terça-feira, 17 de março de 2009

PORTUGUÊS SEM PRECONCEITO - ENTREVISTA COM MARCOS BAGNO




Lingüística
Português sem preconceito



O professor de lingüística Marcos Bagno crítica a discriminação que grande parte da população brasileira sofre por não usar corretamente o idioma e mostra o que há por trás desse preconceito.




Erros de português não existem. O que há são variações lingüísticas, formas de falar que vão se constituindo de acordo com o uso das palavras, ao longo do tempo. Do mesmo modo, não podemos falar em erro comum ao empregarmos determinadas construções gramaticais que parecem soar em desacordo com as normas oficiais do idioma. Ora, se muitas pessoas cometem os mesmos erros, então não se trata de erro comum, e sim de acerto comum. Idéias polêmicas, difíceis de aceitar? Pois é assim que pensa Marcos Bagno , professor de lingüística da Universidade de Brasília (UnB), um dos mais ferrenhos críticos do preconceito amplamente difundido de que o brasileiro fala e escreve mal o próprio idioma. Essa visão atinge principalmente as camadas pobres da sociedade, por estarem distanciadas do padrão ensinado na escola. O preconceito lingüístico, porém, revela um outro preconceito: o social. “A língua, a maneira de falar, é apenas uma desculpa que as outras pessoas usam para discriminar, para excluir”, afirma Bagno. Mineiro de Cataguases, ele é autor de vários livros que desfazem mitos em torno do português falado e escrito no Brasil, como A Língua de Eulália (1997), Preconceito lingüístico – o que é, como se faz (1999), Português ou Brasileiro? (2002) e A norma oculta (2003). Marcos Bagno esteve em Aracaju no dia 26 de março para realizar a palestra “O preconceito lingüístico e o seu tratamento em sala de aula”. Em seguida, a entrevista que ele concedeu instantes antes de se dirigir à platéia que lotou o auditório do hotel Parque dos Coqueiros.




Por Paulo Lima




BN - A crítica ao preconceito lingüístico no Brasil está presente na maioria dos seus livros. Como surge o seu interesse por este assunto?
Marcos Bagno - Desde o início dos estudos lingüísticos a gente tem percebido que a linguagem pode ser usada como meio de discriminação social, de exclusão social. O meu interesse sempre foi descobrir quais são esses mecanismos que levam as pessoas a discriminarem outras por sua maneira de falar. Então, a idéia foi desde sempre tentar associar as questões lingüísticas com as questões sociais e descobrir quais são essas relações, fazer as pessoas se conscientizarem disso, de que existe esse preconceito, e encontrar maneira de combatê-lo.




BN - Esse tipo de preconceito é somente lingüístico?
MB - Na verdade, eu costumo dizer que o preconceito lingüístico não existe. O que existe de fato é o preconceito social. Então, a língua, a maneira de falar da pessoa é apenas uma desculpa que as outras pessoas usam para discriminar, para excluir. Então, o verdadeiro preconceito é social.




BN - O senhor também distingue o uso do português padrão do não padrão. O que significa um e outro?
MB - O português padrão é aquele modelo de língua idealizado que as pessoas aprendem na escola, que vem codificado nas gramáticas. E, como ninguém fala exatamente esse padrão, todas as formas que realmente existem na sociedade são consideras não padrão. Então, é um confronto que a gente faz entre o modelo de língua, uma língua idealizada, e a realidade dos brasileiros.




BN - Existe alguma superioridade lingüística de um padrão sobre o outro?
MB - Não, não existe. Concretamente, não. Do ponto de vista lingüístico, todas as maneiras de falar se equivalem, todas as formas de falar atendem as necessidades dos falantes. A superioridade é apenas uma construção cultural e social. As pessoas acham que uma determinada maneira de falar, por ser falada ou por ser empregada pelas classes privilegiadas da sociedade, é superior. Então, essa superioridade só existe do ponto de vista da hierarquia social. O modo de falar das pessoas que estão, digamos assim, no poder é que acaba se constituindo na forma mais prestigiada da sociedade. Mas do ponto de vista lingüístico todas as maneiras de falar se equivalem.




BN - Sabemos que no Brasil não falamos somente um único português, mas vários falares. Que fatores explicam o uso tão diferenciado que vemos nas diversas regiões?
MB - Olhe, isso ocorre em qualquer língua do mundo. Todas as línguas do mundo apresentam o que a gente chama de variação. Nenhuma língua é falada do mesmo modo em todo o lugar pelas pessoas. Até mesmo cada indivíduo na hora de usar a língua faz diferenças de uso, de acordo com o contexto, com a situação, com a familiaridade, com a pessoa com quem está interagindo. Então, a explicação para a variação lingüística é simplesmente esta: ela faz parte da natureza da própria linguagem. E, no caso do Brasil, as variedades que existem no país se explicam pela história de cada região, pela história das pessoas que falam essas variedades. Há vários fatores históricos, sociais e culturais que explicam essa diversidade.




