POR ANA ARANHA para a revista Época.
Com o mesmo grupo com o qual trabalha há anos no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), Antunes Filho apresenta sua leitura trágica de Antígona. A seguir, o diretor fala sobre o trabalho de preparação dos atores e a maneira como quer aproximar o público jovem dos textos clássicos.
Época - Você fez comparou a sua montagem de Antígona a uma tela de arte, quais são seriam as gravuras?
Antunes Filho - Ah, isso eu falei de brincadeira. O Gregório era meio gravura, no cenário preto, aquelas gravuras bem branco e preto, era tudo detalhado e profundo. Esse é solto, solar, como o teatro na Grécia que começava às dez horas da manhã. Não tem escuridão porque quero que o público veja o jogo dos atores. Quando você começa a clarear e escurecer, o ritmo fica com o iluminador , no meu espetáculo os atores que têm o ritmo,são donos do palco.
Época - Você preenche o palco completamente, cada grupo pontua um espaço, cada canto tem sua música...
Antunes Filho - É isso. Eu quero mostrar que o teatro é um jogo. O Prêt-à-Porter tem um falso naturalismo. Nesse espetáculo quero fazer teatro-teatro e quero trazer o jovem porque ele está afastado dos clássicos, têm temor, acha chato. Quero provar que não, que os clássicos também são atuais e divertidos.
Época - A encenação de "Fragmentos Troianos" estava vinculada à forma dramática, "Medéia", como você mesmo disse, ficou meio a meio, "Antígona" finalmente chegou ao trágico....
Antunes Filho - Agora eu consegui chegar à tragédia latino americana. Não vou fazer aquelas mulheres de preto, aquela coisa chata. Eu adoro as tragédias gregas, mas acho muito chato. A Medéia já afastava esse perigo. Apesar de Antígona ser uma tragédia, tem seu lado lúdico.
Época - Quais foram os elementos que trabalharam a atualização da tragédia?
Antunes Filho - Eu enxuguei o texto, mas não cortei nenhuma metáfora. A maneira de falar é diferente, flui mais, usamos a ressonância. No teatro normal as pessoas falam projetando e fica tudo entrecortado. Projeção é uma coisa maluca, tem que fazer um x lá no meio da platéia, a língua portuguesa fica pedregosa. Na ressonância você começa a perceber que a língua tem a sua eufonia, é tudo mais sonoro, como uma flauta. O espetáculo é gostoso de ouvir, não é motor de carro.
Época - Foi difícil encontrar o tom da tragédia?
Antunes Filho - Cheguei à conclusão de que não tem imaginação sem técnica, não tem o verdadeiro sentimento sem técnica, não tem instinto. Quando se usa a projeção de voz, você se usa o sentimento, mas a ansiedade. A projeção leva o ator a ser estereotipado. Estou querendo dar essa contribuição para a cultura teatral brasileira e acho que estou conseguindo. É uma maneira de falar aqui que não se fala lugar em nenhum.
Época - No Gregório já estavam usando?
Antunes Filho - Já, mas naquela peça os atores não sabiam falar. Agora sim, eu dei muita técnica para eles, porque a técnica é fundamental no teatro, sem a técnica você não consegue nada, fica repetindo a mesma coisa o resto da vida.
Época - Voltando à Antígona, por que a escolha de uma personagem tão limpa e reta?
Antunes Filho - A Antígona para mim, no meu idealismo, é a busca da verdade e a gente sempre paga um preço caro pela verdade. Eu também tenho meu lado da lei e meu lado de Antígona. É essa a nossa contradição, é de todo mundo, a organização para dar certo. As pessoas não dizem o que deve ser dito. Os problemas de Antígona até hoje não foram resolvidos. O problema do poder, o problema do instinto de liberdade. Como equilibrar isso? Eu não quero resolver, eu quero colocar a questão. De um lado todos temos essa coisa da Antígona, não concordamos com a sociedade em tantas coisas. E ela não concorda conosco também em tantas outras.
Época - Você se inspirou em algum fato atual?
Antunes Filho - Não preciso me lembrar de um caso porque todos são permeados disso. Essa dialética que você tem que fazer com você mesmo. O que é que vale mais, a liberdade ou a sobrevivência? As pessoas se sacrificam pela liberdade e que se dane tudo
Época - Por que a escolha de Baco como fio condutor da tragédia?
Antunes Filho - Porque ele é patrono do teatro e de Tebas. O texto diz por várias vezes que é Baco que faz tremer o chão de Tebas. Apesar de ser um irracional, ele sabe que o templo dele é Tebas, do qual ele toma cuidado. Aí que está a contradição violenta do espetáculo. O lugar dele é propor, como deus do teatro. Tira os cadáveres e mitos e dá vida para que eles dêem um exemplo. Ele reergue um mito, uma história, para ver se o povo, o público vai entender. De tempos em tempos ele faz esse espetáculo, ele retira os caixões. É como se fosse os mitos do nosso subconsciente e do nosso inconsciente. Ele tira nossos arquétipos e nos coloca exemplarmente.
Época - Por que a escolha por um espetáculo tão enxuto?
Antunes Filho - Eu não gosto de nhe-nhe-nhé, gosto das coisas numa linha reta. Quero que a juventude assista e não ache os grandes autores chatos. Acho que hoje em dia não dá mais para você ir a um espetáculo de duas horas, eu não consigo, acho chato. Tem que ser pá-pum. O tempo é outro. Mas também não é por isso que tem que ser superficial. Acho que você tem que ser conciso e, em uma hora, uma hora e meia, dizer tudo que tem que ser dito. O máximo que puder enxugar, eu enxugo, mas sem perder a essência. Eu gosto de espetáculo dinâmico e o público também.
Época - O público não aceita mais?
Antunes Filho - Aceita. Tanto é que o Zé Celso (José Celso Martinez Corrêa) faz sucesso, o público fica lá cinco horas. Eu acho aborrecido, para o meu gosto não dá.
Época - Você chegou a ver alguma das montagens de Os Sertões, do Zé Celso?
