A ARTE TEM QUE ESTAR À ALTURA DA FOME
- Clerouak pesquisa a linguagem do palhaço brasileiro manifestada no bumba-meu-boi. Entrevista concedida a Carlos Biaggioli, em julho/2006.
O Portal da CPT resolveu colocar na roda a experiência e as bombásticas opiniões do artista Clerouak, que desde 1995 vem unindo a arte do palhaço ao estudo da cultura popular brasileira. Atualmente, pesquisa a linguagem do palhaço brasileiro (o Mateus, o Bastião e o Vassoura, especialmente), manifestada no bumba-meu-boi. Embora hoje em dia ele também marque presença em grupos como "Boi de Fumaça" e "Radinho de Pilha", sua trajetória assinala, nos Anos 80, uma passagem pelo grupo punk "Garotos Podres".
Nos Anos 90, fundou, juntamente com Alessandro Azevedo, o "Sarau dos Charles", o qual, com Paulo Federal, gerou o extinto grupo de palhaços "Charles & Cia". Além da participação em diversos programas de televisão, Clerouak também participou de dois curta-metragens e do filme "Carandiru", de Hector Babenco. Recentemente, dirige o grupo Madresilva e atua como palhaço para o MST Movimento dos Sem-Terra.
Portal da CPT — Hoje em dia você está em carreira solo e quem te conhece sabe que você se mantém sempre muito fiel a um ponto-de-vista, digamos, bastante "anárquico" no que diz respeito ao seu trabalho e às relações com o público para o qual você se apresenta. Conta pra gente um pouco da tua trajetória, da experiência punk ao Palhaço Billy Coco...
Clerouak — Aos 14 anos eu resolvi ser punk. Na época, pra ser isso você tinha que ser artista, ter o poder criativo. Pra viver num país como é o nosso, você tem que ser muito criativo o tempo todo. Ser criativo é ser artista. Pra mim o mote foi essa história de ser punk. Eu conheci o pessoal dos "Garotos Podres", um grupo do ABC, fiz backvocal pra eles durante um tempo. Essa coisa da anarquia me persegue até hoje, que é você se auto-gerir, você construir o teu pensamento, a tua história. É claro que você tem referências, que você vai absorvendo. Mas essa herança do punk permanece, pra mim, até hoje na história do palhaço. Existem as referências do Max Linder, do Chaplin, do Mazzaroppi, do Grande Otelo, mas eu acho que você resgata, você busca a referência mas, depois, você cria a tua própria história.
É no criar, está na criação onde o mundo moderno se perde um pouco. As pessoas não aceitam muito aquilo que é novo, nunca aceitaram. Pega o Van Gogh ou os criadores da música. Não que você tenha que morrer na miséria ou tenha que viver precariamente. Eu gostaria de viver muito bem, de ter casa, automóvel, mas é louco como que, pra você ter isso, você tem que fazer uma "arte domesticada", entende? Ser artista é atuar no campo da criação e da transformação. O verdadeiro artista é o cara que cria, que tem compromisso com a transformação. Aí o cara vira e diz que já criaram tudo. Não! Se você dilata a tua mente, se você tem a vontade de inovar, de criar, você cria. Tudo bem, você pode não ser aceito, mas não ser aceito geralmente é quando você esbarra nessa coisa completamente comercial, do que a Arte está refém nos dias de hoje. Então, quer dizer que pra você fazer um palhaço hoje, tem que ser um palhaço que é aceito! Você tem que ir por uma via, por um desenho que vai ser aceito nos Sescs, a menos que você já tenha um nome. Aí você pode cagar no pinico, que aquilo é "arte". Mas se você é uma pessoa que não consegue dar muita visibilidade pro teu trabalho e tenta fazer alguma coisa nova é muito difícil.
Daí é que vem essa herança anárquica, minha, do punk, de tentar sempre argumentar com as pessoas que "palhaço é isso mas também não é só isso", pode estar num outro lugar. Quem deu uma boa demonstração disso no Brasil, há pouco tempo, foi o Leo Bassi. O estilo de vida que eu levo hoje não tem novidade nenhuma, os povos nômades vivem dessa forma há muito tempo. Hoje eu moro em uma cabana onde eu tenho basicamente os meus instrumentos, cds e figurinos e vivo bem, porque eu não preciso ter mil ou 1.500 reais por mês pra pagar um aluguel. Até porque esse meu desenho de vida faz com que eu me torne menos refém dessa coisa imposta, pra que eu não tenha que fazer uma "arte domesticada". O mote é esse.
Portal da CPT — Mas por que a rua?
