ela tem em si uma política muito mais importante do que muito do que veio do Capital, do marxismo, do Kennedy, dos americanos, do monetarismo.
Nós temos uma cultura libertária mais ou menos definida, e é uma riqueza nossa que vai se transformar em política, e pode ser muito boa para os outros povos todos. Para o povo chinês, que sofre muita repressão, mas acredito que seja muito sem-vergonha, também. Como o povo russo é muito sem-vergonha, muito religioso. O alemão, depois que bebe, solta a franga mesmo. Eu acho que é uma questão de transmutação de valor, aí.
Entrevista com Zé Celso, Teatro Oficina – Parte 2
Continuação da conversa com o visionário pragmático José Celso Martinez Corrêa: arquitetura, religião, erotismo, antropofagia, tempo teatral, Silvio Santos e a "tragicomediorgia".
O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona de São Paulo apresentou, numa antiga mina da região industrial do Ruhr, ao longo de 20 horas, as quatro primeiras partes da saga Os Sertões. O convite foi do festival internacional Ruhrfestspiele, um dos mais importantes do país.
A DW-WORLD conclui aqui a entrevista com o fundador da companhia, José Celso Martinez Corrêa: mito, guru, filósofo-sociólogo-urbanista teatral.
Os anos 90: revendo a história do teatro
DW-WORLD: Hoje em dia é facílimo ser lenda viva: lança um disco, virou mito. Mas você é o homem que criou o Teatro Oficina, ajudou no parto do tropicalismo, com O Rei da Vela de Oswald de Andrade, agitou com Roda Viva em 1968...
Zé Celso: E Ham-let [1993], uma fase mais forte do que todas essas. Porque já é toda a dramaturgia mundial repassada através da visão do Oswald e da arquitetura da Lina Bardi, num teatro que parece o Sambódromo. Então, nós repassamos Shakespeare, o teatro nô japonês. Com as Bacantes, retornamos à origem do teatro – e é muito forte, é um rito de teatro deslumbrante, que nós queremos levar para a Grécia.
Fizemos o Boca de Ouro do Nélson Rodrigues, o [Antonin] Artaud, Pra dar um fim no juízo de Deus. E foram todas sucesso. Nós repassamos toda a dramaturgia internacional. E eu escrevi Cacilda! também, para retomar o teatro que nos antecedeu, que é muito rico também, da geração de Cacilda Becker. Até chegarmos aos Sertões.
Antropofagia revitalizadora
Quer dizer, O Rei da Vela foi um começo, depois realizado na arquitetura do teatro agora, no desejo urbanístico, no repertório do teatro agora, na atuação. Isso tudo vem do Oswald de Andrade, que tinha uma dramaturgia muito ligada ao teatro russo do Maiakóvski, mas com muito mais humor, mais graça. É um teatro muito ligado ao Brasil, é a antropofagia, enfim.
Porque eu acho que a cultura popular brasileira, mesmo que não saiba disso (aliás, ela vem dos índios), ela é antropofágica. E hoje a cultura dos povos que cercam as cidades, Paris, Nova York, dos árabes, tende a devorar a cultura ocidental antropofagicamente, com isso resguardando-a, revitalizando-a.
Tempo teatral liberador
Cada parte de Os Sertões dura entre quatro e seis horas, a meta é uma hexalogia totalizando 50 horas. Quem passa esse tempo todo no teatro? Como você encara a dimensão da duração dentro do espetáculo? Seria imaginável uma versão do ciclo com as duas horas "regulamentares"?
Nunca...! Quer dizer, pode ser, mas é um clip, não?
O tempo do teatro é o do eterno retorno, é nietzscheano, é o tempo do amor. (Quando você está na cama com uma pessoa, você não tem "tempo". Você sai do tempo, entra num outro.) É a mesma coisa com a arte. Não tem sentido ficar nesse tempo de agenda. Aí você sai do teatro e não foi modificado, ficou no tempo linear, o do Ocidente, do relógio.