BN - O que os professores podem fazer em sala de aula para lidar com o preconceito lingüístico?
MB - Antes de mais nada, eu acredito que os professores precisam se conscientizar da existência do preconceito lingüístico. Isso eles vão conseguir fazer se dedicando a um estudo mais sério, mais detalhado da questão da variação lingüística. Então é necessário que, antes de mais nada, eles tenham uma boa formação na parte que a gente chama de sociolingüística. A partir desse conhecimento, desses estudos é que eles vão poder traçar algumas estratégias para trabalhar com isso em sala de aula.




BN - E quais seriam essas estratégias?
MB - O reconhecimento da variação é importante, e o que o professor pode fazer é não se deixar levar pelas idéias preconcebidas que existem na sociedade. Então, reconhecer a importância da língua padrão, mas também reconhecer o direito que as pessoas têm de falar do jeito que falam, de usar as suas variedades locais, regionais e sociais. É uma questão de ter sensibilidade para lidar com isso. Não existem táticas muito concretas para isso.




BN - Os novos parâmetros curriculares nacionais têm contribuído para diminuir esse preconceito?
MB - De certa maneira, sim, porque eles tocam no assunto. A partir do momento em que o assunto é tratado, e as pessoas são obrigadas a refletir sobre isso, então eles realmente contribuem.




BN - Até que ponto métodos de ensino transplantados de outras realidades, como os baseados em Piaget, Montessori, Waldorf, Vigotsky, dentre outros, servem à realidade dos nossos alunos?
MB - Todos esses pensadores refletiram sobre a questão educacional e propuseram algumas estratégias. É claro que a gente nunca, em nenhum momento, adota uma teoria, uma filosofia educacional na íntegra. A gente sempre aproveita o que elas têm de melhor e faz uma adaptação para as realidades. Então, eles contribuem basicamente com a reflexão sobre os temas. É aquela velha história da teoria e a prática. A gente confronta a teoria com o que tem na realidade e vai fazendo as adaptações, as críticas da própria teoria. Você pode se apoderar de uma teoria educacional e, mesmo gostando muito dela, sentir que é obrigado a fazer algumas críticas, algumas reformulações. É assim que a ciência avança.




BN - Por que o brasileiro aparentemente tem tanta dificuldade em utilizar as regras do português padrão?
MB - Olhe, há várias coisas envolvidas aí. Primeiro, porque o português padrão está muito distante da realidade lingüística dos brasileiros. Mas a gente também não pode misturar as coisas. Existem questões aí que são relativas ao aprendizado da ortografia, ao aprendizado da língua escrita. Nós temos que separar essas coisas, aquilo que vem da variação lingüística e da mudança lingüística também, e aquele que diz respeito especificamente às regras de ortografia. Acho que a escola não tem se concentrado, do jeito que deveria, na prática da escrita, que é uma das principais funções da escola, que é levar as pessoas a escrever bem e também a saber ler. Mas tradicionalmente nosso ensino fica muito preso a regras, a decoreba de nomes, a separação silábica, a análise sintática. Então, a pessoa sai da escola sem saber o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta, apesar de passar 11 anos estudando isso, e também sai sem conseguir produzir um texto minimamente coeso e coerente. Então, tem a ver realmente com as práticas de ensino de língua que têm sido utilizadas na nossa tradição.




BN - Atingir os padrões da língua culta é então o que pode haver de melhor para o aluno, para quem fala e escreve o nosso idioma?
MB - Sem dúvida. É missão da escola levar os alunos a se apoderar das formas prestigiadas de falar e de escrever. Agora, isso tem que ser feito sem discriminar a fala original, sem fazer qualquer tipo de atitude preconceituosa com a variedade lingüística que o aluno já traz para a escola. Trata-se de acrescentar a bagagem cultural dele, aumentar o seu repertório lingüístico, e não de substituir uma forma considerada errada por uma forma supostamente certa. Como eu já tinha dito, todas as formas de falar são igualmente válidas, e a função da escola é apresentar para o aluno aquilo que ele não sabe, ou seja, as formas de prestígio, e essas se transmitem basicamente pela prática da leitura e da escrita.




BN - A defesa do uso correto do português virou uma febre, particularmente estimulada pelos meios de comunicação. Como o senhor vê essas propostas, especialmente a do professor Pasquale?
MB - Eu critico bastante porque essas pessoas que estão fazendo esse tipo de trabalho na mídia não estão integradas ao estudo efetivo, ao estudo científico da realidade lingüística no Brasil. Ao invés de se debruçar sobre a realidade do brasileiro, procurar compreender em que estado nós estamos hoje em termos lingüísticos, qual é a situação da língua portuguesa falada no Brasil, eles tentam transmitir uma língua padronizada extremamente formalizada e muito antiquada, até defendendo regras que os próprios gramáticos profissionais já reconhecem que estão obsoletas. Então, a minha grande crítica a eles é justamente essa, a falta de conhecimento mesmo, eles não têm conhecimento para falar o que falam, e a tentativa de impor formas muito obsoletas e antiquadas de língua.