Clerouak — Eu vou pra rua, rodo o meu chapéu e vendo os meus cds a 15 ou 20 reais e com isso eu dou manutenção para a minha vida. Pago 50 reais nessa cabana mais uns 120 reais no meu celular e me sinto menos refém dessa energia capitalista que impõe essa receita domesticada pra que os artistas freqüentem os Sescs, prefeituras ou teatros da cidade. Eu nunca consegui estar em cartaz! Eu tenho uma longa história de palhaço, fiz cursos, estudei, há mais ou menos dois anos atrás estive na Europa (Espanha, França e Portugal) rodando chapéu, fazendo teatro de rua. Eu tenho uma história válida, significativa, e, no entanto, eu não consigo ocupar os espaços, porque tem sempre política, tem que ser amigo de não sei quem (Q.I., "quem indica"). Eu to fora! Muitas vezes, por você estar nessa periferia da situação, você acaba ficando marginalizado, mesmo. Carta fora do baralho. Você tem que fazer política, reuniões em que porra fica o artista? Eu sou artista, eu não sou político. O Alê [Alessandro Azevedo, do Sarau do Charles] falava pra mim que a gente tinha que fazer reuniões, tinha que estar nos lugares, etc. e tal. Taí, ele virou político. Eu não sou político.
Portal da CPT — Qual é o caminho mais interessante, então?
Clerouak — Vá pra rua e crie o teu público! É um público interessante...
Portal da CPT — Como é que se dá a tua relação com a rua?
Clerouak — A minha postura na rua, com relação àquilo que eu faço, talvez seja a mais legítima que existe, porque eu sei que quem vai botar um dinheirinho no chapéu, ali, é o cara que vê alguma coisa em você. É cara que vai comprar o meu cd ["Música do Quarto Mundo"], que é uma brincadeira de palhaço em cima de músicas étnicas. Quando eu e o Alê se encontrou de palhaço, no centro da cidade, que a gente começou a fazer show de rua, foi muito interessante. A gente fazia com pouca técnica, não sabia quase nada de palhaço, mas tinha uma coisa ali que era muito interessante: um certo romantismo, uma certa inocência! Não havia uma visão empresarial de trabalhar pros Sescs, de ganhar dinheiro com isso. Era uma loucura de artista, mesmo. Não tinha desenho nenhum na nossa cabeça de que, com aquilo, a gente poderia comprar um carro, viajar, ir pra festivais, era uma coisa muito inocente, pura, ingênua.
Era a necessidade de ser artista mais por uma vontade de se manifestar e fazer valer a tua vida e a tua palavra, sabe? A arte existia independentemente do mercado, de alguém que vá te contratar. É por isso que eu gosto muito desses fazedores de cultura popular que estão espalhados pelo país, que muitas vezes não dão valor nenhum, que muitas vezes terminam a vida sem ninguém conhecer, banguelos, fodidos. Não que você tenha que viver assim, mas eu vejo muita dignidade nessas pessoas, porque elas cumpriram um desenho, na vida delas, que a cultura, a música, a arte existem independentemente de mercado, é uma coisa que faz parte da vida dessas pessoas. Elas vão insistir, elas vão fazer a música, o teatro, o cavalo marinho, a folia de reis: independentemente de mercado! O que eu percebo, aqui em S. Paulo, é que, se esses contratantes desaparecerem, metade dos grupos desaparecem também. Eu penso que você deve fazer arte porque é um desejo muito forte de você se manifestar.
Portal da CPT — Te importa mais o que tem que ser dito do que o quanto tem que ser pago. Se você se põe à margem do poder público e da iniciativa privada, das leis de mercado, você restringe o pagamento do teu trabalho à venda dos teus cds, no tête-à-tête, ao público da rua. Pra gente não ficar "refém" nem do mercado e nem do Estado, quem paga o trabalho do artista de rua?
Clerouak — No meu caso isso representa cinqüenta por cento do que me dá o suporte... Mas olhe os circos, por exemplo. Eles são um bom exemplo de auto-gestão. Eles chegam nos terrenos da prefeitura e você não vê eles pedindo dinheiro da prefeitura, do governo ou do Sesc. Eles pagam uma taxa pelo espaço, inclusive. Eu acho até que devia ser cedido. Aí eles armam sua lona e sobrevivem do que o público lhes paga.
Portal da CPT — No caso do artista de rua, você está, então, se referindo ao chapéu?
Clerouak — Meu, tem que labutar! Tem que ser muito raçudo, porque a rua também não dá dinheiro, você tem que ter lugares... Se você vai fazer no centro da cidade, não rola. Você só pode ganhar uma grana como artista de rua se você for conhecido, como o Agnaldo Timóteo fez, com os cds dele, no centro do Rio de Janeiro, enfim: tem que ser raçudo.