Mesmo no aqui e agora, existe alguma outra coisa que não está no relógio. Se você se abre para ela, libera energias enormes no corpo, que estão escravizadas pelo relógio de ponto. E a gente tem a vida toda pontuada, horário para trabalhar, para ver televisão, para dormir, acordar.
Aqui, todos eles diziam. "Ah, não dá mais de quatro horas, as pessoas não vão agüentar". O público que fica – tem muita gente que sai, porque não entende a língua, e tal – depois não quer sair mais do teatro.
Aquário de energia unindo atores e público
Ontem começamos a fazer o aplauso da maneira alemã. (Porque no Brasil, as pessoas descem, vêm nos abraçar, elas vão se aproximando, se aproximando, quando termina, estão todos abraçados.)
Aqui, como eles recebem muita informação, a energia precisa ser manifestada. Então é o aplauso, que é um descarrego, faz a catarse. Ontem fizemos o agradecimento de um por um, depois chamando todos. E eu senti que eles não queriam ir embora mais.
Confirmo plenamente sua impressão!
E no Brasil é assim, as pessoas não vão embora, elas ficam lá.
Porque eu trabalho muito a concentração, não só o tipo de atenção como no palco italiano – os atores entre si –, como com o público, com o espaço, também o espaço cósmico. O nosso teatro, por exemplo, tem um teto móvel, tem uma janela enorme, que dá para a cidade. Então, eu estou atuando, olho para uma estrela, fico mais forte, tem a lua cheia. Às vezes cai uma chuva, tem que fechar o teto. Então você vai estar relacionado com tudo.
Nosso teatro não tem lugar para nada a não ser os atores e o público: é um palco, uma pista, basicamente. Eu trabalho (com muita dificuldade, é difícil muitos compreenderem) a concentração FORA de cena. Eu procuro que eles fiquem ligados também, ouvindo e mandando energia.
Aí se cria uma espécie de aquário de energia, que acaba por envolver o público. Que permite, então, você entrar nesse tempo.
Diálogo entre todas as épocas e gêneros
Você não exige do público só a resistência na duração. A estrutura de Os Sertões também é exigente, saltando de Euclides da Cunha para outras dimensões narrativas, para o presente real, para outras ficções.
Acho que o teatro é o eterno presente. Como agora: a gente está aqui, mas tem toda uma carga do passado, toda uma série de desejos futuros. E está tudo aqui, o que existe é aqui e agora. Se você se concentra no aqui e agora, está dialogando com essa eternidade. Então, não tem sentido você fazer uma coisa em que vai voltar para a história e abstrair o presente. Porque a história está aqui, está no teu corpo, no corpo do público, na arquitetura do espaço. E nós já não temos mais uma visão linear da história. Você pode trafegar do passado para o presente, o futuro, para fora do tempo, em épocas; isso não tem a menor importância.
Eu tenho 45 anos de carreira, então já pratiquei quase todo tipo de teatro. E chega um momento onde vejo que todos eles são compatíveis, todos eles dialogam: o teatro nô com Nélson Rodrigues, com Shakespeare, que dialoga com Oswald, que dialoga com Brecht. Não existe nada puro, ortodoxo, realmente é um caldeirão antropofágico. Como é a vida.
No tabu tem petróleo
Você impõe ainda um terceiro – talvez o maior – desafio para um público convencional: a participação ativa, interatividade total. Ele é instigado a falar, cantar junto, entrar no palco, dançar, jogar capoeira, comer com os atores. Na terceira parte de Os Sertões, você até o convida a se despir e fazer sexo: e pela reação fica claro que esta é a última fronteira. Sua intenção é libertar o público? Ou simplesmente provocar?
Não, o estatuto do Uzyna Uzona é baseado na peça do Brecht A importância de estar de acordo [Badener Lehrstück vom Einverständnis, 1929], o que a gente chama de "acords", que é o acordo na transformação, no movimento. (E ele incorpora, evidentemente, coisas de Oswald de Andrade, e tal.)
