Aos atores
Jacques Copeau
"Tenho uma elevada idéia do talento de um grande ator, escreveu Diderot com melancolia, esse homem é raro..."
Tanto mais raro, com efeito - e tanto maior quando surge - pelo fato de o ofício que ele exerce ameaçar tanto a pessoa humana, sua integridade, sua elevação.
Shakespeare disse (Hamlet, ato II, cena II) que a natureza do ator vai contra a natureza, que ela é horrível e ao mesmo tempo admirável. Ele o disse em uma só palavra: Monstrous.
O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.
O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que suas outras aparições dos infernos, é, em um ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico.
O ator expõe-se a perder sua face e a perder sua alma. Ele as encontra falseadas, ou não as encontra mais, no momento em que necessita delas para retornar a si mesmo. Seus traços não são recuperados, seu jeito e seu verbo permanecem excessivamente desligados, destacados, como que separados da alma. A própria alma, com muita freqüência alterada pela representação, excessivamente arrebatada, excessivamente ferida pelas paixões imaginárias, contraída pelos hábitos artificiais, pisa em falso sobre o real. Toda a pessoa do ator guarda, neste mundo humano, os estigmas de um estranho comércio. Ele tem o ar, quando retorna ao nosso meio, de quem saiu de um outro mundo.
A profissão do ator tende a desnaturá-lo. Ela é conseqüência de um instinto que leva o homem a desertar para viver sob as aparências. É portanto uma profissão que os homens desprezam. Consideram-na perigosa. Tacham-na de imoralidade, e condenam-na por seu mistério. Essa atitude farisaica, que não foi eliminada pelas mais extremas tolerâncias sociais, reflete uma idéia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: ele representa sua humanidade e brinca com ela. Seus sentidos e sua razão, seu corpo e sua alma imortal não lhe foram dados para que os utilize assim, como um instrumento, forçando-os e desviando-os em todos os sentidos.
Se o ator é um artista, ele é de todos os artistas o que em maior grau sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria e instrumento, sua criação é ele mesmo.
É aí que habita o mistério: que um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marionete...
... Há alguma coisa no ator que depende daquilo que ele é, que atesta sua autenticidade, que se nos impõe por sua maneira, sem fraude possível, e desde que ele surge em cena, antes que tenha aberto a boca, por sua simples presença. É essa alguma coisa que, em nosso tempo, distinguia entre todas uma atriz como a Duse. É uma qualidade da natureza, que a arte pode servir para iluminar, mas que não poderia imitar...
Que o ator nem sempre sinta o que representa, que ele represente o texto sem representar a personagem nem a situação, que ele consiga representar sem erro aparente, ou seja, mais ou menos justa e corretamente, mesmo que não seja tocado - isto é verdade. É seu fracasso. É a tendência que seguem os preguiçosos e os medíocres. É o martírio a que os melhores expõem-se todos os dias, pois nenhum deles jamais sabe se não sentir-se-á subitamente devastado pela secura em um desses horríveis momentos em que ele se ouve falando, em que se vê representar, em que julga a si mesmo e, quanto mais se julga, mais se evade.
Diderot dirá que "ele está comovido sem nada sentir".
Se ele está visivelmente "comovido" é com efeito porque ele não sentia nada. Ele estava por sentir.
A idéia de uma sensibilidade que possui a si mesma, de uma espontaneidade que se busca, de uma sinceridade que se trabalha provoca facilmente o sorriso. Que não se sorria depressa demais. Que se reflita antes sobre a natureza de um ofício em que há tanta matéria a trabalhar. A luta do escultor com a argila que modela não é nada, se a comparamos com as resistências que opõem ao ator seu corpo, seu sangue, seus membros, sua boca e todos os seus órgãos.
Imagino um ator diante do texto de um papel que ele ama e compreende, cujo caráter convém à sua natureza, cujo estilo adapta-se aos seus meios. Ele sorri de satisfação. Esse papel, ele o decifra sem esforço. A primeira leitura que faz surpreende por sua justeza. Tudo é magistralmente indicado, não somente na intenção geral, mas até nas pequenas nuances. E o autor alegra-se por ter encontrado o intérprete ideal que vai levar sua obra às nuvens: "Espere, diz-lhe o ator, ainda não o sou." é que ele não se engana com essa primeira tomada de posse em que apenas o espírito fez sua parte.