Portal da CPT — Um camelô, por exemplo, vive seu dia-a-dia na rua e dali tira o seu sustento, como acontece com qualquer trabalhador de escritório. Na tua opinião, o que difere um artista de rua de um vendedor como esse, enfim, o que é imprescindível para que um artista de rua seja "o" artista de rua?
Clerouak — Eu, quando vou pra rua, eu sempre penso naquela frase do Artaud: "a Arte tem que estar na altura da fome". Quando eu pego os meus cds, ponho a minha roupa de palhaço e vou rodar o meu chapéu na rua, eu me pergunto: eu estou conectado com a realidade dessas pessoas? O que é que eu tenho a dizer pra essas pessoas? O meu cd eu cobro 15 ou 20, mas, às vezes, o cara leva por 10, 5 ou de graça. O mais importante pra quem vai fazer o teatro de rua é ele sentir se realmente tem força pra falar sobre coisas que vão fazer com que as pessoas se iluminem. O artista é um cara que se ilumina pra passar luz pras pessoas que estão vendo ele. Artista de rua, então, é um cara que realmente tem algo a dizer. Se você vai pra fazer bobagem ou besteira... eu detesto besteira! E acho também que esse lugar que colocaram o palhaço não é o lugar. Palhaço é um ser político pra caralho.
Pegue o Chaplin e todos esses caras. Eles eram todos muito políticos, muito conectados com o tempo em que estavam vivendo, com a fome, com a guerra. Se você vai pra rua pra falar uma coisa que não vai de encontro à realidade dessas pessoas, que não ta "à altura da fome", você não ganha elas, não consegue se comunicar com elas. Eu já vi vários grupos de rua e dá pra perceber que é um mundo muito aburguesado pra conseguir chegar na realidade dessas pessoas. Muitas vezes, culturalmente, não atinge... Não que você tenha que ir lá e tocar o pagodão ou o samba. Eu vou lá e toco a minha música étnica, minha música árabe, porque eu acho que o povo árabe tem muito a ver com a cultura brasileira. O problema é a mídia, né? As pessoas não têm essa informação de que a gente vem de um povo mouro, de um povo português e por isso a gente tem muito a ver com o mundo árabe. A gente vive num mundo norte-americano, que saqueia o tempo todo o Brasil, através da música, das novelas, do teatro.
É uma cultura que não faz parte do povo brasileiro, que é uma outra coisa, é um povo índio, de ritual, surreal pra cacete. Ser artista de rua tem que ter muito a ver com essa realidade brasileira, pra falar alguma coisa com que aquele povo se sinta representado. Senão vira só alegoria. Quando a gente fez o "Dom Quixote e Sancho Pança", com o Ale Roit, a gente foi fazer um aquecimento na rua junto com as outras duplas. Essa força que é preciso pra quem faz teatro de rua está muito além dessa receita teatral, desse desenho naturalista, desse paladar que as pessoas falam sobre o que é arte. Rua, pra mim, é coisa pra louco, sabe, cara!? E quando eu fui pra rua fazer aquilo com o Federal, eu olhava pro Paulo Federal e achava que o Federal é um louco! Eu estou com esse cara porque ele é louco! Não é essa loucura abstrata, de viagem. Mas é a insanidade de estar na rua...
Portal da CPT — Essa ruptura, não é?
Clerouak — Ruptura! Não é teatro nem nada, é ARTE, cara. É você ali, no mesmo plano que o público, que não te olha como um burguesinho vindo da classe média pra fazer um teatrinho. Eles olham e se vêem representados. Quando eu vou pra rua eu busco esse registro. Eu tenho algo a dizer pra essas pessoas?
Portal da CPT — E quanto à técnica?
Clerouak — Tem que ter técnica.
Portal da CPT — Como é que você se prepara pra ir pra rua?
Clerouak — Isso que a gente faz tem que ter técnica. Quando eu vou pra rua eu mando a minha voz lá pro outro quarteirão. Eu entro na rua e já vou buscando a loucura dela. E se aparece algum maluco querendo pegar o meu cavaquinho, eu vou mostrar pra ele que eu sou dez vezes mais louco do que ele.
Portal da CPT — De repente ele pode pegar e tocar muito bem o cavaquinho...
Clerouak — Pode tocar. Mas se a postura dele for licenciosa, ele vai se topar com a minha autoridade: eu vou ser autoritário com ele. E não tem problema nenhum ser autoritário, nesse caso. Eu sou um bufão ali, naquela hora quem manda ali sou eu.
Portal da CPT — Como você define um bufão?
Clerouak — O bufão bufa! Acho que Hitler foi um bufão, como todos esses caras que são caricaturas do comportamento grotesco humano. Todos bufões, pra mim. E eu não sou só bufão: eu sou augusto e sou branco!