Antunes Filho - Não vi. Não vou ver peça no Oficina porque se ele (Zé Celso) souber que estou lá, começa a me chamar, a dizer "o Antunes tá aqui" e eu fico morrendo de vergonha.
Época - Como você vê o trabalho de interação e quebra da quarta parede que ele desenvolve?
Antunes Filho - Esse negócio de quarta parede, terceira parede isso é tolice, isso é jogo, como qualquer outro. Você joga com a quarta e a terceira parede como quiser. Isso não é nada de novo, é mais velho que meu avô. É quarta, quinta, sexta, oitava, isso não quer dizer nada para mim. Eu quero saber o que você quer dizer. Me conta, me agradou? Ótimo, pronto.
ZÉ CELSO
O diretor José Celso Martinez Corrêa apresenta no Teatro Oficina, em São Paulo, a adaptação da terceira parte do livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha. Em entrevista à Época, o diretor fala sobre a função do teatro e sobre a atualidade do espírito da Canudos de Antônio Conselheiro.
Época - Qual a importância da volta aos sertões?
Zé Celso - Canudos foi a primeira guerra telegrafada do mundo e a primeira vez em que se massacrou um povo absolutamente desconhecido – no caso, uma cidade de 25 mil pessoas – em nome da república e da democracia. É o arquétipo da guerra ao terror, que, por sua vez, é conseqüência do capitalismo da decadência que só oferece a visão da cultura puritana do bem e do mal, esse fundamentalismo atrasado. O papa atual falou em "ditadura do relativismo", pois, se ele é a base da democracia, é claro que vai ser a ditadura do relativismo! A humanidade está cansada de saber que não há verdade absoluta, mas mesmo assim há quem queira impor sua verdade para os outros. Nesse sentido, o livro parece que foi escrito depois do onze de setembro.
Época - Além da guerra ao terror, você fala de outros conflitos atuais, um deles quando uma personagem se apresenta como governadora "Rocinha" e fala sobre um muro...
Zé Celso - Não tem diferença. A Rosinha (governadora do Rio de Janeiro) fala do muro como solução para a favela assim como Israel pensa na solução para a Palestina. Nós temos que pensar a história do Brasil dentro do momento internacional, um muro não vai resolver o problema de Israel, do Rio, nem da relação entre EUA e América Latina.
Época - O que Euclides diria se visse a sua montagem?
Zé Celso - Acho que ficaria contente, eu sempre fui muito apaixonado por ele. Euclides precede o modernismo quando mistura linguagem científica com a língua tupi, com a dos sertanejos e com eruditismo e parnasianismo. É um livro pouco lido porque exige mapas e dicionário, mas a peça está incentivando a leitura.
Época - Mas a peça também não é fácil, você faz longas apresentações e trabalha com uma linguagem diferente da habitual.
Época - Você se sente como Antônio Conselheiro, reunindo um grupo e fundando uma religião própria no Oficina?
Zé Celso - Eu não me sinto reunindo massas, mas assumindo a responsabilidade humana com o teatro. A função do teatro é social, é aonde vamos para nos potencializar, tocar e mexer nas estruturas. O teatro coloca o poder humano em evidência desmascarando o marketing que destrói o corpo, a castração, a catequização. A sociedade do espetáculo convence a multidão que ela não tem poder, que tem que ficar deslumbrada, assistir passivamente e se conformar.
Já o conselheiro era professor, estudou línguas e cuidava da contabilidade do pai, até que sua mulher começou a ir com outros homens e acabou fugindo com um sargento. Ele ficou tão desesperado que se embrenhou no mato e passou por uma transformação. Saiu do terno e da gravata e foi se relacionar com a natureza, tomar consciência do mundo vivo. Com isso, ele passou a juntar as pessoas e conseguiu resistir a uma seca que estava matando milhões de pessoas. Reuniu 25 mil pessoas que sabiam lidar com o meio e estabeleceram o mutirão; eles foram os avós dos Sem-Terra.
Época - Na peça há um canto muito interessante que clama pela "descivilização".
Zé Celso - Exatamente, é o canto do Vis a Tergo. É você retornar a suas qualidades primitivas para entrar em ação. A espécie humana está domesticada e você tem que começar a mexer onde pode. Eu, por exemplo, não acredito na democracia representativa, nessa coisa de votar e deixar nas mãos do outro a responsabilidade.
Época - Vocês têm especialistas que coordenam cada área, mas como que incorpora as idéias do atores e a participação das crianças do Bixigão?
Zé Celso - Temos um método específico para cada peça. Um diretor não trabalha com uma idéia na cabeça, mas com desejos do ator. Para isso, temos um trabalho de concentração. Quando chegam, ficamos uma hora em total silêncio. O ator tem que reencontrar o corpo dele, descondicionar, sair dos clichês. Se estiver acostumado com o palco italiano, tem que atuar para os quatro cantos do espaço.
Época - Como é trabalhar o rompimento total do palco italiano?
Zé Celso - Acho que através do ritmo você mantém o interesse do público, eu trabalho também com a incorporação do ator ao espaço. Mesmo quando ele está trocando de roupa, ouve a peça; é um trabalho que está sendo descoberto a cada dia. O ator deve ter carisma, desenvolver sua sexualidade a ponto de ter tesão de estar vivo com o público. Na verdade, todo mundo tem carisma, mas a domesticação da sociedade do espetáculo reduz as pessoas a essa coisa humilde e submissa. Eu procuro restabelecer o orgulho das pessoas. É preciso matar o ego, esses personagens que foram criados pela família, escola e sociedade. O ego é essa coisa de ter que impressionar o outro, você abdicar de você mesmo para ficar dizendo que é o único, que é fantástico.
GERALD THOMAS
O diretor teatral Gerald Thomas volta ao Brasil com um Um Circo de Rins e Fígados, a história do ator-personagem Marco Nanini envolvido em uma série de acontecimentos caóticos. Autor e diretor de uma trama cheia de metalinguagens e provocações ao meio artístico, Gerald deu a seguinte entrevista à Época.Época - Por que escrever uma peça inteira para e sobre Marco Nanini?