Eis que ele se põe a trabalhar. Repete o texto à meia-voz, com precaução, como se temesse espantar alguma coisa dentro de si mesmo. Essas repetições confidenciais ainda guardam a qualidade da leitura. As nuances da emoção ainda são perceptíveis para alguns auditores privilegiados. O ator, agora, possui seu papel, de memória. É o momento em que começa a possuir um pouco menos sua personagem. Ele vê o que deve ser feito. Compõe e desenvolve. Realiza os encadeamentos, as transições. Racionaliza seus movimentos, classifica seus gestos, conserta suas entonações. Olha-se e ouve-se. Destaca-se. Julga-se. Parece não dar nada de si mesmo. Por vezes interrompe-se em seu trabalho para dizer: não sinto isto. Propõe, freqüentemente com razão, uma modificação no texto, uma inversão na frase, um retoque na encenação que lhe permitiria, acredita, sentir melhor. Procura meios de colocar-se em situação, em estado de sentir: um ponto de partida, que por vezes estará na mímica, ou no diapasão da voz, em uma descontração particular, em uma simples respiração... Esforça-se por encontrar uma harmonia. Arma suas redes. Organiza a captura de alguma coisa que compreendeu e pressentiu há muito tempo, mas que lhe permanece exterior, que ainda não entrou nele, não alojou-se nele... Escuta com um ouvido distraído as indicações essenciais que lhe são dadas, do proscênio, sobre as emoções da personagem, seus móveis, todo seu mecanismo psicológico. E entretanto sua atenção parece absorvida por detalhes irrisórios.
É então que o autor, com uma polidez excessiva, pega pelo braço seu ilustre intérprete e diz-lhe ao ouvido: "Mas, caro amigo, por que não mantém o que fez no primeiro dia? Estava perfeito. Seja você mesmo."
O ator não é mais ele mesmo. E ainda não é "o outro". O que fez no primeiro dia escapa-lhe à medida em que se põe na situação de representar seu papel. Precisou renunciar ao frescor, ao natural, às nuances, e a todo o prazer que lhe causava sua animação, para realizar o trabalho difícil, ingrato, minucioso que consiste em fazer sair de uma realidade literária e psicológica uma realidade de teatro. Precisou ordenar, dominar, assimilar todos os procedimentos de metamorfose que são ao mesmo tempo aquilo que o separa de seu papel e aquilo que a ele o conduz. É somente quando tiver realizado esse estudo de si mesmo em relação à personagem dada, articulado todos os seus meios, exercido todo seu ser em servir às idéias que formou e aos sentimentos para os quais prepara o caminho em seu corpo, em seus nervos, em seu espírito, até a profundeza de seu corpo, é então que reaver-se-á, transformado, e que tentará doar-se.
Enfim o ator preenche seu papel. Não encontra nada de fútil nem de artificial. Poderia vivê-lo sem palavras. Confronta sua sinceridade com esse belo "silêncio interior" de que falava Eleonora Duse.
Eis o homem exposto no teatro, oferecido em espetáculo, posto em julgamento. Ele entra em um outro mundo. Assume essa responsabilidade. Sacrifica-lhe todo um mundo real: inquietação, mal-estar, pesar, sofrimento - ou antes, é libertado dele. Mas a atitude de seus comparsas em cena, uma reação da sala, uma desordem nos bastidores, o brilho de um refletor, a dobra de um tapete, um erro da administração, um esquecimento de acessórios, um acidente no figurino, uma falha da memória, um lapso da boca, uma queda passageira de sua força vital - tudo o ameaça, tudo está contra ele que, sozinho, tem que tudo dominar; tudo pode a cada instante interpor-se entre sua sinceridade, que nada poderia forçar quando se esquiva, e o jogo que ele tem que jogar seja lá como for. Tudo pode despojá-lo do que ele pensava ter dominado através de um longo trabalho, separá-lo da personagem que havia composto de sua substância mas que pode sofrer, como esta, alterações profundas e repentinas.
A cortina sobe e o surpreende... seu primeiro ataque se dá um pouco involuntariamente... ei-lo desunido. Eu o vejo torcer a ponta de sua gravata. Deixa um instante de sentir. Bate em retirada. Procura um ponto de apoio. Respira profundamente. Creio que vai se recuperar, porque conhece seu ofício. Você me diz que a perturbação em que o colocaram esses fúteis incidentes prova que ele não sentia nada. Eu acredito que quanto mais um ator é sensível, mais está sujeito a essas vertigens. Mas ele vai voltar a sentir... porque conhece seu ofício.