Portal da CPT — O teu prazer está em abalar as estruturas, não é? Eu te assisti, uma vez, como mestre-de-cerimônias num palco da Feira Cultural da Pompéia, que depois de tudo o que você "aprontou", os organizadores te levaram pra conversar com eles lá no quartinho, a sós...
Clerouak — Aquilo me deu vários problemas! Eles queriam como apresentador, um artista domesticado, um cara que ficasse ali no palquinho, sem comida e sem água, eu achei que aqueles caras estavam brincando comigo. Eles só fazem aquilo porque um monte de gente aceita essa condição. Quando eles me chamaram eu aceitei mas avisei que precisava de um cachê e de uma pessoa, ali, me dando um suporte, pro caso de artistas que não chegavam ou que não vieram. Como é que eu podia improvisar se eu não tinha esse feedback? Quer dizer, eu me vi ali completamente refém. Aí eu fui buscar a minha essência como palhaço, entende? Então eu peguei aquela lista de patrocinadores e resolvi dar voz pro povo. "Olha, gente, eu vou ler aqui alguns patrocinadores e, na medida que vocês acharem legítimo, que eles são bacanas, vocês aplaudem ou vaiem!" Quando eu li Polícia Militar do Estado de S. Paulo as pessoas vaiaram; quando eu li Prefeitura Municipal, vaiaram; e quando eu falei A Lojinha da Esquina, o povo aplaudiu.
Portal da CPT — Eu estava lá. Passou, inclusive, um vendedor de bugigangas fantasiado como palhaço. Você acabou com o cara, provocando: se você é palhaço, sobe aqui, faz uma palhaçada! O cara era um desses, que eu chamo de "impostores", que abusam de um patrimônio que não lhes pertence...
Clerouak — Não pode, Carlos. As pessoas têm que entender que palhaço é um crítico da sociedade, não é essas bobeirinhas que você vê por aí. Não é esse o lugar! Quando eu vejo o Leo Bassi, eu vejo um palhaço, pra mim é esse o lugar do palhaço. As pessoas devem perceber o que estão fazendo com um personagem mitológico, muito grande. Por que você acha que, em alguns lugares, tem aqueles cestões onde as pessoas jogam lixo na boca do palhaço? É nesse lugar que estão colocando o palhaço! Como é que isso vai pro inconsciente das pessoas? Os palhaços tinham que fazer protesto contra isso, processar esses caras que pegam a imagem do palhaço e colocam ela desse jeito! Há uns cinco anos atrás, o Federal e eu fomos sido convidados pra fazer mestres-de-cerimônia na comemoração dos 21 anos do Partido dos Trabalhadores, no Memorial da América Latina. Estava lá toda a cúpula do PT e nós dois como mestres-de-cerimônia. Uma semana antes sai na Revista ISTOÉ uma matéria sobre consumidores ludibriados pelos fabricantes, com uma moça com nariz de palhaço na capa da revista. A gente mandou uma carta comendo o rabo deles, dizendo que antes de eles fazerem essas matérias sociais sobre circo, palhaço, com essas patifarias e fuleiragens todas, que eles soubessem um pouco mais sobre a arte do palhaço, o que é a história do circo...
Portal da CPT — E que é uma profissão regulamentada, como a deles!
Clerouak — Uma semana depois a gente estava num lugar cheio de intelectuais, políticos. O Federal chamou a Marta Suplicy, eu chamei o Aluisio Mercadante, ele chamou o Genuíno. Quando eu chamei o líder do MST (e eu já dei voluntariamente várias oficinas de palhaço em assentamentos do MST), ele não imaginou que eu sou engajado, que eu não era um bobinho. Quando eu chamei ele, eu falei: "bom, gente, eu vou chamar agora o líder do MST. Como vocês sabem, é muita terra na mão de poucos, pois cinqüenta por cento das terras estão nas mãos de um por cento do Brasil".
E puxei as palmas. Ele pegou o microfone e falou: "pelo menos eu fui chamado de reacionário por dois palhaços". Ele veio com uma piadinha pronta, como se nós, palhaços, tivéssemos chamado ele de reacionário. Quando ele falou isso, ele estava carregado desse preconceito, desse lugar que é do palhaço na cabeça das pessoas. Aí a gente vomitou uma série de coisas na cabeça dele e finalizamos falando que a gente estava ali exclusivamente pela Vida; que o jeito como as pessoas vêem o palhaço é equivocado: não é esse o lugar. Aí ele pediu desculpas, beijou a testa do Federal e ficou desestabilizado pro discurso que ele deveria fazer, naquela hora. E foi se sentar lá onde se sentavam os convidados.