Época - Houve uma colaboração maior de Nanini para Um Circo de Rins e Fígados do que outros artistas costumavam colaborar em suas outras peças. Você está mudando o seu modo de fazer teatro?
Gerald Thomas - Estou. Fiz 50 anos.
Época - O personagem de João Paradeiro está em busca de alguma coisa, ele manda pistas e acaba mais confundindo do que ajudando o personagem de Nanini. Quem é Paradeiro?
Gerald Thomas - Ele é uma entidade que representa uma das características do ser humano de hoje. Eu moro nos EUA, e sou em parte um cidadão americano, você acha que estou feliz com o que eles estão fazendo pelo mundo hoje em dia? Eu sou também cidadão brasileiro, você acha que estou feliz com o que está acontecendo na politicagem brasileira? Alguém está feliz olhando o mundo em volta, olhando o desespero que está acontecendo com essa coisa que ainda se chama de globalização? Há uma perda de identidade dos povos, uma crise que atinge o cerne do que há de mais importante que é o ser humano em si. Dentro do ser humano existe orgulho de um nacionalismo ou de um patriotismo, não no sentido guerreador da palavra, mas no sentido poético. Isso tudo está sendo perdido pela unificação de uma moeda como o Euro. Pela unificação de países que nada tem de comum do continente europeu. Essa utopia falhada que foi o Brasil do Lula, esse Ministério da Cultura absurdo, megalomaníaco e centralizador. Que loucura que é um artista como o Gil assumir um ministério, que decepção.
Época - A trama da peça sofre uma reviravolta quando Nanini revela seu segredo mais macabro e, ao contrário do que se espera, vive uma retomada de seu sucesso profissional. Deveria o mundo ovacionar o vergonhoso?
Gerald Thomas - Mas é o que eles estão fazendo nesses reallity shows. Eu me pergunto o que vai ser daqui a cinco anos. Na velocidade que as coisas vão, o que será? Ver um ser humano ser morto ao vivo? Hoje nos Estados Unidos tem shows em que as pessoas comem minhocas ao vivo, entram em uma banheira de baratas, um absurdo. E quem agüentar mais tempo ganha, tudo no horário nobre da CBS.
Época - Seu alvo de crítica é a mídia ou é o homem?
Época - Você, como observador do teatro...
Gerald Thomas - Eu não sou observador do teatro. Eu não vou ao teatro, só faço o meu. Você acha que taxista, no dia em que não dirige, pega táxi?
Época - É bem diferente...
Gerald Thomas - Eu não tenho tempo para ir ao teatro, trabalho, faço muita coisa em muitos países. Eu não gosto de teatro, uso como veículo para expressar as minhas idéias.
Época - Você não se interessa em saber como outras pessoas estão usando esse veículo?
Gerald Thomas - Nem um pouco, nada. Gosto de música, pintura, cinema. Teatro não me interessa nem um pouco.
Época - Apesar de não ir ao teatro, você deve conhecer esses autores. Aqui em São Paulo, além você há outros grandes autores com peças em cartaz. O José Celso Martinez Corrêa e o Antunes Filho.
Gerald Thomas - Que o Nelson de Sá chamava de santíssima trindade do teatro brasileiro.
Época - O que acha a respeito da idéia dessa santíssima trindade?
Gerald Thomas - Acho legal e curioso que não tenha surgido ninguém para criar um quadrante.
Época - Você sabe se surgiu alguém?
Gerald Thomas - Pelo que a imprensa descreve, a santíssima trindade continua dominante.
Época - Você lê o que sai na imprensa sobre teatro?
Gerald Thomas - Leio.
Época - Não vê novos nomes despontando?
Gerald Thomas - Isso é muito difícil dizer. Não vejo ninguém criando um grande impacto na cena. Não vejo um grande revolucionário, com grandes novas idéias.
Da sexualidade à política, o Zaratustra libertário do Bixiga
Por Washington Calegari
SÃO PAULO - Sexualidade e crítica social são elementos definidores de praticamente todos os trabalhos comandados pelo diretor José Celso Martinez Corrêa. Seja nos áureos anos de chumbo da ditadura militar ou em pleno século 21, seus espetáculos não poupam o espectador de surpresas e cenas de grande impacto. Não há pudores, o espaço de crítica é permanente, sempre aberto a incorporar novas discussões e ‘agressões’ – como muitos gostam de classificar.
A tal ‘agressividade’ dos trabalhos do grupo Oficina Uzyna Uzona, entretanto, é creditada por Zé Celso à hipocrisia de uma burguesia que “não quer ser tocada”, assim como a exacerbação da sexualidade só se faz chocante graças ao viés de sacralização imposto por uma cultura dominante - que o diretor considera cega e marcada pela visão única do homem - do sexo, do amor, do poder e da liberdade.
A empreitada teatral de “Os Sertões” no Oficina adiciona alguns capítulos à trajetória desse paulista de 66 anos (Zé nasceu em Araraquara, no interior de São Paulo), fundador do teatro-estádio encravado no bairro do Bixiga, na tentativa de resgatar o poder e a liberdade do ser humano e de inserir o “trans-homem” como centro de uma concepção teatral amparada na energia e na libertação de ideologias que restrinjam o potencial de criação.
Nesta entrevista ao Aplauso Brasil, concedida antes de um ensaio de “O Homem – da revolta ao trans-homem”, que estréia no próximo dia 13, Zé Celso evidencia sua inquietação, sua insatisfação com o cenário cultural brasileiro e a energia renovada para vencer a falta de apoio financeiro e continuar construindo, com paixão, espetáculos que representam verdadeiros monumentos do teatro brasileiro.
Sem pudores, um Zé Celso que personifica aquilo que ele mesmo preconiza, mesmo quando isso significa pagar o alto preço imposto pela “ditadura econômica”: a capacidade de ser sempre jovem, apaixonado, libertário e dono do seu próprio gozo.
Aplauso Brasil - A figura de Antônio Conselheiro faz parte de seu imaginário artístico há bastante tempo, muito antes das montagens de Os Sertões. O que ele representa?