Então, um dos itens é: Vá direto ao tabu. Não perca tempo, porque é lá que está a riqueza, se você for ao tabu, lá tem petróleo, lá jorra, entende? E o tabu sexual talvez seja o mais importante. Talvez seja o responsável pela guerra. Tenho quase certeza disso, vendo a transformação de meninos que roubavam, que matavam. (Tem um ator que já matou, já esteve preso.)
Pela sacralização da sexualidade
E a transformação maior está sempre no tabu sexual. Porque se você toca naquilo, dissolve, há uma transformação absurda. Um dos grandes pecados da Igreja – o papa deveria pedir perdão de joelhos, antes de morrer – é essa condenação absurda da sexualidade. Não só a homossexualidade; nós todos nascemos do ato sexual, a sexualidade é uma coisa sagrada.
Acho que a minha geração trabalhou muito para a libertação do sexo. Mas agora nós trabalhamos para a sacralização da sexualidade, do corpo humano. Ele é maravilhoso; o melhor figurino de teatro é o corpo nu. A vergonha do corpo é uma vergonha de si mesmo, a vergonha do amor é um ato de negação de si mesmo. O mundo é todo erótico, e o que move o mundo é Eros, mesmo.
Alguma nudez será castigada?
Nenhuma, que eu saiba. Mesmo no Nélson [Rodrigues] é uma paródia: ele se faz de moralista mas é o homem mais amoral que existe. Só que ele trabalha pela inversão, diz "Toda nudez será castigada" e cria uma das personagens mais eróticas, mais sensuais.
Existe hoje na vulgaridade da mass media e na sociedade liberal, nas lojas pornô, toda uma visão da sexualidade que é antierótica. Eu odeio esse sexualismo, eu acredito que o sexo é sagrado, erótico, elétrico. Gosto muito dessa palavra "libidinoso". Tudo é erótico, comida, o vento, as plantas. Tudo é erótico.
Um Antônio Conselheiro erótico
Em Os Sertões é você mesmo quem representa o Antônio Conselheiro. O de Euclides da Cunha é um asceta, é seco, contido, repressor. O seu é dionisíaco.
É ambíguo, porque ao mesmo tempo tinha amor livre em Canudos. E o Conselheiro, ele não descreve inteiramente como asceta, é menos a visão de Euclides, acho que é mais a visão geral que se tem.
Eu não estou asceta, e teria muita dificuldade. Para valer, eu precisava ter uma religião, uma fé, uma crença. Porque isso ele tinha, e era isso que aglutinava. Aí a crença que eu encontro, o único deus em que acredito, é Eros. E acho que foi o que conseguiu unificar todo o mundo no Brasil, lá nós todos acreditamos em Eros.
E Nietzsche me ajudou também muito, no Zaratustra. Porque é uma questão de reinterpretar o mito. Uma das funções da arte é re-significar o mito, a cada geração.
E Dionísio é seu orixá
Em sua visão, mito e história estão muito próximos, sem uma linha definida separando.
O mito é muito mais importante. Porque a história, ninguém sabe, a história é um mito, também. A linha não é clara. E o mito, a história – no teatro e na arte, na VIDA, aliás, para você viver – você tem sempre que reinterpretar de acordo com aquilo que te traz mais vida. Não vai interpretar para trazer mais morte!
Você não vai interpretar também de acordo com o que é mais politicamente correto. Acho que a gente já vive o fracasso total do politicamente correto: ele é uma decadência, é um fim de linha. Então minha religião é Eros, é o teatro, não tenho a menor dúvida: meu deus e meu orixá é Dionísio!
Sua Santidade, Zé Celso
Enfim, seu Antônio Conselheiro se parece muito com o Zé Celso...
Mas o Zé Celso também é mito. Eu fiz uma peça muito bonita, do Jean Genet, Ela, sobre a imagem, em que eu fazia o papel do papa, "Ela", a Sua Santidade. Então foi maravilhoso, porque eu brinquei... Foi no dia em que o papa chegou no Brasil, e eu entrei em cena de papa, também. E eu fazia a desmistificação da minha imagem e da do papa.