Quando eu comecei a ser punk, eu percebi que a idéia que se tinha sobre essa ideologia era completamente equivocada, porque a mídia tinha enfiado na cabeça das pessoas a idéia de que Anarquia era bagunça e não tinha nada a ver com discurso ideológico, de você desejar um mundo sem líderes, sem ninguém dominando ninguém. As pessoas achavam que punk era ser sujo, sem discurso ideológico nenhum. Imagina, cara! Se você vai atrás você saca que tem um fundamento. É a mesma coisa com o palhaço. É um personagem. Você não pode simplesmente botar um narizinho vermelho e sair "macaqueando" um palhaço, colocando ele num lugar que não é o dele. Até hoje programas de televisão mostram essa imagem do palhaço, como uma coisa que não tem nada a ver.
Você vê colegas de teatro, que têm formação teatral e o caralho, reproduzindo esse lugar que não é o lugar dele, entende? Quando eu resolvi ser artista eu tinha um ideal romântico em relação com a libertação através da Arte. Eu achava que o artista devia ser um cara de enfrentamento ideológico, usando a arte dele, com a postura dele. Quando eu me associei à Cooperativa Paulista de Teatro, na época do Luiz Amorim, lá no Teatro Ruth Escobar, eram 23 grupos cooperativados. Hoje são 800 grupos e quase 3 mil artistas! É significativo. Agora, você imagina esses 3 mil artistas juntos, protestando contra equívocos em relação a leis e coisa e tal. De que adianta quantidade sem qualidade? Tem que ter discurso ideológico, eu não sinto a gente junto, eu sinto ainda um puta individualismo. É cada um com o seu fubá e foda-se.
Então esse artista que você romantiza — que está no lugar que você acha ser o lugar do artista, com relação ao palhaço, ao dançarino, o ator, enfim, o artista em geral —, você vê um pouco escorrendo, assim. E aí você percebe as pessoas completamente reféns de empresários, dinheiro, contratantes de uma arte completamente domesticada. E essas pessoas ainda têm a ilusão de que estão tendo uma "ressonância", de que estão falando alguma coisa. E não estão! É muito pouco. Você chega numa escola, como no Programa Recreio nas Férias [da Secretaria Municipal de Educação], com 300 ou 400 crianças, genericamente falando, numa miséria muito grande. Eu fui lá e senti que não cumpri o que eu queria, eu não atingi o alvo.
Como isso seria possível no meio de barulho, de balbúrdia? Eu não estou ali pra ficar pedindo pras pessoas fazerem silêncio. São elas que têm que ter a sacação de que tem uma pessoa, ali na frente delas, tentando dizer algo que é preciso ser ouvido, entende? Eu não tenho que obrigar as pessoas a isso. Depois dizem que não, mas eu acho que a gente vive numa sociedade nazista mesmo, com um povo na maior parte mestiço, negro, e você só vê ator branco, bonito, europeu no teatro. O povo que faz novelas ou propaganda, nos outdoors, é tudo branquinho, não é?
Aí você vai para um lugar querendo falar algo mas não consegue dizer nada, porque as pessoas te vêem como um burguês, nunca como uma pessoa do povo, pois teatro é uma coisa que não chega nas pessoas. E aí a gente vai chegar nesses lugares e obrigá-las a assistir a gente? Eu chegava nas escolas já falando pra criançada: "não, vocês fiquem aqui só se vocês quiserem, se vocês acharem que eu tenho algo a dizer pra vocês. Se não quiserem, podem sair da sala e vão brincar. Só fique aqui quem quiser"! Eu falava isso e via as monitoras, com pau na mão, obrigando as crianças a me assistirem.
Portal da CPT — No que toca à tal formação de público, acaba sendo um tiro pela culatra, não é?
Clerouak — Aí eu chego na cooperativa e ouço uma história de "punição". Na minha cabeça, a gente não tem aposentadoria nem porra nenhuma, vou terminar a vida sei lá como se eu não construir aí alguma coisa pra mim, e aí o único lugar que você acha que seria um suporte pra você conseguir trabalhos, ter um apoio, essa palavra punição entra errada no meu ouvido, porque eu acho que não é o lugar. De picareta o mundo ta cheio.
Portal da CPT — E como é que a gente vai detectar esses picaretas?