Suponhamos que não tenha deixado de sentir. Ele atinge sua plenitude. Mas essa própria plenitude, ele precisa medi-la. Ele possui uma medida da sinceridade, como possui uma da técnica. Dir-se-á que o ator não sente nada porque sabe servir-se de sua emoção? Que as lágrimas que correm e esses soluços são vãos porque só estrangulam por um instante a voz do intérprete e não alteram quase nada sua dicção? Não seria antes de admirar, renunciando absolutamente a compreendê-lo, esse admirável instinto, esse dom de natureza e de razão que, há pouco, colocava o ator desconcertado na rota de sua sensibilidade e que agora impede sua emoção de descompor o jogo dramático? Um tal jogo exige uma cabeça "de ferro", como disse Diderot, mas não "de gelo", como ele escreveu antes. Também são necessários nervos flexíveis e resistentes, e operações interiores muito rápidas e muito delicadas.
Contestar ao ator a sensibilidade, por causa de sua presença de espírito, é recusá-la a todo artista que observa as leis de sua arte e não permite jamais que o tumulto das emoções paralise sua alma. O artista reina, com um coração tranqüilo, sobre a desordem de seu ateliê e de seus materiais. Quanto mais a emoção aflui nele e o agita, mais seu cérebro torna-se lúcido. Essa frieza e esse estremecimento são compatíveis, como na febre e na embriaguez.
... "abarcar toda a extensão de um grande papel, dispor nele os claros e escuros, os suaves e os fracos, mostrar-se igual nas passagens tranqüilas e nas passagens agitadas, ser vário nos detalhes, harmonioso e uno no conjunto, e formar em si mesmo um sistema elevado de declamação... É obra de uma cabeça fria, de um profundo julgamento, de um gosto delicado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de memória pouco comum." Diderot tem razão: "tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado" na cabeça do ator. Mas se a sua representação não for mais que a expressão de sua maestria e como que a exposição de um excelente método, ou bem ele descansa na rotina ou bem dissipa-se nos jogos da virtuosidade. O absurdo do "paradoxo" é opor os procedimentos do ofício à liberdade do sentimento e negar, no artista, sua coexistência e simultaniedade.
Para o ator, doar-se é tudo. E para doar-se, é preciso antes possuir-se. Nosso ofício, com a disciplina que supõe, com os reflexos que fixou e comanda, é a própria trama de nossa arte, com a liberdade que exige e as iluminações que encontra. A expressão emotiva surge da expressão justa. A técnica não só não exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. É seu suporte e sua salvaguarda. É graças ao ofício que podemos abandonar-nos, pois é graças a ele que saberemos reencontrar-nos. O estudo e observância dos princípios, um mecanismo infalível, uma memória segura, uma dicção obediente, a respiração regular e os nervos relaxados, a liberdade da cabeça e do estômago proporcionam-nos uma segurança que nos inspira a audácia. A constância nas entonações, nas posições e nos movimentos preserva o frescor, a clareza, a diversidade, a invenção, a igualdade, a renovação. Permite-nos improvisar.
Não é monstruoso que esse ator, em uma ficção, em um sonho de paixão, possa forçar sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto conturbado, a voz entrecortada, e todo os seus gestos adaptando-se em formas à concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?
Hamlet, ato II, cena II.
Shakespeare descreve como ator a tentativa do homem que agita-se ao fazer viver uma personagem inventada... Interpretar é antes de tudo insinuar-se no conhecimento da coisa a representar. É formar um conceito. É em seguida ter o poder de fazer entrar à força sua própria alma nesse conceito: force his soul... to his own conceit. A inteligência, iluminada pela experiência e pelo raciocínio, constrói idéias coerentes e variadas. A sensibilidade as anima e aquece. No interior e nos limites de uma concepção, a alma trabalha-se, e desse trabalho decorre a operação misteriosa, precária, submetida a toda espécie de circunstâncias e de particularidades, que vai revestir com uma exatidão cada vez maior a idéia - o que Diderot denomina: um fantasma - de formas necessárias, de signos tangíveis nos quais o espectador reconhecerá a natureza daquilo que se passa dentro do ator suiting with forms to his conceit... À medida que os signos afirmam-se, em precisão, em acento, em profundidade, à medida que tomam posse do corpo e de seus hábitos, eles estimulam por seu turno os sentimentos interiores que com uma realidade cada vez maior instalam-se na alma do ator, preenchem-na, suplantam-na. É nesse grau do trabalho que germina, amadurece e desenvolve-se uma sinceridade, uma espontaneidade conquistada, adquirida, da qual se pode dizer que age como uma segunda natureza, que inspira por seu lado as reações físicas e dá-lhes a autoridade, a eloqüência, o natural e a liberdade.
