O DEUS GÂNGSTER DE DOGVILLE
Paulo Amoreira
"(...)Nada que é próprio do homem pode te estarrecer ou inibir." Fernanda Montenegro.
Tenho sido seqüestrado por pensamentos estranhos sobre as ambigüidades dos seres humanos. Quanto mais me entrego às sensações que me cercam e à investigação da condição humana, mais me distancio dos ideais que aprendi como sendo as bases de nossa humanidade desejável.
Como se em cada teste de grandeza o pior resultado é que fosse aferido.
Estou dirigindo ensaios de uma peça escrita por mim que é uma espécie de mito de Adão e Eva revisitado. Os mesmos personagens, mas dispostos de outra forma e com um outro desenrolar dos fatos. É um texto muito introspectivo. O que me abala nesse processo é pensar que estamos - nós humanos demasiado humanos - vivendo as mesmas histórias dos nossos antigos mitos cotidianamente. Uma versão mitológica do eterno retorno nietzschiano?
Estava com todos esses sentimentos ainda pulsantes quando entrei no cinema pra assistir Dogville. O filme abriu uma fenda no meu peito.
A começar pela concepção dramatúrgica: uma fábula (a)moral, com nove capítulos e um prólogo (todos anunciados com cartelas de texto); cenários definidos por linhas pintadas no piso de um enorme ambiente neutro: casas com paredes invisíveis, mas cujas portas - abertas pelos atores através de mímica - se pode ouvir o som; uns poucos móveis e interpretações intensas, sem maneirismos.
Estes recursos em muito estão associados ao Teatro Didático de Bertolt Brecht (1898-1956) - que buscava se distanciar do realismo, fazer com que o público percebesse de forma inequívoca que suas peças eram representações de uma situação política real, cotidiana, e que era necessário e desejável que o público identificasse os personagens reais que aqueles personagens ficcionais estavam representando.
No filme de Lars von Trier, essa opção tende a ser rapidamente compreendida como código da verossimilhança interna da obra. O não-realismo dos cenários faz com que mergulhemos sem distrações na história de crime & castigo que é magistralmente contada e interpretada:
Uma bela jovem, Grace, fugindo de gângsters, chega a uma cidadela decadente em busca de refúgio. Um lugar esquecido por Deus, chamado Dogville. É descoberta pelo intelectual da cidade, Tomas Edson Jr., que convence os miseráveis citadinos a lhe darem abrigo, em troca de pequenas tarefas cotidianas. Os habitantes da cidade são exemplos claros da decadência humana (referência à crise dos anos 30 nos EUA). Suas obtusas vidas são um amontoado de frustrações e condoída precariedade.
A doçura da jovem e sua inabalável paciência e misericórdia começam a conquistar todos. Um novo ar penetra nos pulmões asmáticos da comunidade. Tudo parece ser perfeito, justo, bom e belo. Mas, é claro, nada dura para sempre. Fatos hipotéticos trazem à tona a natureza anímica da população aparentemente frágil. "Dogville mostra seus dentes".
Uma perversa sucessão de fatos conduz pra um final que, se não chega a ser de todo surpreendente, provoca uma profunda reflexão sobre a natureza humana e suas dicotomias dissolvidas.
Fomos educados para o maniqueísmo. Para acreditar, por exemplo, na bondade absoluta de Deus (Summum bonum).
"(...)Acompanhamos as teorias de Jung, a partir de seus estudos sobre o processo da metamorfose nessa divindade judeu-cristã, e compreendemos como esta metamorfose antecipa uma transformaçào histórica, na consciência ocidental. Através das mudanças ocorridas em Javeh, da criação de um Deus cristão e da atualização desse Deus, na figura de Cristo, o homem acreditou vislumbrar a totalidade da divindade. À primeira vista, pode parecer que os homens haviam se libertado das trevas, do inconsciente, mas o que surgiu foi um monoteísmo unilateral: Deus havia se despojado de seus elementos sombrios e nefastos e se tornara o Summum bonum. O Mal era, inicialmente, deflagrado pela mão esquerda de Javeh, além do que, o próprio Javeh operava através de inversões tais como a exigência à Abraão para que matasse o próprio filho Isaac, desobedecendo o mandamento "não matarás"; ou como na história de Jacó, onde este, ludibria seu irmão Esaú, e também o pai.(...)" Trecho de O Diabo Fascinosum, de Lygia Aride Fuentes.
