domingo, 15 de março de 2009

COMO PODE UM HOMEM DE MARKETING LANÇAR UM PRODUTO QUE NÃO PRECISA EXISTIR? Por Ricardo Vespucci


COMO PODE UM HOMEM DE MARKETING LANÇAR UM PRODUTO QUE NÃO PRECISA EXISTIR?
Por Ricardo Vespucci

Parecia um absorvente menstrual. Fabricado da mesma maneira, formava um sanduíche semelhante: numa das faces, uma tira daquele material todo furadinho que a indústria chama de "não-tecido" (non-woven); no meio, uma manta de algodão; na outra face, uma tira de plástico com aplicação de duas linhas de cola e, sobre elas, duas tirinhas destacáveis de papel. Era vendido em duas versões: com ou sem perfume.

Parecia mesmo o já conhecido Modess, só que, em vez daquele tijolão, era fino, bem fininho, alguns milímetros de espessura. Ora, pensava-se no distante ano de 1980, e isso aí não seria capaz de deter o fluxo, por escasso que seja; então, para que serve?

O administrador de empresas e profissional de marketing Ari Giorgi, então com trinta anos, também se intrigou. Mais ainda quando viu o comercial na TV. "O texto dizia claramente que não se tratava de absorvente comum, mas um produto para os outros dias do mês", lembra ele. "Não entendi nada. E fiquei sem entender também porque o produto tinha aquele nome, Carefree, 'quér-fri', e não outro mais fácil de ser lido e pronunciado".

Aqui se percebe como está distante, de fato, o ano de 1980. Primeiro, não havia essa febre de escola de inglês e de meter inglês em qualquer conversa, de modo que palavras como Carefree soavam estranhíssimas, sem sentido, e eram também, para muito mais gente do que hoje, ilegíveis e impronunciáveis (não, o cigarro Free não existia; e entrada gratuita era grátis, livre ou franca, jamais free). Além disso, naquela época, só 40% das mulheres em idade menstrual usavam absorvente industrializado; as outras, toalhinha de pano, tufo de algodão, papel higiênico, jornal. Incrível, não é?

Ari Giorgi trabalhava então na Kibon, como gerente de novos produtos. Estava lançando no mercado a série de sorvetes chamada "doces brasileiros no palito": doce de leite, quindim, pé-de-moleque e brigadeiro. Pé-de-moleque e brigadeiro fariam mais sucesso e teriam vida longa. Uma boa oportunidade profissional, logo depois, levou Ari para a Johnson & Johnson. Sua primeira missão na nova empresa - ele nem acreditou, quando soube - carregava ironia pura: justamente gerenciar a recém-lançada marca Carefree. Ari, daquele momento em diante, estaria fazendo parte de um jogo de pressões: de um lado, o desafio profissional de fazer do produto um sucesso comercial; de outro, as amarras impostas pelo próprio produto, desconhecido entre nós, e pelas diretrizes concebidas na matriz americana. Ari conta:

"A coisa funciona assim: o produto é lançado nos Estados Unidos e, se faz sucesso, então eles internacionalizam a marca. Isso permite economias de escala globais, é vantajoso. Além disso, eles procuraram reservar rapidamente todos os mercados para seus novos produtos. Foi o que aconteceu com o Carefree: sucesso lá, ia ser implantado aqui, na China, no mundo inteiro, nos mesmos moldes americanos - tamanho, embalagem, cores, foto, texto, tudo igual, só traduzido. Da mesma forma, a estratégia de comunicação veio formatada dos EUA. Quer dizer, tínhamos de vender para a mulher brasileira o mesmo benefício que eles haviam vendido para a mulher americana”.

Que benefícios, afinal?, perguntava-se Ari. "Era uma questão que aqui no Brasil ninguém estava sabendo responder, por isso as campanhas publicitárias não encontravam o prumo. Lembro que, na primeira campanha, tinha um anúncio em que a apresentadora dizia: 'Carefree protege você daquela sensação de umidade nos outros dias do mês'. E terminava assim: 'Carefree, meu absorvente todo dia'. Aí eu pensava: 'Mas a umidade não é uma coisa natural? Se é natural, porque se proteger dela?'. Então eu procurava imaginar outra utilidade para o produto: 'Mulher com corrimento usaria? Mas, se está com corrimento, tem de ir ao médico, não tem de ficar usando Carefree'. Depois, eu me detinha na frase final do anúncio e me perguntava: 'Caramba, então quer dizer que a mulher vai ter de passar a vida inteira com um troço no meio das pernas: o Modess durante a menstruação e o Carefree nos outros dias?'".