[...] E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?
Onde reside o segredo de uma imaginação que coloca o ator em pé de igualdade com os tormentos do príncipe Hamlet ou com as desgraças de édipo, incesto e parricídio?
A esta questão pode-se dar uma resposta. É a de Goethe: "Se eu, disse ele, já não carregasse o mundo em mim por pressentimento, com os olhos abertos permaneceria cego."
1928. (1)
É também natural que o ator, às vezes, entreabrindo a cortina e retirando sua máscara, goste de dirigir-se a seu público para dizer-lhe:
Eis-me aqui como eu sou, um ser humano como vocês. Não estou fora da sociedade. E nosso mundo do teatro, não pensem que seja unicamente esse império artificial cujo espetáculo lhes dá repouso das misérias do seu próprio mundo, esse lugar de festa perpétua, de bem-estar e de facilidade, no qual basta aportar para ser liberado das preocupações e por assim dizer descarregado do peso de nossa condição humana. Nossa vida é dura, implacável e devoradora.
É verdade, por um milagre mais ou menos inexplicável, o jogo teatral às vezes liberta-nos de nós mesmos, faz desaparecerem por algum tempo nossas mais cruéis preocupações e até nossa enfermidades físicas.
Mas é igualmente verdade que esse terrível jogo de nossa profissão seria o mais vil de todos se chegasse a deformar-nos, a desnaturar-nos de tal forma que o homem ordinário, o homem humano, o homem sincero, o homem do mundo ou o homem de um ofício possa dizer de nós, com desconfiança e com um certo desprezo: ah! é um ator!
Libertar o ator de seu fingimento e arrancá-lo de sua especialização degradante, entregá-lo ao mundo, à vida, à cultura, à grande simplicidade humana, fazer dele um homem entre os homens, que seu público ao aplaudi-lo não deixe de estimá-lo e que seja amado ao ser admirado, elevar a profissão de ator - como o fez Molière em seu tempo e como o fez na Rússia o grande Stanislavski - do descrédito bem merecido pelos falsos artistas, recolocá-lo no mais nobre dos planos, dar enfim ao teatro sua dignidade de grande arte e, permitam-se acrescentar, sua missão religiosa que é a de religar entre si os homens de toda espécie, de toda classe, eu ia dizer - e devo dizê-lo aqui - de toda nação, eis o que vem sendo buscado no Vieux Colombier faz dez anos.
1923. (2)
A cena é o instrumento do criador dramático.
Ela é o lugar do drama, não o dos cenários e das máquinas.
Ela pertence aos atores, não aos maquinistas e aos pintores.
Ela deve estar sempre pronta para o ator e para a ação.
As reformas que realizamos, as que ainda realizaremos tendem e resumem-se a isto: pôr um instrumento nas mãos do criador dramático, criar para ele uma cena livre, que ele possa usar livremente, diretamente, com um mínimo de intermediários.
Atualmente, é rigorosamente verdadeiro dizer que o criador dramático é um intruso no teatro, que tudo se opõe à sua concepção, ao seu esforço, à sua própria existência. Ali onde ele é escravo, é necessário que seja o mestre. Pois ele é o único mestre. E, sem ele, o teatro está hoje sem mestre.
1940. (3)
1. Excertos das "Reflexões de um ator sobre o Paradoxo de Diderot" (ed. Plon, 1928).
2. Excerto de um "Discurso ao Público" de J. Copeau, Genebra, 1923. Idem, ibidem.
3. Anotação datada de 1940. Idem, ibidem.
In Registres I - Appels, éditions Gallimard, Paris, 1974, pág. 205-215. Tradução de Roberto Mallet.
Jacques Copeau
"Tenho uma elevada idéia do talento de um grande ator, escreveu Diderot com melancolia, esse homem é raro..."
Tanto mais raro, com efeito - e tanto maior quando surge - pelo fato de o ofício que ele exerce ameaçar tanto a pessoa humana, sua integridade, sua elevação.