No velho testamento, Deus trazia na mão esquerda a destruição e na mão direita a criação. Muitos teólogos afirmam que foi durante o Cativeiro da Babilônia (586 a 539 a.C.) que os cristãos (que ainda acreditavam que deus reunia o bem e o mal na sua natureza), tiveram contato com o Zoroastrismo, doutrina dualista (que separa as divindades do bem e do mal) e passaram a crer na suprema bondade de Deus.
O que nos leva à especular: na origem, havia um deus luciferino?
Diminuídos em nossa compreensão de nós mesmos, remoemos nossos infortúnios e não reconhecemos nossas pequenezas. Como "imagem e semelhança" de um deus criador do qual extraímos o princípio equilibrador da morte moral (maldade).
Somos levados a crer que o mal que nos come as entranhas tem como origem uma contaminação externa. Se nossa natureza é - essencialmente - boa, necessitamos de algo ou alguém que possamos culpar por nossas sombras interiores. Algo ou alguém que carregue nossos pecados por nós e que por isso seja sacrificado, para que possamos reconquistar nosso lugar ao lado da "perfeição". Precisamos do puro Cordeiro de Deus.
Mas o deus luciferino de Dogville tem outros planos.
Na alegoria de Dogville a tentativa de um cristo feminino (Grace / Graça) de provar seus ideais tem outro resultado. Grace, tentando fugir do poder - o poder absoluto e amoral (sobre a vida e sobre a morte) do Deus Gângster - acredita que se abrigando na impotência de uma cidade entregue às suas misérias encontrará a verdadeira essência do humano. Tudo acaba se revelando um perverso jogo do poder (chantagista) da impotência. A certa altura do filme a própria personagem o diz: Grace: "isso tudo parece um jogo." Tom: "sim, é um jogo. Estamos todos jogando."
Na fábula contada por um narrador irônico, ao concordar com a proposta de servir à comunidade de forma cada vez mais absoluta em troca da aceitação, ficando, portanto, à mercê da chantagem imposta, Grace traz à tona os sentimentos ocultos nos habitantes e os desejos que assaltam os que se vêem em situação de poder ilegítimo. Assim, os que temem o poder dos gângsters, sob circunstâncias de igual onipotência, reproduzem seus formatos de opressão e controle.
"E, lembre-se, quando se tem uma concentração de poder em poucas mãos, freqüentemente homens com mentalidade de gangters detêm o controle. A história provou isso. Todo o poder corrompe: o poder absoluto corrompe absolutamente." Lord Acton, em carta ao Bispo M.Creighton, 1887
E é a natureza universal dos personagens que faz com que o filme ultrapasse o recorte da grande depressão dos anos 30 e se apresente como um grandioso e terrível espelho da nossa decadência atemporal: Jack McKay, tem a melhor vista da paisagem na sua janela mas é um homem cego que tenta, inutilmente, convencer a todos que ainda enxerga;
Martha, zeladora de uma igreja que nunca mais terá um padre e que passa os dias tocando o órgão sem, no entanto, emitir som (com medo de estragá-lo); Chuck, agricultor rancoroso e asqueroso e sua esposa Vera, professora que defende o estoicismo (impassibilidade ante a dor ou infortúnio) e que "chora por qualquer coisa";
Glória, a jovem indolente que detesta e gosta que os homens da cidade a desejem, seu irmão Bill Henson, o "idiota que sabe que é idiota" e seus pais, que vivem da venda de copos de vidro vagabundos "maquinados" para fazê-los parecer refinados;
Ben, motorista e "constrangido" freqüentador de prostíbulos; A negra alforriada agrilhoada à sua filha paralítica; Ma. Ginger, implicante e exploradora dona da única loja da cidade; Tomas Edson (Pai), o médico hipocondríaco e seu filho, Tomas (Tom) Edson Jr., pretenso escritor e limitado perscrutador da alma humana. Também temos Moisés (!), o cachorro que é só um desenho no chão e do qual ouvimos os latidos alertas e o Gângster Misterioso que fazem parte da chave de compreensão final do filme... Além, é claro, da protagonista Grace, jovem, bela, indulgente e misericordiosa, que descobre uma forma paradoxal de ajudar a humanidade.