Zé Celso - Ele não representa, ele presenta, presentifica muita coisa. Esse Antônio Conselheiro de “Os Sertões” é alguma coisa do Conselheiro que existiu, esse líder que organizou Canudos, que foi importantíssimo numa época em que o mundo inteiro sofria uma seca enorme, e com a polarização dele e as pessoas que o acompanhavam, essa cidade de 25 mil habitantes resistiu à seca num período em que era fatal e as autoridades não faziam nada; tem o Conselheiro visto pelo Euclides, que eu falo na primeira peça (a primeira parte de “O Homem” (do pré-homem à revolta), e tem o Conselheiro que eu tento viver aqui e agora, de acordo com a interpretação que passa pela minha experiência de vida enquanto líder, diretor de teatro, uma pessoa que vive uma determinada posição social com seu trabalho.
Eu não pretendo a fidelidade absoluta à figura dele (de Antônio Conselheiro), porque em arte, teatro, você reinterpreta tudo, então eu procuro reinterpretar o Conselheiro a partir da experiência, sem deixar de me alimentar e de trazer a figura histórica, com as palavras de Euclides, mas ao mesmo tempo “antropofajar”, incorporar, trazer ele presente nesse momento, porque acho a figura dele muito importante para a afirmação dos novos movimentos sociais que acontecem no Brasil, não só os do Sem-Terra, que é descendente de Canudos, mas qualquer tipo de movimento de transformação passa pela figura do Antônio Conselheiro reincorporado, porque é um dos fantasmas que ronda o Brasil. Marx começava o manifesto dele dizendo “ um fantasma ronda a Europa” – o comunismo -, eu acho que o que ronda agora o Brasil é o fantasma da reforma agrária, que toca no mito da propriedade privada, produtiva ou improdutiva, o tabu mais sagrado do capitalismo. O Conselheiro e os sertanejos que estiveram com ele de certa forma abandonaram a figura do homem sertanejo oprimido, das fotos do Sebastião Salgado, eles, os sertanejos, despertaram um sentimento de transcendência. Então a figura do Conselheiro me lembra muito a do Zaratustra, me lembra muito o Nietzsche.
Aplauso - Qual a relação de Conselheiro com Zaratustra?
Zé Celso - Num momento em que a esquerda entrou numa crise total no mundo, em meio à redução do homem a uma figura de consumo, ela tem dificuldade de compreender as transformações do mundo, fica defasada, perdida na visão do marxismo tosco. Eu acho que quando o Nietzsche apareceu e trouxe de volta a experiência do ser humano como poder, com transcendência, e com a evolução do que aconteceu no mundo no século passado, depois da crítica dialética do Sartre, começaram a aparecer os movimentos culturais, o movimento negro, o das mulheres, o movimento gay, o ecológico, o da descriminalização das drogas, esse aspecto da luta de transformação abriu muito, e a figura do Conselheiro traz nele esse tipo de totalidade.
Aplauso - Em uma entrevista para a revista Civilização Brasileira, você afirma que a luta política é uma coisa que faz parte da vida inteira, e que tem política ligando tudo, inclusive a cultura e a sexualidade. A sexualidade, sob esse ponto de vista, é também uma forma de manifestação política?
Zé Celso - A sexualidade é divina. E eu sou muito religioso, mas minha religiosidade não é a de acreditar num Deus transcendente, que está fora de nós, e sim que Deus está dentro de nós, e tudo em nosso corpo é sagrado, a começar da merda. E o indivíduo que não é capaz de assumir o seu prazer e o seu gozo realmente é um indivíduo que não se possui a si mesmo, é um rebanho, daquele que vai na conversa da igreja ou dessa conversa toda de maldição sexual. A “des-repressão” sexual é considerar a sexualidade uma dádiva da natureza. No momento em que você abdica ou reprime a sua sexualidade você está negando sua própria origem. Você vem de um ato de amor, todos vêm. Então a divindade começa por aí.
A própria experiência sexual é uma experiência religiosa, de vida, com intensidade, sem medo, sem culpa, libertadora, porque o indivíduo que é dono do seu próprio gozo é dono do seu poder. E a origem da política está na liberdade do amor, da sexualidade, do poder. A cultura brasileira, que é muito libidinosa, libertária, é a cultura política brasileira. Se os políticos brasileiros se inspirassem no poder que a cultura brasileira tem, o Brasil sairia dessa crise e seria o país que daria ao mundo todo uma outra possibilidade, porque o mundo é dominado por estruturas totalmente baseadas num maniqueísmo obscuro e simplista de bem e mal, que parte da vergonha e da negação da sexualidade. Eu acho que a igreja devia pedir perdão pelo que ela fez a partir da sacralização da sexualidade.
Aplauso - Dá para comparar a sexualidade no Marquês de Sade com o modo como ela é retratada no Oficina?
Zé Celso - É diferente, porque Sade, na época dele, rompeu com os limites de uma sexualidade “papai e mamãe” e mostrou que a sexualidade é uma coisa polimorfa, que há sexualidade em tudo, na perversão, no masoquismo, no sadismo, ele mostrou que a liberdade humana está além do bem e do mal, não tem limites. Cada pessoa, cada geração, reinventa a sexualidade. É uma questão de performance, seu instinto sente e você realiza a performance de suas fantasias. Ele viveu numa época muito sanguinária, das guilhotinas, então era uma coisa muito ligada ao terror.
Aplauso - Sade dizia que se utilizava da libertinagem para expor a hipocrisia humana e romper com ela, a exemplo do exposto em “A filosofia na alcova”, que foi inclusive montada pela companhia Os Satyros. No Oficina ela é abordada de forma semelhante?