Shakespeare disse (Hamlet, ato II, cena II) que a natureza do ator vai contra a natureza, que ela é horrível e ao mesmo tempo admirável. Ele o disse em uma só palavra: Monstrous.
O que é horrível, no ator, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.
O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que suas outras aparições dos infernos, é, em um ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico.
O ator expõe-se a perder sua face e a perder sua alma. Ele as encontra falseadas, ou não as encontra mais, no momento em que necessita delas para retornar a si mesmo. Seus traços não são recuperados, seu jeito e seu verbo permanecem excessivamente desligados, destacados, como que separados da alma. A própria alma, com muita freqüência alterada pela representação, excessivamente arrebatada, excessivamente ferida pelas paixões imaginárias, contraída pelos hábitos artificiais, pisa em falso sobre o real. Toda a pessoa do ator guarda, neste mundo humano, os estigmas de um estranho comércio. Ele tem o ar, quando retorna ao nosso meio, de quem saiu de um outro mundo.
A profissão do ator tende a desnaturá-lo. Ela é conseqüência de um instinto que leva o homem a desertar para viver sob as aparências. É portanto uma profissão que os homens desprezam. Consideram-na perigosa. Tacham-na de imoralidade, e condenam-na por seu mistério. Essa atitude farisaica, que não foi eliminada pelas mais extremas tolerâncias sociais, reflete uma idéia profunda. É que o ator faz uma coisa proibida: ele representa sua humanidade e brinca com ela. Seus sentidos e sua razão, seu corpo e sua alma imortal não lhe foram dados para que os utilize assim, como um instrumento, forçando-os e desviando-os em todos os sentidos.
Se o ator é um artista, ele é de todos os artistas o que em maior grau sacrifica sua pessoa ao ministério que exerce. Ele não pode dar nada se não se dá a si mesmo, não em efígie, mas de corpo e alma, e sem intermediário. Tanto sujeito quanto objeto, causa e fim, matéria e instrumento, sua criação é ele mesmo.
É aí que habita o mistério: que um ser humano possa pensar e tratar a si mesmo como matéria de sua arte, agir sobre si mesmo como sobre um instrumento ao qual ele deve identificar-se sem deixar de distinguir-se, agir e ser o que age ao mesmo tempo, homem natural e marionete...
... Há alguma coisa no ator que depende daquilo que ele é, que atesta sua autenticidade, que se nos impõe por sua maneira, sem fraude possível, e desde que ele surge em cena, antes que tenha aberto a boca, por sua simples presença. É essa alguma coisa que, em nosso tempo, distinguia entre todas uma atriz como a Duse. É uma qualidade da natureza, que a arte pode servir para iluminar, mas que não poderia imitar...
Que o ator nem sempre sinta o que representa, que ele represente o texto sem representar a personagem nem a situação, que ele consiga representar sem erro aparente, ou seja, mais ou menos justa e corretamente, mesmo que não seja tocado - isto é verdade. É seu fracasso. É a tendência que seguem os preguiçosos e os medíocres. É o martírio a que os melhores expõem-se todos os dias, pois nenhum deles jamais sabe se não sentir-se-á subitamente devastado pela secura em um desses horríveis momentos em que ele se ouve falando, em que se vê representar, em que julga a si mesmo e, quanto mais se julga, mais se evade.
Diderot dirá que "ele está comovido sem nada sentir".
Se ele está visivelmente "comovido" é com efeito porque ele não sentia nada. Ele estava por sentir.
A idéia de uma sensibilidade que possui a si mesma, de uma espontaneidade que se busca, de uma sinceridade que se trabalha provoca facilmente o sorriso. Que não se sorria depressa demais. Que se reflita antes sobre a natureza de um ofício em que há tanta matéria a trabalhar. A luta do escultor com a argila que modela não é nada, se a comparamos com as resistências que opõem ao ator seu corpo, seu sangue, seus membros, sua boca e todos os seus órgãos.
Imagino um ator diante do texto de um papel que ele ama e compreende, cujo caráter convém à sua natureza, cujo estilo adapta-se aos seus meios. Ele sorri de satisfação. Esse papel, ele o decifra sem esforço. A primeira leitura que faz surpreende por sua justeza. Tudo é magistralmente indicado, não somente na intenção geral, mas até nas pequenas nuances. E o autor alegra-se por ter encontrado o intérprete ideal que vai levar sua obra às nuvens: "Espere, diz-lhe o ator, ainda não o sou." é que ele não se engana com essa primeira tomada de posse em que apenas o espírito fez sua parte.