As dúvidas de Ari, na verdade, não se resumiam à utilidade do produto. O nome era outra coisa que ele não engolia. Ari sugeriu então o artifício de incorporar ao nome original outro nome, mais assimilável no Brasil, e, aos poucos, fazer com que esse fosse ganhando maior importância nos anúncios e embalagens, até que se sobrepusesse ao primeiro, anulando-o. Sentiu o peso da matriz: nome e estratégia publicitária são intocáveis, responderam. Ou seja, o produto tinha de ser vendido não só com o nome americano, mas também o slogan usado nos Estados Unidos. A ordem era usar a fórmula inteira: "Carefree, the feeling of freshness". Tradução: "Carefree, a sensação de… de…".

"Traduzir ou adaptar a palavra freshness foi um problemão para nós”, recorda Ari. "Porque o conceito americano de freshness está ligado à higiene: à limpeza do corpo, e não há no Brasil um termo equivalente. Imagine usar 'frescor', por exemplo - é mais para drops de hortelã, não é? Enfim, era com isso que devíamos trabalhar. Segundo a formulação dos americanos, tratava-se de conquistar a mulher que saía de casa com o seu Carefree limpinho e então trabalhava, andava, suava; aí, antes do almoço, ia à toalete e trocava o Carefree, sentindo então a tal sensação de freshness. Eu me perguntava se isso também valeria para depois de fazer xixi”.

Enquanto os responsáveis pelo Carefree debatiam, consumidoras de maior ímpeto, certamente animadas pela diminuta espessura da almofadinha, trataram de usá-lo. Em entrevistas, às vezes informais, várias consumidoras disseram que ele "esquentava", por isso não convinha usar. E cartas chegadas ao departamento de Ari contavam que outras, em número bastante significativo, o tinham usado como absorvente menstrual - um desastre! Isso dava o que pensar: ou o produto não era próprio para o Brasil, ou não tinha sido entendido pelas brasileiras.

"Falando em termos de marketing, era preciso definir uma categoria de produto para o Carefree", diz Ari. "Desinfetante é uma categoria muito bem definida, na qual entram todas as marcas de desinfetante, papel higiênico é outra categoria bem definida, assim como absorvente. Com o Carefree, estava-se não só lançando uma marca nova como também uma nova categoria de produto, e encontrávamos a maior dificuldade para fazê-la entendida pelo público. E pensar que já estava na praça”.

Ari foi à fonte. Como nos Estados Unidos chamavam as almofadinhas de panty shields, ele achou que poderia usar uma tradução praticamente direta da expressão no Brasil, que teria inclusive força suficiente para ao mesmo tempo criar a categoria do produto e explicá-lo melhor às consumidoras. Sugeriu, então, que se adotasse a expressão "protetor de calcinha". Não, não senhor. A idéia foi vetada porque o uso da palavra "calcinha" poderia melindrar os brasileiros e fazer mal à imagem da Johnson no Brasil.

Calcinha proibida, no ar os anúncios definiam o Carefree como "protetor íntimo diário". Somando-se a uma grande lista de dúvidas expressas por vários meios pelas consumidoras, uma carta se destacava: a remetente pedia que lhe ensinassem a tirar o Carefree sem arrancar os pêlos. Por "protetor íntimo" ela havia entendido protetor da própria vagina e, coerente com essa idéia, colava a almofadinha no próprio corpo (e nos pêlos). Se soubesse que era para proteger a calcinha…

Ari falando:
"Bem, fizemos dezenas de reuniões com publicitários para definir, primeiro, qual seria a categoria de produto do Carefree; depois, como comunicar isso para a consumidora. Reuniões, debates, pesquisas, formação de grupos de consumidoras, rodamos até comerciais-piloto, o que era raro fazer. Era desesperador para todos os envolvidos. Numa das reuniões, o diretor da conta, Diaci de Alencar da Lintas, o tipo nordestino despachado, muito inteligente e engraçadíssimo, interrompeu o vozerio das discussões e, com voz grave, declarou: 'Pra mim já tá claro. Matei! Carefree é o bidê de bolsa!'. Levantou-se e saiu. Todos nós concordamos com ele: 'bidê de bolsa'. Era aquilo que o americano queria dizer com freshness.