Zé Celso - Não, aqui ela é abordada no sentido de que a sexualidade é uma coisa que faz parte da vida, uma coisa sagrada da natureza. E as crianças aqui não quiseram ficar nuas (em “Os Sertões”), porque elas sabem do peso que isso significa na escola, com os pais, mas por mim elas ficariam, e de qualquer maneira elas convivem aqui com a nudez em cena. E a nudez é uma coisa que sempre, todos os anos, me perguntam, “porque você quer chocar com a nudez, o que você pretende com a nudez?” O Miguel Ângelo mostrou coisas belíssimas do nu na arte. Eu acho o corpo humano a coisa mais linda do mundo, acho a nudez maravilhosa, a nudez é inclusive o primeiro figurino do teatro. A gente vem de uma cultura, a indígena, eu quando criança achava linda, deslumbrante a nudez dos índios brasileiros, eu não vejo por que esse terror com o nudismo. A hipocrisia é um dado ligado muito à dominação social dessa totalidade da visão capitalista e cristã do bem e do mal puritano. Este teatro (Oficina) não é puritano, ele é libertário.
Aplauso - Você aponta como bases do trabalho do Oficina o conhecimento sensitivo, a libertação da sensualidade, a vinculação da arte com o princípio do prazer e a realização do instinto orgânico e da libido. O que representa, afinal, a libertação da sensualidade e esse instinto orgânico, tão presente em “O Homem”?
Zé Celso - Eu acho que a energia humana é mais forte, a energia que faz nascer, que te dá a vida, ela não se localiza só exclusivamente no pênis, no ânus e na vagina, apesar de ser muito importante, ela se localiza no corpo todo, ela transcende o corpo. O mundo todo, se você está com suas antenas sensuais ligadas, com sua sexualidade plugada, você vai perceber que ele é erótico, a respiração é erótica, e o mundo para mim tem no ar uma coisa que eu chamo de ‘panspermina’, como se fosse espera toda uma coisa fertilizadora. Eros é o maior deus, aliás até antes de Dionísio, para mim está Eros, e o Eros livre, porque eu acho que o amor é livre, como diz Antônio Conselheiro, o amor é livre, e portanto não há julgamento que possa existir em torno do amor. Portanto não tem sentido o juízo de Deus.
Vivemos numa era em que muita pessoas se libertaram dessa consciência da proibição do amor, dessa idéia de que existe alguém julgando nossos atos como pecaminosos, bons ou maus, e mesmo com a idéia do juízo final. Eu acho, ao contrário, que o amor traz a idéia do final do juízo. Se existe um deus, ele tem que ser sem juízo, amoroso e libidinoso. Em “Mystérios Gozosos”, peça do Oswald de Andrade (“O Rei da Vela”), que celebra a sexualidade, Cristo aparece e um vendedor fala para ele: “Jesus, paz e amor”, e ele diz, “amor nada: libido”, que é a energia do amor.
E no teatro isso é fundamental, porque essa energia circula por seu corpo todo, para você criar e pensar, sua cabeça tem que estar erotizada, para seu corpo se movimentar, para você falar. Toda a origem do teatro é erótica e amorosa. Estudando Dionísio, a gente foi ao encontro disso, e foi uma bênção, só que Freud dizia que era uma coisa terrível, porque a civilização não ia admitir isso, que a civilização era do mal-estar, mas Oswald dizia o contrário, que esse é fermento de uma transformação da civilização, como depois compreendeu o (Herbert) Marcuse.
Aplauso - Você disse uma vez que o seu teatro é, na verdade, uma conversa de homem para homem, conversa franca, uma troca de idéias...
Zé Celso - Não, não é uma troca de idéias, mas sim de energia. É uma troca libidinosa, uma tentativa de transmitir potência, porque eu acho que o grande fato do teatro, de você reunir pessoas, é mostrar que existe uma potência erótica, sexual, que permite você criar não somente filhos biológicos, mas gerar, socialmente, vida, obra de arte e encontros amorosos, amizades, amores, paixões. A paixão é a força-motriz da história. Apesar de vivermos numa época em que é quase insuportável assistir televisão, em que só se fala em dinheiro, é uma coisa nada libidinosa, uma coisa que brocha. O amor libido, paixão, mais do que a economia, é o que move a história.
Aplauso - Então quem chegou a dizer que a história havia acabado errou, não é? Por que se o que move a história é a paixão...
Zé Celso - Essa história de que a história acabou vem no sentido de que chegamos a uma dominação imperial do mundo, mas essa dominação não se estabiliza, ela tem uma visão única, totalitária do homem, da sociedade, da democracia, da família, das drogas, de tudo, e abriga uma porcentagem mínima da população, enquanto a maior parte da população cria uma biodiversidade enorme. A história retorna, eu sou como Nietzsche, por exemplo, Canudos retorna, mas sempre retorna de maneira diferente, não retorna como farsa ou tragédia, mas sim porque a vida tem esse aspecto do eterno-retorno, as coisas vão se modificando, mas a vida é a vida, tem uma visão histórica de que a vida evolui para algum ponto, mas eu acho que não é isso. Eu sou anti-messiânico. Os verdadeiros messiânicos são aqueles que adiam a vida presente para um outro momento ideal, que existiria, que seria exatamente o fim da história. A vida não pára. Estamos aqui, nesta entrevista, neste teatro, aqui está tudo, é o eterno presente, é o que interessa, este momento, é o máximo que você pode tirar deste momento. Daqui a pouco vai ter um ensaio, dependendo do que acontecer nele, influi no espetáculo, você depois desta entrevista se transforma, e a gente vai vivendo nossa história, mas isso não quer dizer que leve para um progresso ou regresso, é a história, que você pode ver como uma novela, individual, ou como um capítulo da vida da sociedade, ou como uma experiência em que você tem toda a sociedade dentro de você. Você tem tudo dentro do seu corpo, e assume tudo que está no seu corpo. Cada vez que você se apaixona você se renova inteiro, como se fosse uma cultura nova. E praticamente todos os trabalhos que eu fiz aqui eu sempre estive apaixonado.
Aplauso - Num texto recente, você diz que “vai ser preciso um movimento de orgulho da cultura e do teatro, como o movimento negro, feminista, gay, ecológico, dos Sem Teto e dos Sem Terra para não permanecermos nessa insensibilidade fascista”, a respeito da falta de estímulo para a cultura no Brasil. O que você sugeriria para superar os efeitos do que você chama “ditadura econômica” em nossa esfera cultural?