Eis que ele se põe a trabalhar. Repete o texto à meia-voz, com precaução, como se temesse espantar alguma coisa dentro de si mesmo. Essas repetições confidenciais ainda guardam a qualidade da leitura. As nuances da emoção ainda são perceptíveis para alguns auditores privilegiados. O ator, agora, possui seu papel, de memória. É o momento em que começa a possuir um pouco menos sua personagem. Ele vê o que deve ser feito. Compõe e desenvolve. Realiza os encadeamentos, as transições. Racionaliza seus movimentos, classifica seus gestos, conserta suas entonações. Olha-se e ouve-se. Destaca-se. Julga-se. Parece não dar nada de si mesmo. Por vezes interrompe-se em seu trabalho para dizer: não sinto isto. Propõe, freqüentemente com razão, uma modificação no texto, uma inversão na frase, um retoque na encenação que lhe permitiria, acredita, sentir melhor. Procura meios de colocar-se em situação, em estado de sentir: um ponto de partida, que por vezes estará na mímica, ou no diapasão da voz, em uma descontração particular, em uma simples respiração... Esforça-se por encontrar uma harmonia. Arma suas redes. Organiza a captura de alguma coisa que compreendeu e pressentiu há muito tempo, mas que lhe permanece exterior, que ainda não entrou nele, não alojou-se nele... Escuta com um ouvido distraído as indicações essenciais que lhe são dadas, do proscênio, sobre as emoções da personagem, seus móveis, todo seu mecanismo psicológico. E entretanto sua atenção parece absorvida por detalhes irrisórios.
É então que o autor, com uma polidez excessiva, pega pelo braço seu ilustre intérprete e diz-lhe ao ouvido: "Mas, caro amigo, por que não mantém o que fez no primeiro dia? Estava perfeito. Seja você mesmo."
O ator não é mais ele mesmo. E ainda não é "o outro". O que fez no primeiro dia escapa-lhe à medida em que se põe na situação de representar seu papel. Precisou renunciar ao frescor, ao natural, às nuances, e a todo o prazer que lhe causava sua animação, para realizar o trabalho difícil, ingrato, minucioso que consiste em fazer sair de uma realidade literária e psicológica uma realidade de teatro. Precisou ordenar, dominar, assimilar todos os procedimentos de metamorfose que são ao mesmo tempo aquilo que o separa de seu papel e aquilo que a ele o conduz. É somente quando tiver realizado esse estudo de si mesmo em relação à personagem dada, articulado todos os seus meios, exercido todo seu ser em servir às idéias que formou e aos sentimentos para os quais prepara o caminho em seu corpo, em seus nervos, em seu espírito, até a profundeza de seu corpo, é então que reaver-se-á, transformado, e que tentará doar-se.
Enfim o ator preenche seu papel. Não encontra nada de fútil nem de artificial. Poderia vivê-lo sem palavras. Confronta sua sinceridade com esse belo "silêncio interior" de que falava Eleonora Duse.
Eis o homem exposto no teatro, oferecido em espetáculo, posto em julgamento. Ele entra em um outro mundo. Assume essa responsabilidade. Sacrifica-lhe todo um mundo real: inquietação, mal-estar, pesar, sofrimento - ou antes, é libertado dele. Mas a atitude de seus comparsas em cena, uma reação da sala, uma desordem nos bastidores, o brilho de um refletor, a dobra de um tapete, um erro da administração, um esquecimento de acessórios, um acidente no figurino, uma falha da memória, um lapso da boca, uma queda passageira de sua força vital - tudo o ameaça, tudo está contra ele que, sozinho, tem que tudo dominar; tudo pode a cada instante interpor-se entre sua sinceridade, que nada poderia forçar quando se esquiva, e o jogo que ele tem que jogar seja lá como for. Tudo pode despojá-lo do que ele pensava ter dominado através de um longo trabalho, separá-lo da personagem que havia composto de sua substância mas que pode sofrer, como esta, alterações profundas e repentinas.