Eu tenho um Zé Celso que é totalmente mistificado. As pessoas nem sabem o que eu faço; eu apareço na televisão mas elas nem vão ver o meu teatro. Todo o mundo me conhece, fala com a maior intimidade: "Ô, Zé Celso!". Que é uma coisa que não existe, é uma abstração.
Então não é o Zé Celso. Eu trabalho esse mito, trabalho o mito do Conselheiro, trabalho a visão que o Euclides tem. No fim do Homem 1 [segunda parte do ciclo], eu apresento essas três personagens numa só. Eu incorporo as três.
Sociedade-espetáculo x teatro-terreiro
Mas, enfim, nós vemos no palco esse Antônio Conselheiro-Zé Celso. E todo o tempo você faz paralelos entre a luta de Canudos e a do Teatro Oficina. Ao apresentar quem construiu a igreja do povoado, é a Lina Bo Bardi [arquiteta do Oficina] em pessoa que vem à cena. E você conta que, ao ser torturado pelo DOPS [1974, na ditadura militar], o que o salvou foi incorporar uma personagem, um iogue meio intocável. Essa oscilação entre uma e outra dimensão é constante. Onde termina o palco e começa a vida real, ou vice-versa?
Ah... não existe. É tudo a mesma coisa. Uma, que o mundo é um espetáculo, não é, você vive numa sociedade-espetáculo. E a função do teatro é exatamente desmascará-la, sublimá-la. A sociedade-espetáculo faz o teatrão, o teatro de palco-e-platéia.
Já esse "teatro de terreiro", de incorporação, estoura com a sociedade-espetáculo, não cabe nela. Você sai do espetáculo, entra numa coisa; sai do horário do espetáculo, da relação educada com o público.
O ator entra e diz "Boa tarde. Boa tarde! BOA TAAARDE!", ninguém responde. Você vê, eles não estão acostumados a isso. Eles trazem a "quarta parede" no corpo, mesmo num trabalho onde não se trata dela. Mas depois, vão sentindo que tem que quebrar. E é uma descoberta, eles ficam apaixonados.
Roubar e matar pelo teatro
Mas na vida você está sempre atuando. ATUANDO, não representando. Representar, eu representei para o DOPS.
Uma das personagens de Os Sertões convida o público a fazer uma jura: que não medirá meios para que o teatro continue vivo...
É, para fazer teatro, você rouba, mata, fornica...
Tudo o que antes se jurou não fazer.
Exatamente. Para conseguir a integração.
Em Os Sertões temos elementos de melodrama, clown, pirotecnia, ópera, sangue falso, música hollywoodiana, nudez, alegorias, agitação política, teatro nô, pantomima, dramalhão... Há algum recurso radical demais, apelativo, clichê demais para colocar no palco? Há algo que seja tabu?
Não, onde tem tabu, me diz, que eu vou lá e ponho. É só saber.
Você jamais se pergunta: será que isso não é muito piegas, patético? Essas categorias interessam a você?
Não, eu adoro, eu acho que isso é uma besteira, nada do que é humano me é desconhecido, e as experiências humanas passam por TUDO.
Eu não gosto é de drama, detesto!
A "tragicomediorgia"
O que você tem contra o drama?
Não sei, eu vivo na tragédia. Tive um irmão assassinado com 100 facadas. Eu sinto que a vida é trágica, que essa história de "dou ou não dou?", "caso ou não caso?", "compro ou não compro?", "fico ou não fico?", tudo isso é besteira. Isso é nada.
Por isso é que eu sou pela "tragicomediorgia". Eu acho que a vida é trágica; mas ela é cômica. E é muito orgiástica. Eu defino assim, "tragicomediorgia". Não basta só a tragicomédia, mas tem que ter a orgia, que é a origem do teatro. É ela que nos torna igualitários. Não só a orgia sexual, mas em todos os sentidos: é a mistura de tudo, do atual com o virtual, da imagem com o corpo, dos gêneros, vale tudo.
