quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

2 - NOTAS PARA UMA DEFINIÇÃO DE CINEMA REVOLUCIONÁRIO- ALFREDO RUBINATO- Série Cinema Anarquista

A Greve, de Sergei Eisenstein

Notas para uma Definição de Cinema Revolucionário
por Alfredo Rubinato


Desde o advento do cinema soviético, com a vitória da revolução socialista, as possibilidades de um cinema de expressão revolucionária começaram a ser seriamente discutidas. Através, sobretudo, dos cineastas Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, tornou-se palpável a concepção de um cinema não apenas revolucionário em termos de conteúdo, mas revolucionário também em seu aspecto formal, uma arte revolucionária na amplitude máxima de seus meios de formulação. A mesma atitude pode ser encontrada nas vanguardas literárias soviéticas, em poetas como Maiakovsky, Klebhnikov ou Krutchonik, bem como nas artes plásticas, com Malevitch, Lissitzky, Rodchenko, Tatlin e outros, e seria a característica determinante da cultura soviética nos anos 20, antes do advento do stalinismo e da ditadura do realismo socialista nas artes com Zdanov.
Eisenstein preconizou uma montagem dialética, que se inspirou em fontes tão diversas como o marxismo, o teatro Nõ japonês e os ideogramas. A concepção dialética de montagem advoga o princípio da justaposição de dois planos que criam um novo significado, que não é expresso em termos visuais, mas sim em termos conceituais na mente do espectador. Pode-se citar, como exemplo notável desta concepção, a memorável seqüência de A Greve (Stachka — 1924), onde são justapostos planos consecutivos que mostram cenas de um matadouro de bovinos e a repressão da polícia tzarista aos grevistas. O significado almejado não é exibido plasticamente na tela, mas de obtido de modo abstrato no entendimento. É importante verificar que não há, pois, um objetivo meramente didático, pois o significado não é apresentado como um realidade acabada, pronta para ser assimilada, mas sim como uma proposta que deve ser discutida pelo espectador. Trata-se de um cinema que desencadeia no público a formação da consciência revolucionária, num processo que exige uma participação ativa daquele que o contempla, que é chamado a refletir sobre o conteúdo expresso na tela. Forma-se portanto a seguinte equação: conteúdo revolucionário + forma revolucionária = ARTE REVOLUCIONÁRIA.


Para Vertov, o caráter revolucionário do cinema se resolve na montagem. O cinema de Vertov proclama o primado da câmara sobre o olho humano. A câmara é o instrumento que organiza a realidade numa perspectiva coerente. É um cinema que recusa toda forma de encenação, se afirmando como uma interpretação revolucionária da realidade. Nesse sentido, considera a ficcionalização da realidade como uma forma de ilusão, de mistificação. O cinema se transforma num instrumento dialético não apenas de interpretação, mas de transformação revolucionária da humanidade. É o olho mecânico — KINOGLAZ — que organiza a realidade, que força o espectador, antes passivo, a converter-se em sujeito histórico de sua própria libertação.

O cinema revolucionário é aquele que, portanto, responde de maneira transformadora e libertária às questões do contexto histórico que enfrenta, não apenas na perspectiva das idéias, mas também da estética, da forma. É, em sua essência, o mesmo trabalho que um Brecht, um Heiner Müller, irão desenvolver no teatro, estimulando a sensibilidade e a reflexão crítica do público. É importante enfatizar que a arte revolucionária, quando destituída de uma estética revolucionária que acompanhe suas idéias, logo degenera em arte didática, em arte falsamente "popular", e o que é mais grave, em objeto de manipulação política de governos autoritários, como no célebre caso do realismo socialista stalinista. Sem a vanguarda formal, pois, a arte revolucionária perde o seu conteúdo transformador, pois é manipulada de maneira a se converter em instrumento de mera doutrinação; e, sem as idéias revolucionárias, a vanguarda formal perde sua capacidade de transformação, perdendo-se em estetizações estéreis, em solilóquios na torre de marfim.


Se observarmos os grandes artífices do cinema revolucionário pós-soviético — Godard, Gorin, Glauber, Buñuel, Chris Marker, Solanas, Pasolini, Sanjinez e outros mais — verificaremos que são artistas que utilizaram um suporte formal sumamente inovador e transgressivo para veicular suas idéias revolucionárias, inclusive, em muitos casos, rejeitando as soluções estéticas preconizadas pelos mestres soviéticos. Glauber Rocha, que começou, de um certo modo, pagando tributo a Eisenstein e ao neo-realismo italiano em seus primeiros esforços, irá, no decorrer de sua carreira, se afastar cada vez mais dos modelos europeus em direção a uma estética totalmente original, fusão de alegoria barroca, pajelança e cristianismo libertário, num processo que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas do marxismo em direção a um conceito de revolução messiânica, que se processa num êxtase místico revolucionário. Godard, por seu turno, radicaliza a perspectiva de um cinema filosófico e alicerçado em conceitos, expressando, todavia, tais reflexões numa narração cada vez mais descontínua e caótica, que rompe com a linearidade ideológica colonizante do cinema convencional. A desconstrução narrativa impede que o espectador aceite passivamente o que está sendo apresentado, forçando-o a refletir sobre o que vê e ouve. A idéia é justamente provocar desconforto no público, perturbando-o em suas convicções mais firmes, instalando o conflito e desmantelando o consenso.

Pode-se dizer que uma estética revolucionária tem a função de despertar o espectador para o conteúdo das idéias que estão sendo discutidas no filme. É como se fosse um rastilho, um detonador de consciências, que implode a muralha de preconceitos que o público já traz dentro de si. Não é difícil verificar como a narrativa linear é um instrumento de doutrinação ideológica, conduzindo o espectador, através do encadeamento linear de idéias, a uma determinada conclusão previamente determinada e controlada pelos autores da obra. Um cineasta revolucionário, ao contrário, não consegue, e nem tampouco deseja, controlar a interpretação de sua obra, pois apresenta suas idéias de um modo não-linear, não-didático, forçando o espectador ao debate, evitando de maneira resoluta o adestramento ideológico.

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