Clerouak — O Itamar Assumpção dizia que "o cara podia ser padeiro ou advogado, tudo bem; mas ser artista é só pra gente doida"! eu fecho com ele, mas não esse doidão que sai por aí babando, mas gente que é a fim de provocar mesmo, que não aceita as regras do jogo. Eu me considero um artista de rua porque eu sinto que quando eu vou pra rua as pessoas se sentem representadas. Naquele dia, na Feira Cultural da Pompéia, quando eu dei o meu xeque-mate, quando eu estava saindo fora e chutei-o-pau-da-barraca, vários moleques e pessoas de rua vieram me cumprimentar dizendo: "você é o cara!". E eu fiquei tentando compreender por que motivo elas estavam falando isso. Era porque elas ouviam uma voz, ali, representando um pouco dessa reclamação que as pessoas tem com relação a um monte de coisa na sociedade em que a gente vive. Essa voz não existe! É um ou outro. E muitas vezes os que falam, às vezes já estão notórios, consagrados.
Portal da CPT — Você diz que, nesse momento da tua carreira, "chega de formação", ou seja, você já fez toda a formação de palhaço de que precisava. Você acha que chega um momento em que se deve parar a formação ou ela deve ser uma constante?
Clerouak — Eu acho que você nunca pára, não é, Carlos? Tem que estar sempre buscando. Mas, com relação a esse universo do palhaço, dessas pessoas que estão por aí ensinando o que eu tinha que aprender com elas eu já aprendi. Gabriel Guimard, Família Medeiros, Ângela de Castro, Deborah Kaufman, Michael Christensen, dos Doutores da Alegria... e eu continuo buscando. Mas, nessa história de palhaço, hoje o que mais me interessa é entender onde é que está o palhaço brasileiro, entende? Você olha o Tio Rogê [Roger Avanzini] e Piolim são palhaços brasileiros, têm uma célula de palhaço brasileiro. Mas o sapatão, o nariz vermelho, a roupa larga vem de uma tradição européia. Acho que foi a partir dos Anos 20 que começou a surgir no Brasil uma linguagem do que, pra mim, seria o palhaço brasileiro.
Aí você ouve os intelectuais falando que o palhaço é o cara que veio do Interior, o matuto do mato, que chega na cidade e se sente meio deslocado, eu identifico isso no Mazzaroppi e nesses palhaços que têm essa célula, como o Mateus do Cavalo Marinho, que está muito perto de um Chaplin, por exemplo, e não usa sapatão, calça larga, mas tem a comédia física, é um vagabundo, pinta a cara de preto. E é um transgressor, é um cara com bizarria, jamais seria contratado pruma festinha de aniversário, nas quais as pessoas buscam o coloridinho do palhaço norte-americano, com seu nariz e com o aceitável, entende? Numa festa de aniversário um legítimo Mateus seria execrado, um Borba, que é meio banguelo, todo sujo, que entra numa bixiga de boi fazendo uma célula do baião e que tem tudo ali, não é? As gags, a bizarria, a dança, a música... E o que é o palhaço, na sua essência? É um cara como o Grock, que tem as suas habilidades.
O Bastião da Folia de Reis ou do Cavalo Marinho, o Vassoura, o Ração da Marujada são palhaços que se manifestam dentro de uma célula mais índia, mais negra, mais mestiça do povo brasileiro. Eles não vêm da classe mais privilegiada, mais aburguesada. E não tem discurso ideológico: é palavrão, é loucura e é muito surreal. Um Mateus do Cavalo Marinho entra por debaixo do público, assim, com um cigarro na boca, com um matelão, que é um cobertor que é a casa onde ele mora, porque ele é um vagabundo, um nego fugido. A imagem dele é muito transgressora. E é muito palhaço, pra mim, porque ele entra fumando, meio bêbado e, além disso, ele está no campo do ritual. Mas o mais importante é você perceber que a célula do palhaço está ali, com a ingenuidade de um ser deslocado, criança, louco. É isso o que me interessa, ultimamente, na história do palhaço.
Portal da CPT — Você fala muito em "burguesia", como não sendo um público ideal, com quem você queira conversar. Na atual conjuntura fica difícil ter parâmetros pra esse tipo de classificação, até porque ninguém anda com uma faixa dizendo "sou burguês". Pelo que se abstrai da tua opinião, o burguês não tem salvação e deve ser queimado no inferno?
Clerouak — É uma energia. Não tem uma marca ou um carimbo. Pra gente que vem da periferia é fácil ver as pessoas aburguesadas, entende? Eu não falo burguês no sentido financeiro, de um cara com dinheiro. Mas são referências burguesas absorvidas sem querer pelo inconsciente do cara. Isso vem da televisão, da roupa, da música... mas ele não percebe. E passa a ter uma visão aburguesada, ao invés de uma visão simples das coisas. Isso acontece não é só na classe média. Isso você vê no meio de gente pobre, em vários lugares, essa energia que está no inconsciente da pessoa que quer ser uma coisa que ela nunca vai ser. Ela quer ter a roupa ou até morar num país que ela idealiza e que ela nunca vai... a minha impressão é que, aqui no Brasil, as pessoas queriam ter nascido na Europa ou nos Estados Unidos. Elas usam roupas e falam que nem norte-americano. Eu fui conversar com um fotógrafo e chegou uma hora que eu parei: "bicho! Você pode me falar que termos são esses que eu não entendo?