BN - Um de seus argumentos é que, se o uso de determinada palavra considerada errada é falada persistentemente pela população, então não haveria erro. Poderia nos explicar?
MB - Essas pessoas que defendem um português padrão mais formalizado falam muito do erro comum. Dizem “ah, é erro comum no Brasil usar tal coisa”. Ora, se todo mundo usa, se é um uso que está sendo feito em todas as classes sociais, de Norte a Sul do país, então não é erro, é acerto comum. As pessoas estão percebendo que aquela forma lingüística já não atende às necessidades de comunicação e expressão delas e estão modificando essa forma lingüística, o que é natural em qualquer língua do mundo. As línguas passam por mudança. Então, não existe esse tal de erro comum, existe o acerto comum. Significa que as pessoas estão adotando formas novas de falar.




BN - O aprendizado de línguas estrangeiras em idade cada vez mais precoce tem sido muito seguido pela classe média no Brasil. O senhor acha que essa é de fato uma prioridade? É algo necessário?
MB - É importante. O conhecimento de línguas estrangeiras é importante, é interessante. Se a pessoa pode ter acesso a isso cedo, já na infância, é interessante, desde que não seja uma coisa forçada, obrigada. Os pais podem tentar conscientizar os filhos sobre a importância do domínio das línguas estrangeiras, mas não impor isso de maneira muito autoritária.




BN - Algumas projeções apontam que muitas línguas faladas hoje estarão extintas daqui a trezentos anos, incluindo o nosso português. Qual a veracidade dessas afirmações?
MB - A língua portuguesa pode se transformar, pode não, ela vai se transformar, como todas as línguas se transformam, mudam com o tempo, mas a gente só pode dizer que uma língua se extingue se os seus falantes se extinguirem. Então, se vier alguém e matar todos os brasileiros, a língua portuguesa vai deixar de ser falada no Brasil.




BN - Como o senhor analisa os projetos de regulamentação do uso de estrangeirismos na língua portuguesa, como o do deputado federal Aldo Rabelo?
MB - A questão dos estrangeirismos tem que ser vista sob duas perspectivas. Do ponto de vista lingüístico, da estrutura da língua, o uso de algumas palavras de origem estrangeira, basicamente inglesa, como é agora, isso não vai afetar a estrutura da língua portuguesa. Então a língua não está ameaçada por causa deste uso. Agora, do ponto de vista cultural e social é que as pessoas acham que essa presença muito grande das palavras de origem inglesa representa uma ameaça à identidade cultural do brasileiro, e que isso também representa a ponta de uma coisa muito maior que é a dominação cultural, a imposição de um modo de ver, uma visão de mundo que é a que vem dos Estados Unidos. E aí, sim, elas têm todo o direito de se rebelar.




BN - E quanto ao papel que a linguagem jornalística ocupa hoje na sociedade, como um padrão a ser seguido?
MB - Isso é uma coisa interessante na pesquisa lingüística que tem sido feita, de que maneira a língua usada nos jornais, nos meios de comunicação escritos, principalmente nos grandes jornais, nas grandes revistas, já constitui um certo padrão. Até pouco tempo atrás, as pessoas usavam como padrão muito a literatura. Mas a língua literária não pode servir de modelo, porque ela é muito experimental, o escritor tem que ter liberdade de usar o que quer. Então, não é a língua literária que tem de servir de padrão. O que as pessoas estão percebendo é que o padrão hoje se forma muito mais na escrita jornalística, na escrita acadêmica, nos textos científicos. Então, um padrão de língua escrita deve ser buscado aí.




BN - Alguns teóricos acreditam que a linguagem passa por um processo de encolhimento. Lemos textos cada vez menores nos jornais, os escritores usam menos palavras, e o e-mail passa a ser a mensagem. O senhor também vê esse fenômeno em andamento?
MB - Não sei se o encolhimento da linguagem. Talvez seja uma questão mesmo da pressa da vida cotidiana e do imediatismo dos meios de comunicação, que tentam ser rápidos e dar respostas rápidas. Então, há de fato um certo abandono da leitura mais profunda, mais reflexiva, do texto mais elaborado, mais trabalhado. A gente vê isso mesmo nos jornais. Nos jornais, pelo menos os jornais de São Paulo, do Rio, o espaço entre as linhas está cada vez maior, o texto está cada vez mais rarefeito, mais superficial. Isso é um problema porque não convida o leitor a refletir mais, a investigar um pouco mais o que está sendo escrito, o que está sendo tratado ali. Então, é uma questão de rarefação da linguagem por causa dessa pressa da vida cotidiana.




BN - De que forma as modernas teorias da sociolingüística podem contribuir para combater o preconceito lingüístico?
MB - Elas oferecem basicamente o que eu chamo da conscientização e a sensibilização na escola. Eu acho que a escola é o grande instrumento para modificar isso, porque assim como a escola, durante séculos, transmitiu a ideologia do certo e do errado, a partir de agora, com uma visão mais científica do ensino de línguas, a gente pode começar a desconstruir essa ideologia e pensar em coisas mais democráticas.




fonte Balaio de Notícias 53

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