Zé Celso - A primeira coisa é você tomar consciência dela dentro de você, porque ela é muito forte dentro de nós, inclusive artistas. A ditadura econômica é forte, você só ouve falar em dinheiro, na televisão, nos jornais. Você encontra as pessoas e uma hora elas não estão com dinheiro para pegar ônibus para ir ao ensaio, ou para comer, ou os que estão com muito dinheiro estão investindo não sei onde. E isso é uma cultura que está obcecando e alienando as pessoas, tirando completamente cada um de si mesmo. Os políticos, na sua maioria, você vê que só tem gente de classe média para cima, não tem representante popular, e essas pessoas todas, peruas ou mauricinhos, são absolutamente colonizados pela cultura da visão única de homem, seja ela no centro ou na esquerda, uma cultura dominante do império americano.
Não sou contra os americanos, porque adoro, por exemplo, o Tenessee Williams, muita coisa americana, mas essa cultura imperial, como a romana fez, coloniza também os políticos brasileiros, marqueteiros, as empresas, então há uma cegueira absoluta. Esse novo movimento cultural é quase uma redescoberta do poder humano, tanto individual quanto coletivo. Eu acho que esses movimentos todos são muito importantes, mas acho necessário também um movimento de recuperação do poder da pessoa humana, que está exatamente na cultura, a educação é extremamente importante, mas você pode ser educado dentro dum parâmetro completamente domesticado. A educação pode ser desastrosa se não é acompanhada pela cultura, em que você tem a experiência da dúvida, da liberdade, da crítica, da não-generalidade das coisas, da especificidade das coisas, e sobretudo da fidelidade que você tem ao seu próprio gozo, porque com a dominação econômica e com a exclusão, as pessoas são obrigadas a abdicar daquilo que elas gostam, que elas gozam, para fazer aquilo que elas têm que fazer para ganhar dinheiro.
Aplauso - No Oficina vocês trabalham por prazer?
Zé Celso - Poucas pessoas trabalham por prazer. Nós, aqui nesse teatro, trabalhamos por prazer, mas nós pagamos um preço caríssimo por isso, pois fogem investimentos e tudo, e esse trabalho que é feito por prazer é extremamente produtivo, produz valor real. “Os Sertões”, por exemplo, este espaço cênico e tudo o que já produzimos, os DVDs com nossas peças, são riquezas, mas barrada por um tipo de submissão de toda a produção cultural à determinação do marketing das empresas, da própria imagem das empresas, a dominação das marcas, que tem por objetivo ver o público, o povo, a pessoa como consumo. Mas a cultura revela outras possibilidades e desperta a imaginação para se encontrar soluções.
Aqui no Oficina estamos com 90 pessoas, nós fazemos coisas de um irrealismo econômico absoluto, mas ao mesmo tempo é de uma importância cultural imensa, a gente está formando muita gente aqui e esse trabalho tem um valor econômico enorme, tanto que estamos sendo chamados para a Alemanha, Bélgica, França, é um trabalho de exportação maravilhoso, além de ser um trabalho que o público adora,. O público vem e a gente cobra preços baratos, porque a burguesia realmente tem receio, medo desse teatro, tem bode com esse teatro, porque acha desconfortável e toca em tabus. Como Antônio Ermírio de Moraes, que diz que eu afastei as famílias do teatro depois de “Roda Viva”, quer dizer, ter essa visão do teatro como um serviço para a burguesia.
Aplauso - Por que tanta gente diz que seu teatro é agressivo?
Zé Celso - Porque as pessoas consideram agressiva a vida sem a casca da hipocrisia. A vida é agressiva, nascer exige uma agressão, e talvez pelo excesso da delicadeza e do amor, porque uma coisa agressiva para mim é essa cultura do “tchau-tchau”, essa frieza, e talvez porque a gente é muito receptivo, a pessoa que é muito encouraçada se sente agredida. O povo de São Paulo é duro, principalmente a burguesia paulista, é tudo careta, está dentro de uma casca e de uma máscara absoluta de hipocrisia, então ela não quer ser tocada, pois se tocar aquilo desmancha e desmorona o botox, tudo desmorona. Uma pessoa que tem uma visão econômica avançada investiria muito no teatro, porque este teatro, com um mínimo de investimento, que ele não tem nenhum, se tornaria algo muito forte.
Nós temos o teatro de estádio aqui, o Oficina tombado, temos condições de fazer uma série de escolas de formação de teatro, que trabalha o circo, o corpo, as religiões africanas e indígenas, que cultuam o corpo, que trabalha acrobacia, a cabeça, a filosofia, o erotismo, a ioga, a gente pode fazer aqui uma coisa maravilhosa, uma universidade de teatro. Nossa cultura aqui é muito forte, a cultura mercantil é muito fraca, se sustenta à base da publicidade, da grana que rola, agora a cultura que existe aqui vai ficar, vai permanecer, mesmo porque o Oficina percorreu os pontos mais fortes do teatro, o teatro japonês, o elisabetano, em Shakespeare, o grego, em “As Bacantes”, o Brasil, em “Os Sertões”, o teatro brasileiro, em “Cacilda!”.
E com o trabalho social que a gente realiza hoje a gente vê como isso é acertado, se a Febem trabalhasse como nós trabalhamos, seria outra coisa. Existe muito preconceito com a maneira que a gente trabalha, mas a gente trabalha dentro de um pensamento contemporâneo, complexo, numa realidade complexa, e valorizando muito a vida e o amor livre, porque a arte e a cultua vêm do amor livre e do cuidado que se deve ter com o amor. Ela existiu no teatro shakespeariano, nos Índios, na antropofagia, o Oficina é uma recriação no tempo de coisas muito arcaicas. A gente está fazendo uma espécie de antropofagia, com a experiência concreta do que se vive no mundo, ao lado do Minhocão, vizinho do Silvio Santos, num país que passou por uma ditadura muito forte, e com uma nova geração despolitizada.
Aplauso - Por que você acha a geração atual despolitizada?