A cortina sobe e o surpreende... seu primeiro ataque se dá um pouco involuntariamente... ei-lo desunido. Eu o vejo torcer a ponta de sua gravata. Deixa um instante de sentir. Bate em retirada. Procura um ponto de apoio. Respira profundamente. Creio que vai se recuperar, porque conhece seu ofício. Você me diz que a perturbação em que o colocaram esses fúteis incidentes prova que ele não sentia nada. Eu acredito que quanto mais um ator é sensível, mais está sujeito a essas vertigens. Mas ele vai voltar a sentir... porque conhece seu ofício.
Suponhamos que não tenha deixado de sentir. Ele atinge sua plenitude. Mas essa própria plenitude, ele precisa medi-la. Ele possui uma medida da sinceridade, como possui uma da técnica. Dir-se-á que o ator não sente nada porque sabe servir-se de sua emoção? Que as lágrimas que correm e esses soluços são vãos porque só estrangulam por um instante a voz do intérprete e não alteram quase nada sua dicção? Não seria antes de admirar, renunciando absolutamente a compreendê-lo, esse admirável instinto, esse dom de natureza e de razão que, há pouco, colocava o ator desconcertado na rota de sua sensibilidade e que agora impede sua emoção de descompor o jogo dramático? Um tal jogo exige uma cabeça "de ferro", como disse Diderot, mas não "de gelo", como ele escreveu antes. Também são necessários nervos flexíveis e resistentes, e operações interiores muito rápidas e muito delicadas.
Contestar ao ator a sensibilidade, por causa de sua presença de espírito, é recusá-la a todo artista que observa as leis de sua arte e não permite jamais que o tumulto das emoções paralise sua alma. O artista reina, com um coração tranqüilo, sobre a desordem de seu ateliê e de seus materiais. Quanto mais a emoção aflui nele e o agita, mais seu cérebro torna-se lúcido. Essa frieza e esse estremecimento são compatíveis, como na febre e na embriaguez.
... "abarcar toda a extensão de um grande papel, dispor nele os claros e escuros, os suaves e os fracos, mostrar-se igual nas passagens tranqüilas e nas passagens agitadas, ser vário nos detalhes, harmonioso e uno no conjunto, e formar em si mesmo um sistema elevado de declamação... É obra de uma cabeça fria, de um profundo julgamento, de um gosto delicado, de um estudo penoso, de uma longa experiência e de uma tenacidade de memória pouco comum." Diderot tem razão: "tudo foi medido, combinado, apreendido, ordenado" na cabeça do ator. Mas se a sua representação não for mais que a expressão de sua maestria e como que a exposição de um excelente método, ou bem ele descansa na rotina ou bem dissipa-se nos jogos da virtuosidade. O absurdo do "paradoxo" é opor os procedimentos do ofício à liberdade do sentimento e negar, no artista, sua coexistência e simultaniedade.
Para o ator, doar-se é tudo. E para doar-se, é preciso antes possuir-se. Nosso ofício, com a disciplina que supõe, com os reflexos que fixou e comanda, é a própria trama de nossa arte, com a liberdade que exige e as iluminações que encontra. A expressão emotiva surge da expressão justa. A técnica não só não exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. É seu suporte e sua salvaguarda. É graças ao ofício que podemos abandonar-nos, pois é graças a ele que saberemos reencontrar-nos. O estudo e observância dos princípios, um mecanismo infalível, uma memória segura, uma dicção obediente, a respiração regular e os nervos relaxados, a liberdade da cabeça e do estômago proporcionam-nos uma segurança que nos inspira a audácia. A constância nas entonações, nas posições e nos movimentos preserva o frescor, a clareza, a diversidade, a invenção, a igualdade, a renovação. Permite-nos improvisar.
Não é monstruoso que esse ator, em uma ficção, em um sonho de paixão, possa forçar sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto conturbado, a voz entrecortada, e todo os seus gestos adaptando-se em formas à concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?
Hamlet, ato II, cena II.