Veja o Oswald de Andrade. O Rei da Vela tem desde o discurso mais ordinário, o teatro de revista mais vagabundo, ao teatro mais sofisticado. Acho que sou barroco nesse sentido... brega.
Veterano antenado...
Você nunca se pergunta se o que faz é anacrônico?
Não é, porque eu sou crônico! O teatro em si só existe se você ressuscita aqui e agora. Uma coisa formidável na minha vida é ter um adversário como o Silvio Santos, que é um grande homem de televisão, e me obriga a estar antenado na contracenação, na briga, na disputa.
A área em torno do Oficina é tombada. O Silvio Santos quer comprar e fazer um shopping, que vai sufocar o teatro. Então depois de muita luta, ele próprio – que é um homem absolutamente inacessível, desafiando todo o grupo financeiro dele, desafiando toda a família dele, que é evangélica – foi ao teatro.
Ele foi recebido por nós, os atores ficaram cantando mantras durante uma hora e meia, antes da peça. E ele foi de uma escuta enorme. E estou querendo que ele não só não construa o shopping lá (mas em outro lugar), como que banque esse nosso projeto, a construção do teatro-estádio, da oficina-de-florestas e da universidade popular. E possivelmente ele vai topar. Vamos convidar o [Oscar] Niemeyer para fazer uma arquibancada rebolante.
... seduzindo o Silvio Santos!
Então você está conquistando o Silvio Santos?! Se não pode vencer o inimigo, seduza-o?
Eu li na própria Bíblia isso, outro dia, fiquei chocado! Eu sabia disso pela antropofagia, que você deve devorar o inimigo. Mas caí num capítulo da Bíblia que dizia que o inimigo é seu "marche-pied". Em vez de você retrair e lutar com ele, ele pode ser o seu caminho, para chegar onde você quer.
Então isso, de qualquer maneira, me mantém muito atualizado. Por exemplo, na Luta [quarta parte de Os Sertões], eu vou trabalhar bastante com o tecno, principalmente na parte do exército. Eu sou muito antenado, quer dizer, leio jornal, vou aos lugares, em danceteria. Como trabalho com jovens, recebo sempre essa informação. Eu dou e recebo.
Então, eu não me acho superado, não.
Brasil: samba, carnaval e nudez
Quem assiste ao seu espetáculo recebe em parte a mensagem de que o Brasil é um monte de gente seminua, doida por sexo, com futebol e festa o dia inteiro. Você não se preocupa de estar insistindo num clichê pernicioso?
Eu adoro esse clichê. Eu acho que o Brasil felizmente é a bunda da Carla Peres. É muito importante o mundo rebolar, o c* é muito importante, o mundo tem que descobrir. Eu acho o futebol uma coisa fantástica, eu me miro nele. Porque futebol já é cultura, mas o teatro pode vir a ser o esporte das multidões! Eu gosto muito da disciplina, da concentração do futebol, de tudo o que ele traz.
Contra o lixo do politicamente correto
Gosto de samba, do funk, da música brasileira. Eu gosto, acho que é a maior besteira dizer que o Brasil "não é o país só do Carnaval"! Ele é uma das coisas mais maravilhosas do mundo, tanto que eu faço ópera de carnaval. Acho que a carnavalização é a única forma de viver a vida, quase. (Não sou eu quem diz isso, é o [Mikhail] Bakhtine no livro dele.) Eu acredito na carnavalização, e ela é uma coisa universal. A paródia, a irreverência, contagiam.
Pena que no próprio Brasil ela está desaparecendo. Mas, como fala o Caetano [Veloso], ainda existe, e é preciso batalhar para que isso não desapareça, esse espírito do deboche. Porque tem uma imposição pela televisão e pela própria vida econômica muito violenta em cima. Tenta-se aplicar no Brasil essa coisa do politicamente correto, o espírito de seriedade, é um lixo, não é? Mas nós não vamos deixar.
Muito obrigado, Zé Celso.
Obrigado a você.
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