Zé Celso - O Oficina passou a existir quando encontrou uma geração de jovens revolucionários que o fizeram, agora, o MST e os sem-teto são mais aliados da gente nesse sentido. Mas os jovens de hoje vêm aqui, se chocam com o que descobrem aqui, gostam, mas não sabem decifrar ainda. A juventude passou por um processo de desapoderamento de si mesma, ela passou a se encarar como uma fase da vida, que depois passa visando sempre o futuro. A politização para mim é quando você se descobre eternamente poderoso, eternamente criança, jovem, mesmo na velhice, você ser capaz de estar vivo e interferindo nas estruturas que tentam te segurar. A minha geração foi muito legal porque foi chutando os limites, de idade, do vestuário, de sexualidade, alimentação, e a juventude agora está com a cabeça muito feita pelo capitalismo, a coisa de ir atrás do emprego e pronto, de ser fiel a uma imagem, seja uma imagem fashion, tanto que a carreira mais disputada é a de modelo.
Aplauso - Mas o Oficina continua chutando os limites até hoje, é um espaço de crítica permanente. Em “Os Sertões”, por exemplo, você critica um monte de coisas que nem passavam pela cabeça do Euclides da Cunha.
Zé Celso - A vida é chutar os limites. Na época do Euclides, ele fazia as críticas da época dele, no momento em que você refaz o livro, os próprios temas dele trazem outras possibilidades o que ele viu, fundamentalmente, que é o que continua, esses dois Brasis: o de minoria, que se alimenta bem, e o da maioria, que vive economicamente muito mal. Dentro desse país desigual, ele descobriu inclusive que aqueles que estão fora, excluídos, são fortes, encontram possibilidades de sobrevivência, que muitas vezes aqueles que dominam, que estão atrás dos canhões e dos bancos, são muito mais fracos. Eu gosto muito disso no Euclides, ele é muito nietzscheano: a dominação é feita pelos fracos, através das armas, do dinheiro, e da adaptação a uma vida mediana, medíocre. Agora, os fortes, as pessoas que querem viver intensamente a vida, arriscam mais, portanto perdem mais, mas, quando ganham, ganham o gosto da vida.
Aplauso - E quais os planos para “Os Sertões”? Está de pé a idéia de montar o espetáculo inteiro no terreno onde Canudos existiu?
Zé Celso - Está, não só para Canudos, como para o exterior, e aqui para São Paulo mesmo. Mas a gente está fazendo um trabalho que é como um ensaio, montando peça por peça, tirando de cartaz, mesmo quando está um sucesso, para poder seguir a outra, para quando estiverem todas juntas, a gente estudar a maneira de sintetizar. Depois da estréia de “O Homem – da revolta ao trans-homem”, em dezembro, a gente tira férias, e volta em maio para fazer “A Terra”, “O Homem” 1 e 2, enquanto eu e uma equipe escrevemos “A Luta”. Aí a gente vai para a Alemanha, Bélgica e talvez França, volta e começa a fazer “A Luta”. Da França veio uma proposta absurda de fazer tudo em 24 horas, mas é que eles não sabem que é o mesmo elenco em todas as peças. Isso é uma coisa que nós estamos descobrindo ainda, como fazer, como ganhar energia, porque quando você for fazer tudo, você vai ter que ter uma cena do almoço, depois cenas de dormir, cenas de acordar, de fazer exercício com o público, para renovar energias. A gente não sabe como vai ser, mas ainda estamos no meio da viagem.
Sobre o Rei da Vela de Oswald de Andrade
ENTREVISTA DE JOSÉ CELSO PARA O PROGRAMA DO FESTIVAL DE BOBIGNY, FRANÇA
Por que você decidiu montar O Rei da Vela?
Porque estávamos, depois do golpe de 64, perdidos, sabendo que o que tinha sido pensado antes não era mais o mesmo. O país tinha entrado em outra e era preciso descobrir o que estava acontecendo. Pedimos a dramaturgos, cineastas, estilistas, artistas plásticos, para nos enviarem peças, curta-metragens, vestidos, trajes que sintomatizassem essa grande mudança que havia no ar, aliás, em todo mundo não somente no Brasil, e iríamos fazer um espetáculo com essas contribuições todas. Mas nada que vinha nos revelava nada. Até que uma leitura em voz alta do Rei da Vela feita por Renato Borghi num apartamento da Vieira Souto em Ipanema para um grupo resumido de amigos, revelou a potência inclusive retórica do texto que procurávamos. Estava ali. Havia sido escrito de 1933 a 1937, nunca tinha sido montado e iluminava todo momento que estávamos passando. Eu fui para a casa do filho de Oswald, Nonê, com sua primeira mulher, uma francesa, e me atirei no Baú onde estava toda a obra do pai. Li tudo. Virei. Em um mês e meio montamos a peça, ela já estava em nós. E foi a maior revolução cultural que o teatro fez na história do Brasil pelo menos. Pois não ficou só no Teatro, se alastrou como peste no movimento tropicalista que hoje se alastra no movimento mix, no mundo inteiro. Caetano Veloso e Gilberto Gil, são seus divulgadores no mundo, mas cada vez mais aparecem estudiosos que querem saber de donde vem essa grandeza que é deles mas também da libido cultural que a cultura brasileira tem a dar ao mundo e que tem em Oswald sua maior antena.
O que você aprendeu com a montagem de O Rei da Vela?
Que tudo é possível em teatro e na vida. Que a arte tem poder, valor. Oswald escreveu um de seus primeiros livros de poesias, bem pequenininho, com o titulo parodiando as “Indústrias Reunidas Matarazzo: “POESIAS REUNIDAS O.A.” e dizia que suas poesias eram mais poderosas do que as mega indústrias de São Paulo de então. Eu acredito inteiramente. Por isso sua poesia nos faz derrubar paredes, construir teatros e agora se encaminha para o poder maior. O Oficina é cercado de todos os lados por prédios de um magnata da TV, um grande artista animador que foi um camelô: Silvio Santos. Todo o Bixiga quase é propriedade do seu grupo SS – Grupo Silvio Santos. Depois de 25 anos de luta, vamos nos aliar e construir o teatro de Estádio sonhado por Oswald. Quando falo em poder falo em Poder de Presença Humana diante da Presença do Poder Maquínico. Poder das máquinas de desejo como as do Teatro Oficina diante das máquinas castradoras e de especulação do capitalismo. Oswald misturou valores do erudito e do popular, do brega do cafona e do requintado, do político e do alienado, da retórica mais rigorosa e sublime a demagogia, do baixo calão, da eloqüência da vulgaridade, sem perder grandiosa Poesia de toda a vida . Um Maiakoviski muito mais engraçado .