Shakespeare descreve como ator a tentativa do homem que agita-se ao fazer viver uma personagem inventada... Interpretar é antes de tudo insinuar-se no conhecimento da coisa a representar. É formar um conceito. É em seguida ter o poder de fazer entrar à força sua própria alma nesse conceito: force his soul... to his own conceit. A inteligência, iluminada pela experiência e pelo raciocínio, constrói idéias coerentes e variadas. A sensibilidade as anima e aquece. No interior e nos limites de uma concepção, a alma trabalha-se, e desse trabalho decorre a operação misteriosa, precária, submetida a toda espécie de circunstâncias e de particularidades, que vai revestir com uma exatidão cada vez maior a idéia - o que Diderot denomina: um fantasma - de formas necessárias, de signos tangíveis nos quais o espectador reconhecerá a natureza daquilo que se passa dentro do ator suiting with forms to his conceit... À medida que os signos afirmam-se, em precisão, em acento, em profundidade, à medida que tomam posse do corpo e de seus hábitos, eles estimulam por seu turno os sentimentos interiores que com uma realidade cada vez maior instalam-se na alma do ator, preenchem-na, suplantam-na. É nesse grau do trabalho que germina, amadurece e desenvolve-se uma sinceridade, uma espontaneidade conquistada, adquirida, da qual se pode dizer que age como uma segunda natureza, que inspira por seu lado as reações físicas e dá-lhes a autoridade, a eloqüência, o natural e a liberdade.
[...] E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?
Onde reside o segredo de uma imaginação que coloca o ator em pé de igualdade com os tormentos do príncipe Hamlet ou com as desgraças de édipo, incesto e parricídio?
A esta questão pode-se dar uma resposta. É a de Goethe: "Se eu, disse ele, já não carregasse o mundo em mim por pressentimento, com os olhos abertos permaneceria cego."
1928. (1)
É também natural que o ator, às vezes, entreabrindo a cortina e retirando sua máscara, goste de dirigir-se a seu público para dizer-lhe:
Eis-me aqui como eu sou, um ser humano como vocês. Não estou fora da sociedade. E nosso mundo do teatro, não pensem que seja unicamente esse império artificial cujo espetáculo lhes dá repouso das misérias do seu próprio mundo, esse lugar de festa perpétua, de bem-estar e de facilidade, no qual basta aportar para ser liberado das preocupações e por assim dizer descarregado do peso de nossa condição humana. Nossa vida é dura, implacável e devoradora.
É verdade, por um milagre mais ou menos inexplicável, o jogo teatral às vezes liberta-nos de nós mesmos, faz desaparecerem por algum tempo nossas mais cruéis preocupações e até nossa enfermidades físicas.
Mas é igualmente verdade que esse terrível jogo de nossa profissão seria o mais vil de todos se chegasse a deformar-nos, a desnaturar-nos de tal forma que o homem ordinário, o homem humano, o homem sincero, o homem do mundo ou o homem de um ofício possa dizer de nós, com desconfiança e com um certo desprezo: ah! é um ator!
Libertar o ator de seu fingimento e arrancá-lo de sua especialização degradante, entregá-lo ao mundo, à vida, à cultura, à grande simplicidade humana, fazer dele um homem entre os homens, que seu público ao aplaudi-lo não deixe de estimá-lo e que seja amado ao ser admirado, elevar a profissão de ator - como o fez Molière em seu tempo e como o fez na Rússia o grande Stanislavski - do descrédito bem merecido pelos falsos artistas, recolocá-lo no mais nobre dos planos, dar enfim ao teatro sua dignidade de grande arte e, permitam-se acrescentar, sua missão religiosa que é a de religar entre si os homens de toda espécie, de toda classe, eu ia dizer - e devo dizê-lo aqui - de toda nação, eis o que vem sendo buscado no Vieux Colombier faz dez anos.
1923. (2)
A cena é o instrumento do criador dramático.
Ela é o lugar do drama, não o dos cenários e das máquinas.
Ela pertence aos atores, não aos maquinistas e aos pintores.
Ela deve estar sempre pronta para o ator e para a ação.
As reformas que realizamos, as que ainda realizaremos tendem e resumem-se a isto: pôr um instrumento nas mãos do criador dramático, criar para ele uma cena livre, que ele possa usar livremente, diretamente, com um mínimo de intermediários.
Atualmente, é rigorosamente verdadeiro dizer que o criador dramático é um intruso no teatro, que tudo se opõe à sua concepção, ao seu esforço, à sua própria existência. Ali onde ele é escravo, é necessário que seja o mestre. Pois ele é o único mestre. E, sem ele, o teatro está hoje sem mestre.
1940. (3)
1. Excertos das "Reflexões de um ator sobre o Paradoxo de Diderot" (ed. Plon, 1928).
2. Excerto de um "Discurso ao Público" de J. Copeau, Genebra, 1923. Idem, ibidem.
3. Anotação datada de 1940. Idem, ibidem.
In Registres I - Appels, éditions Gallimard, Paris, 1974, pág. 205-215. Tradução de Roberto Mallet.
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