Cruel e irônico retrato da intelectualidade impotente e covarde é desenhado no personagem Tomas Edson Jr. Típico representante dos que preferem pensar e considerar possibilidades que agir, ele não consegue ir além do discurso maquiado com grandeza e senso comum. Nada se cumpre com Tom. Ele se mantém na conhecida ante-sala da história. Não corre risco de nenhuma espécie. Nem o risco de proteger a mulher amada dos agouros sucessivos. Abraçado na frieza racionalista, permanece nulo.
Por outro lado, é interessante lembrar que seu homônimo ilustre, o cientista e filósofo Thomas Edson, inventor da lâmpada elétrica (após cinco mil tentativas), é também o inventor da cadeira elétrica - que logo disponibilizou para o sistema penal, atitude considerada imatura e pura vaidade.
Thomas Edson pregava que "a religião é uma ilusão" e que "nada é maior que o pensamento humano". Era adepto do Positivismo.
"O "Positivismo", corrente da ciência que acredita que a humanidade esta em constante evolução, defendida por estudiosos, acredita que a humanidade passará por 3 estágios, ao longo de sua evolução: O primeiro é o mitológico, típico das sociedades primitivas, como as africanas ou indígenas. O segundo é o teológico (acredita na existência de DEUS), predominante nos dias de hoje. O terceiro e o permanente é o moderno, na qual a sociedades se ancoram sobre bases racionais e científicas."
Mas, ora vejam: através da Graça se chega à Deus. Afinal: Graça é definida como favor, misericórdia, perdão. A graça é um atributo, uma característica divina exercida para com os seres humanos.
Porque pela graça sois salvos mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus" Efésios 2:8 a 10
Assim, temos um insólito par romântico: o Ateísmo Filosófico (Tom) enamorado da Graça Divina (Grace).
Mais curioso ainda é lembrar que é um cachorro chamado Moisés quem anuncia, com seus latidos, para Tom a chegada de Grace. Moisés foi a principal figura bíblica no episódio da libertação dos israelitas do Cativeiro do Egito (Êxodo). Quando chegou ao Monte Sinai, elaborou os fundamentos do 'Judaísmo". Morreu aos 120 anos.
Nessa possibilidade fílmica da relação homem luciferino x divindade luciferina, é o cão Moisés o elemento de ligação entre os citadinos de Dogville e a santidade da provação de seus infernos pessoais. O Cordeiro de Deus reconhece que a sua Graça é compreender a natureza e responsabilidade do poder absoluto de um deus que é vida e morte.
Dogville me levou para mais perto do que eu tinha medo de encontrar. Mas, que ao mesmo tempo já fazia parte da minha forma de sentir o mundo. Sempre desconfiei da misericórdia acéfala que sempre me foi imposta como mérito a ser alcançado. Ainda não haviam me contado uma história tão pungente que revelasse, através dos seus meandros, as conseqüências inexoráveis das concessões absolutas.
Mais cheio de perguntas do que de respostas, saí do cinema com a perplexidade de quem está convicto que o que nos faz miseráveis é também aquilo que nos pode fazer grandiosos: nossa humanidade.
Fortaleza, 23/02/2004
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