Definida em sua essência a categoria do produto, como chamar 'bidê de bolsa' de uma forma mais delicada? E como dizer às mulheres que, carregando um Carefree, estariam com um refrescante bidê na bolsa?

Partimos para a criação de uma campanha na linha do freshness. Mas aí resolvi comprar a briga, uma briga pessoal: em calcinha nós tínhamos de falar, porque calcinha era a chave da compreensão do Carefree. E mais: eu queria que aparecesse uma mulher de calcinha e sutiã no filme, explicando tudo. Isso não deixaram, mas no texto, pela primeira vez, se falou em calcinha. Aparecia uma loirinha bem bonita, que falava: 'A gente se habitua com muita coisa, com o sabonete, com o desodorante. E agora com Carefree. Carefree é o meu protetor íntimo diário. Com ele eu me sinto como se estivesse usando uma calcinha que acabei de tirar da gaveta'. As respostas melhoraram, mas as vendas eram muito poucas em relação às metas da empresa. Conclusão lógica: ou o produto não estava sendo entendido ou as mulheres não estavam vendo necessidade de “usá-lo”.

Conceito novo precisa de um nome que não deixe dúvida, atormentava-se Ari. E a realidade, em relação a isso, mostrava-se desanimadora, principalmente quando ele visitava os pontos de revenda no Sul e no Nordeste. No Sul, entre engasgos e titubeios, a forma de tratamento mais corrente para o produto era "carefrê"; no Nordeste, "carefré".

"Eu ficava imaginando se não havia um produto mais útil, mais próximo das pessoas para lançar no lugar daquele do qual elas nem sabiam pronunciar o nome, quanto mais entender", lembra Ari. "Mesmo depois de o produto lançado nacionalmente, isso me incomodava muito".

Incomodou-o ainda mais permanecer por três anos como gerente da marca, enquanto, por costume, os gerentes de marca da Johnson trocavam de produto a intervalos de menos de um ano, um ano no máximo. Lutando por tanto tempo para cumprir as metas de venda do difícil produto, Ari ganhou um apelido, "Ari do Carefree", que pelo menos era uma rima - pena que também era um castigo. Não escapa de Ari a constatação de que foi tão difícil e demorado impor o Carefree no Brasil porque ele exigia das brasileiras abdicar de pelo menos um princípio muito caro: roupa limpa se usa em corpo limpo. Para usar o produto americano, nossas mulheres tinham de fazer o que criticam na cultura européia: um perfuminho em lugar do banho.

"O Carefree podia, no máximo, responder às necessidades psicológicas de 'estar com a calcinha limpa', e essa necessidade, é claro, era induzida pela propaganda. Porque todos nós sabemos que, como qualquer outra peça de roupa, uma calcinha usada nunca vai estar ou mesmo parecer limpa. Depois que eu saí da Johnson, a empresa se rendeu à realidade e adotou o conceito de 'protetor de calcinha'. E, curioso, os anúncios atuais estão usando o termo 'frescor'. Hoje, mesmo com propaganda martelada por quinze anos, acho que o Carefree atingiu um patamar de vendas razoável, mas que certamente é um patamar baixo par um produto que deveria ser usado por todas as mulheres, todos os dias e trocado algumas vezes por dia”.

Dos tempos em que gerenciou o Carefree, Ari Giorgi guarda a lembrança do "tolhimento, da falta de liberdade criativa que tem tudo a ver com as multinacionais, nas quais o funcionário vira um executor de estratégias".

Ficou em Ari também uma sensação que não é a de freshness: "Sempre achei o Carefree um produto para uso clínico, só para isso, e acredito mesmo que em boa parte as vendas dele, hoje, são para esse fim. Mas, no duro, no duro, o Carefree não precisava existir". Texto extraído do

revista Caros Amigos de junho/97
(www.carosamigos.com.br).

Um comentário:

  1. A matéria é boa a bessa, mas o título dos mais estúpidos que eu já li: "COMO PODE UM HOMEM DE MARKETING LANÇAR UM PRODUTO QUE NÃO PRECISA EXISTIR?"

    Porra, não é esta a única função do homem de marketing? Lançar produtos inúteis e nos mentir que são indispensáveis para nós, quando na realidade são indispensáveis apenas para se mover o mecanismo do sistema capitalista escravocrata?

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