Você fala mais Inglês do que Português. Se você optar pelo Português eu vou conseguir saber mais o que você quer!", sabe? Quando eu falo burguesia é sobre essa necessidade de querer ser Primeiro Mundo, quando na realidade a gente não está nem no terceiro, mas no Quarto Mundo. Isso aqui é o fim do mundo, pra mim. A nossa condição humana, aqui, é fascinante. Se as pessoas pararem e olharem em que país a gente está vivendo, elas vão ver! A gente nunca vai viver no Primeiro Mundo do jeito que a gente vive aqui, entende? Vai pras escolas, pra periferia. É uma condição sub-humana. Ontem eu peguei o metrô e é uma condição absurda. E dá-lhe anestésico! Uma coisa, nessas escolas, que também me chamou muito a atenção foi o suco que elas tomavam em um saquinho, que era puro açúcar. E as crianças vão na escola pra comerem, não vão pra ver Arte. Como é que a gente vai trabalhar arte com pessoas que estão ali pra comer?
Portal da CPT — Lembra do Brecht? Primeiro a barriga, depois a moral!
Clerouak — Justamente. Só que teve lugares em que a gente se apresentou antes de elas comerem! Então, quando eu falo burguês, não é esse discurso panfletário de "morte ao burguês", que ele seja o câncer da humanidade. Não. É sobre a energia burguesa que eu vejo nos artistas, nas pessoas, de quererem ser o que nunca serão. Enquanto a gente não assumir o nosso "quarto mundo" e entender o nosso povo, a gente vai estar fazendo uma arte elitizada e não vai conseguir se comunicar com esse povo. Não vai! Porque é caro e porque não fala a linguagem desse povo, que é do ritual, da música, do samba, da loucura. É anárquica a coisa por aqui. Agora, como é possível você chegar numa escola e querer que te recebam com essa receita européia, de que tem que fazer silêncio, se não é feito um trabalho e onde as pessoas estão ali só por causa de comida? Vai embora! Vai pra Europa, pra França ou pros Estados Unidos... acho que lá é o lugar dessa energia. Vai ver teatro europeu, tudo muito lindo, maravilhoso...
Esse é o desenho com que eu me dirijo às pessoas burguesas, que não estão conectadas com a realidade do Brasil real que a gente tem aqui em cada esquina que a gente dobra. Está lá: estampado na nossa cara. Mas é como um elefante branco no meio da sala e as pessoas fingindo que não está acontecendo nada. E está acontecendo, não é? Aí, de repente, as pessoas entram em pânico e chega ao ponto de nem irem pro trabalho com medo de bomba, de assalto, etc. E eu pergunto: "o que é que eu tenho a ver com isso tudo?", eu não estou sacaneando ninguém, eu não roubo ninguém, não sou nem da elite e nem do PCC e nem da periferia. Nada disso me representa. Mas eu me vejo num fogo cruzado. Pô, o que é isso, cara?! Eu procuro legitimar meu trabalho de artista como palhaço e vem um caldeirão de gente que joga merda no ventilador, junto com essas pessoas que têm visão equivocada sobre palhaço. Palhaço é uma das artes mais nobres que existem e as pessoas têm que perceber isso. O Elifas Andreatto vê no palhaço o símbolo do artista de todas as artes. Por isso é que eu sou a fim de protesto.
Portal da CPT — Fala um pouco sobre o que você anda produzindo...
Clerouak — "Música do Quarto Mundo" é um espetáculo que pra mim já é velho, mas pouca gente viu esse meu trabalho. É uma brincadeira de palhaço em cima de músicas étnicas, áreabes, japonesas, sempre brincando com essa história das línguas. E esse meu discurso ideológico está todo lá.
Portal da CPT — É pra rua?
Clerouak — Rua e teatro, embora o ganho maior aconteça no teatro. E agora eu vou inaugurar um evento chamado "Circo do Quarto Mundo", numa parceria em que a Nau de Ícaros está participando do pontapé inicial. Esse trabalho eu vou fazer em rua e onde der. Eu vou estar de mestre-de-cerimônia e a idéia é chamar pessoas que queiram fazer números, cuja proposta inicial necessariamente não tenha que ir no encalço de algo que já deu certo ou de uma receita de arte. Eu vou propor às pessoas que elas se arrisquem como artistas, entende? Esse, aliás, foi o princípio do Sarau dos Charles. É o "Circo do Quarto Mundo", como se fosse uma quarta tentativa de ter um compromisso com a criação, com a arte e propor. Não sei! Acho que podem aparecer coisas interessantes como também podem não aparecer... Começa na Nau de Ícaros, dia 5 de agosto.