Qual foi a repercussão cultural e artística de O Rei da Vela?
A de catalisadora de uma Revolução Cultural. Pela primeira vez viam-se as figuras dos quadros modernos, da literatura, da música, incorporadas, num corpo de atriz ou ator, na cena, na cenografia, cenografia paródica de Helio Eichbauer, e de seus figurinos, trazendo nos seus três atos cada qual um estilo: ópera, cubismo, teatro de revista, o visual mais marcante do Tropicalismo. Foi para o Cinema, para Moda, para a Luta Armada, para o desbunde, para tudo. Redescobria-se um Brazil, que apesar de colonizado, explorado, devorava seus dominadores e trazia intacta na vida de seu povo o dionisismo, a antropofagia, o carnaval da Grécia do Brasil. Essa revolução continua até hoje, mas soterrada outra vez pelo AI 5, mas que agora no cinqüentenário da morte de Oswald, é retomada, assim como o embrião castrado do 68 no mundo inteiro, que continuou por exemplo aqui no Oficina a ser sempre estudado, amadurecido e vivido sempre com a eternidade do seu aqui agora.
O que você descobriu culturalmente com O Rei da Vela?
Que a Cultura é o fator de maior riqueza e poder do Brasil e que deve dirigir a linha do Banco Central. Felizmente nesse momento nós temos um Oswaldiano no Ministerio da Cutura: Gilberto Gil, juntamente com Celso Amorim nas relações exteriores, são as duas pessoas mais carismáticas e práticas do Governo Lula. Forte no sentido da força da presença transhumana que vale tudo, e que o capitalismo nesta fase hegemônica despreza até na figura humana do próprio capitalista. Seu maior adversário não é a ONG terrorista Al Kaeda, mas a própria vida que não sabe mais nem capitalizar e que joga fora, exclui, ignora ,extermina.
Qual a diferença entre a peça e o filme O Rei da Vela?
Antes de Noilton Nunes e eu partirmos para a montagem do Rei da Vela, nós tiramos um master com todo material filmado e deixamos pré-montado o primeiro, o segundo e o terceiro ato da peça tal como foi montada no Teatro. Hoje há muito interesse em se conhecer a versão teatral que foi extremamente bem filmada por Carlos Alberto Hebert e Rogerio Noel, falecido,com som direto muito bem feito por um Seu Riva, também falecido. Nossa montagem, minha e de Noilton, começa pelo fim da peça e numa montagem não linear fomos ao mesmo tempo que ,juntando todo o material filmado em 1971 - parte no Teatro João Caetano durante uma temporada da peça no Rio e parte em externas, na Semana de Páscoa deste mesmo ano inserindo a própria luta em torno da preservação do filme e do que ele significava como link entre o trabalho passado e o futuro. Tivemos no Oficina uma coisa rara. Morremos uma época totalmente, como Grupo visível, vivendo uma vida subterrânea louca, criativa, mas no completo ostracismo, mortos. Depois ressuscitamos mais fortes do que no primeiro nascimento. O Rei da Vela foi o elo de ligação entre essas duas vidas. Ao mesmo tempo Noilton tem até hoje lutado para fazer um filme sobre Euclides da Cunha na Amazônia, “Paz” na época o projeto chamava-se “Sem Fronteiras”. Ele como eu tinha material de família feito pelos pais e tinha de uma Tragédia: a morte do pai, da mãe, do irmão, num desastre automobilístico. Misturamos nossas paixões e energias e montamos uma mandala apaixonada, por tudo que se passava entre nós e por tudo que cada um de seu lado tinha vivido. Demos nossas vidas, misturamos no filme os dos nossos pais, nossos desejos, tudo ao O Rei da Vela pra que ele tivesse a vida vivida vinda da nossa paixão pelo cinema, por nos mesmos, pelo Brasil que começava a sair da ditadura. Acho que o filme a cada ano que passa é mais rico, porque foi tecido na montagem com rigor, liberdade e inspiração. As vezes chorávamos muito na moviola. É uma tapeçaria de uma ligação muito forte numa época difícil do Brasil em que Abelardo II subia ao poder na abertura lenta, gradual e restrita e o povo continuava na Jaula, sob o domínio de Mr. Jones. Foi proibido pela censura, Liberado para o exterior. Foi para O Festival de Berlim. Teve uma exibição suntuosa na Cinemateca de Paris. Foi para a Índia, e muitos outros países, mas nunca teve um lançamento normal, comercial aqui no Brasil. Quando o filme ficou pronto a Embrafilme estava muito empobrecida a ponto de fechar como distribuidora. Conseguimos com muito custo um lançamento no Rio. Pai Gilberto, um pai de santo, nos apoiava e nos orientava a fazer um trabalho para Exú pondo todo dia na Embrafilme um despacho na portaria. Até que cedessem. E cederam. Concordaram em começar a pensar em distribuir. Na estréia do filme organizamos um Bori, uma refeição de candomblé em que se comem todos os deuses. Pai Gilberto preparou para 300 pessoas. A comida fica no chão em folhas de bananeira e palmeira. Um office boy do Oficina entusiasmou-se muito e soltou um rojão que explodiu um carro Volkswagen estacionado na porta. Fomos todos presos no cinema. Uma parte do publico ficou de dentro e outra de fora e nós os diretores fomos terminar a estréia na delegacia de Copacabana. Mas o filme foi exibido muitas vezes e cada vez com mais sucesso. No dia do cinqüentenário de Oswald ele foi exibido no CINE SESC em São Paulo com uma cópia que tenho há 22 anos, com legendas em inglês e foi um arrebatamento. Agora vamos lançá-lo em DVD.
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