Portal da CPT — O que foi que te despertou essa idéia?
Clerouak — Quando eu te encontrei em Boissucanga eu estava ajuntando uma grana pra comprar um carro e sair fora, mambembar. Eu comprei uma Variante, colori ela toda, pintei as calotas de vermelho, enchi de flores e o que aconteceu? Era um carro antigo e eu resolvi testar ele em algumas viagens pro Interior, fazendo show de rua, rodando o chapéu. Quando eu vim pra S. Paulo me roubaram o carro! Parecia que tinha morrido alguém, de tanto que eu chorei, porque eu vendi tudo o que eu tinha, o meu computador, tudo o que você imaginar, pra comprar esse carro. Chorei pra caralho. Puta, cara! Fiquei completamente desesperançado, desolado com o ser humano. Aí eu pensei: se quem está fazendo isso comigo é o ser humano, só quem pode me ajudar nesse sentido é o próprio ser humano. Porque a coisa está tão caótica... antigamente o bandido tinha um ideal romântico de libertação, não é?
Não ficavam roubando Variantes-74! Hoje a coisa tá séria e eu resolvi procurar a Nau, expliquei a minha situação pra eles e eles resolveram fazer essa festa junto comigo, repartindo tudo meio a meio. A minha parte eu vou juntar com a do Recreio nas Férias e comprar outro carro, com uma boa trava, e vou dar prosseguimento a essa minha história de sair por aí viajando e mambembando, fazendo show de rua com o "Circo do Quarto Mundo", com o qual eu chego nos lugares, pego os artistas dali e faço onde der. Se não tiver lugar, em última instância eu faço nalguma praça ou rua. Mas o que eu sinto é que você tem que ser guerreiro, viu, cara! E a Arte, pra mim, é coisa pra louco...
Portal da CPT — Você tem se mostrado um artista coerente consigo mesmo... na coragem de ser o que você é.
Clerouak — Estou mais tolerante, agora, com as pessoas. Durante uns quatro anos, quando eu era punk, eu freqüentei um centro anarquista. O Jaime Coberos, que era um arquivo vivo do anarquismo, aqui em S. Paulo, um sapateiro italiano que chegou nos Anos 20, ele me falava que o sistema capitalista que a gente vive, toda essa engrenagem, se você atende ao que ele está te pedindo, ele te recompensa. Se você não serve a ele, ele te pune. Eu não vivo fora do sistema capitalista: eu preciso de dinheiro. Mas, eu não abaixo muito a minha calça pra sobreviver, não mostro a bundinha pra eles, seja Sesc ou prefeitura.
Como é que você vai argumentar com um Sesc que eles estão errados e você está certo? A lógica popular é a de que a corda arrebenta do lado mais fraco, então nunca vou conseguir argumentar de modo a eles abaixarem a cabeça: eles vão me tesourar, pra trabalhar. Seja qual for o erro deles! Você manda o teu mapa de palco determinando que você necessita daquela aparelhagem pronta com três horas de antecedência, porque você vai chegar com os músicos pra passar o som. Eles não te ligam dando uma satisfação, você chega três horas antes e não tem nada montado, e o cara que vai te dar suporte não está sabendo de nada!
Portal da CPT — Mas isso não varia de unidade para unidade ou até mesmo de equipe pra equipe?
Clerouak — Aí você tem que correr junto com o cara, carregar a aparelhagem com ele e praticamente entrar em cena se maquiando, porque eles querem que você comece naquele horário! Aí você vai para um outro Sesc e o cara te bota um som merda que na hora do trabalho some. Qual é que é a desses caras, bicho? E se você fala mal, quer dizer, pergunta o motivo pelo qual isso aconteceu, é você que está errado. Então a gente vive em um mundo em que eles estão certos e vão estar sempre certos. Os políticos, as elites que dominam o nosso povo, pra todos eles a gente está sempre errado. Então tem que ser guerreiro mesmo.O que é interessante, pra mim, é que eu descobrir formas de auto-gerir a minha arte que eu não dependo. Se acabar a prefeitura, "Arte nas Ruas", Sescs, se acabar tudo isso mesmo assim eu sobrevivo, cara, com meu trabalho, porque eu vou pra rua, rodo o meu chapéu, vendo o meu cd e pago as minhas contas. É o que me deixa feliz. Mas é foda, não é fácil, não! Se eu puder escolher, é claro que vou querer trabalhos pros Sescs ou prefeituras, porque o cachê é mais bacana, mas eu não quero me ver refém disso.
Entrevista por Portal da Cooperativa Paulista de Teatro
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